Luz pálida


para um dia sem luz e sem velas

Vivia de esperanças amanhecidas. Pretendia passar um café sentar-se na sala para ouvir um pouco de música... relaxar. É tudo o que se deseja após um dia de trabalho. Estranho, Samuel chegou e fechou-se no quarto sem ao menos dizer o costumeiro olá. Realmente não costumava chegar e relaxar, sempre atarefado com algo passava algumas horas no escritório antes de descer. Meses e meses de um olá sagrado, agora deixara de existir. Muitos outros ritos sagrados também deixaram de existir. O chão da cozinha parecia ruir mais uma vez.
A trovoada, muitas vezes, é sinal de chuva forte, como pode ser sinal de muitos outros acontecimentos. A água foi posta na cafeteira quando os pingos da chuva começaram a bater na janela, em poucos instantes a casa deveria estar infestada pelo cheiro do café novo que certamente atrairia Samuel para o convívio, não trabalharia mais algumas horas sem um café quente. O chão tornar-se-ia menos áspero. Uma, duas, três pequenas colheradas de pó de café e a energia elétrica se foi. Onde estariam as velas? Como terminaria o café feito na cafeteira elétrica? Logo logo a energia deveria retornar... mas não retornou. As velas deveriam ficar sempre num único e mesmo lugar, mas nunca estão. A não necessidade delas fazem com que fiquem no lugar mais improvável e remoto da cozinha, perdida e pouco desejadas, tornam-se rainhas na escuridão. Lá estava meia vela num pequeno prato embaixo da pia, resto da imemoriável última falta de energia elétrica. Fósforos? Nem deveriam existir pela casa, foram substituidos pelos cliques do fogão. O isqueiro do bolso era uma melhor e única opção.
Os ruídos de Samuel não cessaram sem a luz, parecia arrastar objetos por todo o quarto. Haveria velas lá? Certamente era uma de suas preocupações, o bem estar daquele que escolhera viver para sempre estava entre seus afazeres. Com a vela acessa encaminhou-se até os dijuntores, estavam todos ligados. Gritou por Samuel em vão, não sabia onde haveria outras velas. Com a chuva, não poderia ir até o quintal e verificar se o relógio estava ligado ou não, as trovoadas indicavam que era só o começo da tempestade. Não havia energia nem nos postes da rua, era o que suas janelas diziam. A única luz era a vela que já se consumia aos poucos, uma luz pálida que em pouco tempo deixaria de existir.
Samuel cessara os barulhos no quarto, finalmente, ele viria verificar os relógios e tudo ficaria bem. Sempre foi assim. Ele cuidava de Samuel e Samuel o mantinha protegido daquilo que ele mais temia. Sentou-se na cozinha à espera. E esperou até seus olhos pesarem sobre si mesmo. Só havia um pesadelo pendente na raiz dos pensamentos: o medo da solidão.
A porta de entrada da casa rangia e em seus pesadelos também. Havia muito tempo que a lide com Samuel não estava bem. Namoraram muito tempo antes de decidirem morar juntos, fizeram tudo certinho para não haver arrependimentos. Juntaram dinheiro, compraram a casa, reformaram, tudo deveria ser exatamente como no sonho de cada um, ou no sonho daquele que desejava com mais ardor. Mas a porta rangia sempre e ficava devidamente irritado todas as vezes que a abria, Samuel nem se importava. Era um problema com a instalação da porta, era um problema insolúvel.
Rangendo ou não, a porta somente ecoou em seus pesadelos, pois foi o barulho do carro saindo pela garagem que lhe arrancou do sono. A vela a sua frente estava quase se esgotando. Tremulava esgotada. A porta da frente batia e o vento forte entrou e apagou-a lentamente. Samuel? Teria saído para resolver a questão da falta de energia? Não. Não era o que parecia, no chão estava jogado o molho de chaves, chave da porta de entrada, chave da porta dos fundos, chave do portão, chaves chaves, chaves. Entradas e saídas. Samuel deixou cair as chaves na pressa... Certamente mentia para si mesmo. Pegou novamente o resto de vela que lhe sobrava, acendeu-a e seguiu para o quarto. A revolta incomum dos objetos por lá só demonstrava um único e certeiro ato. Não havia malas no guarda-roupas, nem mesmo as roupas dele, somente o vazio. Não haveria olá ou qualquer outro rito que manteria aquela casa de pé, as paredes derretiam, a vela também e a cerâmica da cozinha estourou.
A vela logo acabaria, a energia elétrica não retornaria, nem Samuel... Sentou-se na sala de estar ao pé da mesa de centro. Olhou para a vela que ainda resistia. Seus olhos refletiam uma chama efêmera. A luz em sua vida logo deixaria de existir, não haveria mais sorrisos, não haveria mais olás, ou mesmo o cheiro do café pela casa. As velas deveriam ficar num único e mesmo lugar... É o fim. Tudo era escuridão e o saco de velas estava na gaveta de talheres. Pensou em deixar ali para que dá próxima e remota vez que acabasse a luz fosse mais fácil de achar.

Dormir sozinho - Bat for Lashes [tradução]




Você sabe, meu querido, não suporto dormir sozinho...
Nenhum coração na escuridão para me chamar.
Você é a mim mesmo, posso cantar e posso crescer,
mas a escuridão é estranha
em nossa solidão.

As últimas festas e os últimos corações noturnos sorriram,
transbordaram e beijaram tudo o que conheço.
Devolva minha alma, cante livremente pelo oceano.
Feitiços solitários para te evocar, mas que só evocam o inferno solitário.

Solidão. Tua mãe me ensinou
que o sonho do amor só pode ser sonhado em dois corações.

Dizem para todos os corações: intensidade,
mas só precisam ser serenos, serenos e serenos.
E em cada sol nascente uma lua solitária
crescerá.

Leve meu coração
para dentro do fogo de um desejo incandescente.
É o único feitiço que será visto.
Conseguiu me ouvir dentro sonho azulado?

Solidão. Tua mãe me ensinou

que o sonho do amor só pode ser sonhado em dois corações.


Solidão.

Ele eeeee - Tori Amos [tradução]


Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee... Eu... Ele eeeee... Ele eeeee... 
Com seus E's e seu ócio, eu repito mais uma vez.
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...
É necessário um brilho nos lábios para dar um empurrãozinho em sua América
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...
Vem de Deus? Vem de você, doce saliva?
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...
Com seus E's e seu ócio, eu repito mais uma vez...

Eu sei que estamos morrendo, e nem há sinal de um paraquedas.
Gritamos pelas catedrais. Por que não há beleza nisto?
E por que isso precisa parecer um sacrifício?
Precisa parecer um sacrifício?

Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee... Eu... Ele eeeee... Ele eeeee...
Simplesmente diga sim, seu pequeno incendiário.
Você tem tanta certeza que pode guardar cada fio de seu cabelo em meu peito.
Simplesmente diga sim, seu pequeno incendiário... você não quer...
Com seus E's e seu ócio, eu repito mais uma vez.
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...
Com seus E's e seu ócio, eu repito mais uma vez.
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...

Muito bem, eu sei que estamos morrendo, e nem há sinal de um paraquedas
Nesta pequena catedral do amor, poderiamos...
Ter um pouco de graça e elegância?
Não. Nós gritamos pelas catedrais. E por que não há beleza nisto?
Por que isso precisa parecer um sacrifício?
Precisa parecer... faça-me o favor, um sacrifício, por favor.
Precisa parecer um sacrifício.
Eu.. Ele eeeee... Ele eeeee...

de vassouras, prendedores e um rodo


marcuss olhou para o cesto de roupas sujas no banheiro: uma montanha inescalável de roupas já se fazia. Era necessário lavá-las. Este momento não era tão injusto assim, já que representava um rito que lembrava a mãe. Pegou o cesto de roupas seguiu para a área de serviço de sua casa e lá, separou cuidadosamente as roupas brancas das coloridas. Resolveu que iria lavar primeiro as brancas, havia uma necessidade, e ela primeiro deveria ser alimentada. Colocou cada peça dentro da máquina de lavar, e os lençóis brancos foram cuidadosamente colocados na máquina a maneira de um corpo morto que mereceria cuidados especiais. Uma impaciência tomou conta dele ao apertar o botão de iniciar do processo. Acendeu um cigarro enquanto sentava-se ao lado da máquina e abriu um livro de poemas, era ali que deveria permanecer durante todo o processo, sua mãe não estava mais ali para ambos se entreterem durante todo o acontecimento, o livro fazia as vezes da mãe, às vezes insatisfatoriamente, as vezes perfeitamente. Não entendia como isso acontecia, entretanto o livro para se lavar roupas tinha que ser um de poesia. Sentado, ele declamou os primeiros versos para as vassouras que se aninhavam junto com o rodo, que permanecia imóvel perante a beleza das palavras ritmadas. Era um insensível. Em poucos instantes, não somente as vassouras assistiam ao escritor, mas todo o conjunto de prendedores de roupas, o sabão em pó, a esfregão e o balde. Delicadamente todos se postavam ali com os ouvidos abertos e escutarem passivamente as palavras que pulavam da boca de marcuss. Não tinham dúvida quanto a qualidade do poema, somente duvidavam da sinceridade dele ao recitá-los lentamente fonema por fonema. Nem mesmo o heroísmo da máquina trabalhando, recebendo a água ou a expulsando dentro de si ao expurgar dali todo o mal que a sujeira representava atrapalhou o declamar dos poemas. Algumas vezes levantava, quando o poema merecia, por muitas vezes se calava, o poema havia lhe atingido e somente o chacoalhar da máquina era audível a ritmar as batidas de seu coração agora acelerado. Depois de alguns instantes o mutismo morria, havia se recuperado e voltava ao processo recitatório que o lavar de roupas exigia, a guisa de rito materno. Sua mãe não precisava de livros, simplesmente colocava o pequeno marcuss no colo e começa a cantá-los de cabeça. Começa com pequenas quadras, passando por sonetos até chegar às glosas, as quais amava. Porém, sempre encerrava com longos e não rimados poemas, como a demonstrar que sua memória não se utilizava dos mecanismos normais do declamador das rimas. Ele permanecia ali passivamente com os ouvidos aberto ao lado das vassouras e dos rodos, pois na casa de sua infância havia muitos rodos, de todos os tamanhos, naquela época eles eram bem mais sensíveis do que aquele rodo ali de sua área de serviço. Quando a mãe termina um desses poemas que o calavam, ela simplesmente roçava o dedo mindinho no canto dos olhos a impedir que a lágrima pudesse ser observada pelos espectadores. marcuss não chorava, não se permitia, não na frente daquele rodo. O silêncio bastava, criava um clima demais pastoso. Sua mãe era forte o suficiente para se permitir chorar na frente de todos os rodos e mesmo assim sem abalar sua imagem. A lágrima era parte vital da performance. Não existia poesia sem lágrima, como não existia poesia para ele sem os silêncios. Cada um ritualiza da maneira mais confortável. Ele sabia que a máquina havia terminado seu serviço quando as vassouras prorrompiam em aplausos, seguido de todos os outros expectadores, que só entendiam que tudo havia terminado porque somente as vassouras tinham sensibilidade suficiente para perceber que tudo havia acabado. Entretanto, o rodo permanecia imóvel. Insistentemente fingia não ter ouvidos. marcuss não se importava, precisava estender os lençóis brancos, corpos mortos revividos pela água e o processo mágico da máquina de lavar. Havia ainda o rito para se completar. Não, e esse rito não era declamar poemas para os amigos da área de serviço, era apenas uma lembrança da mãe que entretinha um filho pequeno enquanto cumpria suas obrigações domésticas. Os lençóis foram estendidos no lugar em que o sol era mais forte e o vento passava mais insistentemente. Era necessário que secassem antes de as roupas coloridas terminassem de ser lavadas. Alguns prendedores se entristeciam pois não veriam a segunda parte dos poemas, onde versos mais longos e sem rimas seriam declamados com mais ardor, ficavam imaginando o escritor não de pé, mas em cima da cadeira, evocando as forças dos versos livres.

O Barão das Palavras

A palavra obscurece a verdade, o contrário acontece ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Por que, então, os Heróis das Letras abusam das palavras? Sinceramente, os senhores das verdades verbais utilizam um código antigo que vai muito além do pensamento verborrágico ensimesmado dos perfeitos e sossegados mortais, filhos de um Platão de uma república sem poetas. Código criado para se manterem informados em quantas anda a miséria e mediocridade nas regiões despalavradas. 
 Existe uma terra cultivável em que nada cresce e o Barão das Palavras Calmas não entende o porquê. Mil anos se passaram e suas terras não deram frutos, muito menos vogais orais... Ele ecoa: “serenidade”, mas a ninfa morreu. “Estranho! Minhas palavras não frutificam onde reino”, disse o Barão de seu trono suportando o peso de sua cabeça com a mão. Ele invejara terras vocálicas, e principalmente as consonantais fricativas de um esplendor sem par, feroz em velocidade febril... Mais duzentos anos de tranquila reflexão e o Barão decidiu sair de seu trono e ir até suas terras para resolver mais este mistério craseado. 
 Lá estavam centenas, milhares de cabeças prontas para brotarem as primeiras vogais, consoantes e umas especiais prontas até para produzir dígrafos sem titubear. O Barão olha, reolha, transolha, perfolha, ouvolha, cheirolha e finalmente filosolha. As conclusões? Desanimadoras. Letras chamuscadas brotam da boca do Barão das Palavras Calmas até que ele percebe ao diolhar suas cabeças no campo: “É claro que não há exuberantes ramos de frases gerativas e textos discursados nestas paragens... As cacholas estão sem pensamento... Como não pude perceber isso antes?” O Barão com o dedo em riste se recostou numa das cabeças cadavéricas cujos buracos dos olhos estão fundos e enegrecidos de uma pasta amorfa anti-verbal, “Mas do que encher estas cabeças?”, saiu o Barão caminhando por cima da palavra caminho que ele mandou vir da cidade. Rodeado por todos os seus pensamentos-palavras acabou ficando tonto e caiu por cima de um monte de cabeças que rolaram todas sem sentido. “Pensamentos? Onde começam?” Fazia tanto tempo que o Barão tinha começado a pensar que se esqueceu como tudo começou. Sua cabeça ficou tão pesada de pensamentos-palavras que ficou encurvado. Até que a palavra coco caiu na sua cabeça... Infelizmente não conseguiu perceber qual substantivo voador fizera aquilo, pois sua cabeça estava tão pesada que não pôde erguê-la. De tanta raiva, palavras vermelhas pingavam de sua cabeça enquanto ele chutava um monte de cabeças inúteis dos seus campos. As cabeças cadavéricas sem pensamentos rolavam vazias. 
Um pensamento-gerador era o que o Barão precisava. Barão! Tentei dizer da minha narrativa, mas sem aspas minhas palavras não ganharam voz própria. “” Mas como poderia vencer a barreira da distância narrador-observador-personagem, se o narrador também está para morrer. “Barão!” Agora sim, nem foi tão difícil quanto pensei. Porém ele olhou descrente, achando que nenhuma voz poderia estar ecoando ali naquele campo de cabeças sem pensamentos. “Barão!” Tentei novamente. E ele desacreditou. Achou que outro pensamento brotava de sua cabeça sem seu consentimento. E ele martelava com sua própria palavra cabeça o chão riscado em letra de forma: “Como? Como? Como?” 
E todas as letras se bagunçaram. Desordem em ordem de demor morde demorde... “Barão!” Pela terceira vez. E ele finalmente percebeu que não havia somente ele naquele mundo de palavras vazias. E correu, correu e correu, chamando por mim. Era difícil responder, pois se para articular uns dígrafos era complicado, imagine as marcas do discurso. “Barão!” Ele novamente olhou e localizou o rumo de minhas palavras débeis. Chacoalhou algumas cabeças para ver se havia lá o pensamento, e sem êxito tombou perante a palavra descrença. “Barão!” E o novo ânimo metralhou o desanimo. E ele finalmente me achou. 
"Um pensamento em nascimento!” Ele vibrou. Pegou com todo o carinho. Seus olhos cheios de lágriamas cursivas. E eu gritei novamente: “Barão!” E ele sorriu: “É o primeiro fruto de meus sentidos.” Porém eu só conseguia articular Barão, Barão e Barão, sem nenhum outro êxito. O Barão das Palavras Calmas acabou me olhando e lembrou-se de um fato que aconteceu a nilhões de anos atrás. Um pensamento já havia surgido por aquelas paragens... Um pensamento fútil que gritava incansavelmente: “Perdão!” O Barão cuidou deles por décadas e décadas e ele só continuava a bravejar por perdão. Entretanto, sem misericórdia, o Barão estrangulou aquele pensamento. Algo mais complexo ali deveria ser desenvolvido, e o Barão das Palavras Calmas sentou em seu trono até esquecer aquele fato e novamente se relembrar que seu campo estava vazio, enquanto o dos seus outros vizinhos palavloridos. Seus olhos se fecharam, sua garganta entalou com a palavra hesitação, que logo foi engolida e derretida pelo suco verborrágico de seu estômago. E sem a mínima piedade, o Barão pegou minha cabeça e esmagou-a, pingando palavras-lágrimas. “Um dia terei pensamentos complexos por estes campos 
Nunca saberemos se estas palavras se encerram com uma interrogação ou um ponto final, pois já não pertenço mais àquele mundo de pensamentos-palavras tão complexos, pois ao lá morrer nasci neste mundo próprio para minha mente oca de sentidos. 

A Cabeça do Touro


I

Foi colocada nele uma marca sagrada e Ápis decretou: "Nascerá da Cabeça do Touro. Para que do Vigor não pense o contrário". Como animal manso recebeu o ferro de marcar em suas costas, não gritou, não murmurou, somente de seus olhos correu uma única lágrima que de tão discreta nem Ápis a percebeu. O criador assinalara a criatura e ele nasceu.

II

Entregou-lhe também um dom: adivinhar o palpitar do coração alheio. Não sabia o que fazer com aquilo. Não poderia se aproximar do outro e o outro já se abria em verdades. Poderia escolher como numa palheta de cores os sentimentos, conhecer sua existência, ouvir suas memórias, desvendar seus segredos, enfim, palpitava a outra vida em suas mãos.

III

Todas as vezes que encontrava um coração que palpitava acelerado, sua marca doía. Os homens sentiam medo e ele sentia dor. Sua vontade era oprimir os corações temerosos com suas mãos. Esmagando os corações medrosos, o mundo seria melhor. Esse era o ensinamento de Ápis. Seu dom fez sentido, sua marca não doeria.

IV

Esmagando corações temerosos com suas próprias mãos, iniciou uma transformação no mundo. Não haveria mais o medo e somente o Vigor prevaleceria sobre todas as pessoas. Cada coração esmagado era levado para Serapum e colocados um sobre os outros. Milhares de corações esmagados foram reunidos e formaram um muro, o Muro da Memória.

V

Ele sentou-se orgulhoso em frente ao Muro. Lá sua marca não doía. A memória do medo não lhe fazia mal, era o desvanecimento de tudo o que a dor representou. Satisfeito, caminhava pelo mundo, os homens o olhavam diretamente nos olhos e sabiam que ali estava a força que movia a nova vida. Seus chifres e olhos rubros não assustavam a ninguém, não havia necessidade.

VI

O significado das palavras temor e respeito se desvincularam. Não se relacionavam uma com a outra. Entretanto, outra guerra começou, escravos e senhores já não se entendiam. Todos queriam o poder, todos queriam o respeito. A memória do medo saiu do Muro e voltou ao coração dos homens. E ele novamente correu o mundo de volta a Serapum.

VII

Lá encontrou o touro negro pastando em frente ao Muro destruído. Agora, havia corações suficientes para construir um novo muro que certamente atingiria o firmamento. Ápis ordenou que acabasse com a guerra, sua marca doía... Onde estava o medo? Farejou cada coração em busca daquele sentimento. Sua missão recomeçara.

VIII

Do outro lado do mundo encontrou homens que não batalhavam pelo respeito, seu senhor era temido. Apesar da dor, permaneceu incógnito por longo tempo observando aqueles homens que viviam em paz. Enquanto descansava a beira de um lago, um rapaz o encontrou o qual teve medo diante de sua figura, porém, não sentiu sua marca. Ele olhou profundamente dentro dos olhos do rapaz e com seu coração nas mãos viu que além do medo havia ali um outro sentimento.

IX

Ele e o rapaz arderam de paixão e, finalmente, entendeu que sua missão não era esmagar corações, fazia aquilo por medo de Ápis e seu decreto. Outra lágrima correu de seus olhos, a qual prontamente foi secada pelo rapaz com suas vestes. Ele levantou e arrancou seus chifres com as mãos, o sangue banhou seu corpo e o insuflou de paixão e sua marca sumiu.

X

Lembrou-se da primeira lágrima que Ápis não percebeu e olhou para os homens. Não poderia ter nascido da Cabeça do Touro, somente daquele coração pelo qual se apaixonara. (Re)nascera daquele coração. Retornou ao muro e lá encontrou o criador. A criatura assinalara o criador com os chifres arrancados, da mesma maneira que fora assinalado. Ápis foi sacrificado e todos os homens, em luto, cortaram seus cabelos, poderiam, enfim, viver o medo.

A raposa - Niki & The Dove [tradução]

desesperadamente para Felipe


Todas as vezes que acorda,
sobe uma colina,
atravessa uma trilha escura
até encontrar a raposa
numa clareira fechada
lá repousa a cabeça sobre a pedra e como é vermelha,
cheirando a violetas e ervas.
Balança sua orelha
enquanto sussurro...

Mamãe, plantei uma linda e alta árvore,
quero dar-lhe o fruto.
Papai, carreguei seus medos e esperanças,
são tão pesados em minhas costas, ah você sabe.
Vamos descansar um pouco.

Encontrarei o ninho da águia, ah leve-me com você.
Esperei a vida inteira por isto, e estou pronto.
Acredite, estive acordado a noite inteira, e ainda me chamam de louco.
Mas o que eu quero é ver como o céu é para você.

Eu vi tua face esculpida em barro. Eu vi! Vi, sim.
Foi rascunhada contra o céu púrpura
É estrondosa e profunda em mim, estrondosa e profunda...
Meu lar é o despenhadeiro.

Encontrarei o ninho da águia, ah leve-me com você.
Esperei a vida inteira por isto, e estou pronto.
Sempre perambulei, perambulei a vida toda, e eles nunca me conheceram.
Mas o que eu quero é ver como o céu é para você.

Mamãe, plantei uma linda e alta árvore,
Quero dar-lhe o fruto.
Papai, carreguei seus medos e esperanças
e eu os conquistarei por mim e por você.

Buraco


Quando a luz própria do dia míngua
os sonhos veem de dentro do buraco

Neste ocaso é que percebo as palavras
circulares, solenes, obscuras

Quando auscultadas pelos olhos aos ouvidos
só há a solidão dos sons imperceptíveis

tudo fica sem sentido

mas quando cuspo a minha própria vergonha iluminada
dentro deste buraco que vejo refletida minha imagem

é para lá que devo pastorear meus sonhos
insondáveis luzes de uma esperança imprópria

um dia vou acordar dentro do buraco
e o sonho de sumir de todos os olhos já será passado

tudo ficou sem sentido

as vestes que usei, as lágrimas que derramei
os gemidos que produzi, as bocas que calei

deixarão de ter sonhos também
minha desgraça desfaz uma ilusão

a de que os sonhos veem do buraco
sendo que é lá que precisam ser depositados

Um pensamento na multidão


Caminhava a passos curtos, à maneira de todo e qualquer idoso, já tinha o compasso da vida vivida, da vida que já não tem pressa, da vida que não passa de repetição de uma outra mesma experiência... Suas pernas deveriam doer.
Era cedo. Todos se encaminhavam ao trabalho e dirigiram-se para seus respectivos ônibus, todos tinham um caminho, uma direção, uma vontade. Muitos queriam um carro, outros queriam a oportunidade de sua vida, outros queriam somente um amor, muitos nem sabiam o que realmente desejava, viviam de uma felicidade falsa, uma pedra reluzente sem valor algum, uma pedra que todos possuíam, porque barata, mas que nada representava.
Seus ouvidos percebiam o entra e sai frenético dos coletivos no terminal de transporte público. Não movia sua cabeça para acompanhar os ônibus, percebia seu movimento pelo barulho intermitente que produziam, não os olhava para não ver as pessoas olhando-na, não merecia ser olhada. Levas de ônibus despejando bandos de gentes. Todos sonolentos, ferozes e atrasados, a primeira e pequena luta corporal do dia. Porém, seu caminhar não se perturbava, é claro que nem chegava a um terço dos outros, não precisava daquela ansiedade vívida, dirigiu-se firme e calmamente até o ponto de embarque de nossa condução, estremecendo-se somente com a velocidade com que os carros articulados passaram ao seu lado e demoviam todos os que lá esperavam. Suas pernas deveriam doer. Finalmente, ela parou em minha frente e nosso "vermelhão" chegou. Ao abrir das portas do ônibus muitas pessoas foram se desacomodando e descendo, esticando-se e respirando o ar enfumaçado do terminal. Como cabem tantos em um único lugar? A necessidade explica, por vezes nem ela... Nós seriamos os próximos a experimentar essa ingerência espacial, esperávamos para subir.
Ela deveria ter pensado: "Graças a Deus, o ônibus para casa!" Mas a turba cruel a empurrara de um lado para o outro na subida. E a cada sacudida certamente se lembrava de uma infância nada fácil.
Sua mãe certamente nunca teve dinheiro para uma boneca. Uma boneca é muito importante para qualquer menina. Mais importante que seus cadernos, mais importante que sua família. É na boneca que uma menina projeta toda a sua vida, sua infância, sua juventude, seu casamento, sua velhice. Desde criança ela trabalhou e trabalhou e somente comprou feijão. Certamente a única exigência de sua mãe para aquela criança mirrada. Escondia os trocos dos poucos cruzeiros que sobravam do feijão para comprar a mais linda boneca de pano da venda. Depois de muitos meses ali estava todo o dinheiro da boneca onde poderia viver uma outra vida que não a sua... porém sua mãe descobriu e estraçalhou a boneca e todos seus sonhos. Certamente tinha medo de bonecas.
Ir para a escola foi único, ganhou cadernos, lápis e borracha da vizinha. Mas por que existe a morte? Sua mãe se foi e ela era a dona da casa, era a mãe dos incontáveis irmãos. Mais tarde seu pai também se foi dizendo que estudo não enche barriga, pois ele estudou quatro anos em oito e aquilo não foi garantia de fartura na mesa.Seus irmãos não teriam destino diferente. Desistindo da escola pelos irmãos pensou que poderia oferecer aquilo que não poderia continuar... mas não estavam interessado, a voz do pai morto ressoava pela casa e todos mineraram futuros incertos.
Já moça, deve ter conhecido Felizberto. Limpou, cozinhou, apanhou, teve quatro filhos, sorriu e chorou quarenta e cinco anos de sua vida, um pouco mais, um pouco menos... e não havia encontrado dignidade, era uma palavra que não fazia sentido em seu parco dicionário. Como as pernas doíam! Camelou muitos anos até acontecer este dia. Entrou no ônibus. Tentou pedir licença, mas sua voz quase minguou. Finalmente, estávamos todos nós dentro do ônibus, sentados, de pé, dependurados. O espaço? Continuava relativo. Ela? Apertada, segurando um saco de papel todo amassado. Seu conteúdo não me importava, poderiam ser remédios, sonhos ou mesmo feijão.
Será que somente eu a tinha visto? Porque quando rolou sua primeira lágrima ninguém se moveu. Vi de longe, queria segurar com um lenço e não pude, estava do outro lado do coletivo... Essa era a minha desculpa e a desculpa de metade deste mundo, não pude ir lá ajudar...
As lágrimas rolavam por seu rosto de terra enrrugada. Um sertão de árida esperança. Sugou o ar pelo nariz uma única vez, secou timidamente sua última lágrima, estava pronta para viver mais quarenta anos naquela condição.
Um celular tocou. Uma gargalhava a altos brados. Alguém pedia esmola. Outro falava sozinho. Um brigava por um assento sobrando. O motorista deu partida. Eu dizia "ufa!" e ela segurava firme, suas pernas deveriam doer. O rapaz a sua frente sentado, escutando seu music player, deveria ter dormido oito horas. Mas sua narrativa não me interessa. Ela estava ali, recuperara seu semblante sereno, mas a cabeça certamente numa tempestade ruidosa que não transformava em vida a aridez.

O Fantasma do Futuro - Regina Spektor [tradução]



Quando saiu de seu apartamento,
Estava chovendo e ele esqueceu o guarda-chuvas.
Começou a correr por baixo dos toldos
Tentando salvar seu terno,
tentando ficar seco e seco, mas sem sucesso.

Quando ele chegou no metrô lotado
tirou os sapatos
E pisou numa meleca.
Todos que disseram "eca",
Todos que disseram "eeeca".

Mas ele nem se importou,
porque ontem a noite ele recebeu a visita
do Fantasma do Futuro.
E o fantasma lhe disse: "Tire seu sapato
todas as oportunidades que tiver
principalmente quando eles estiverem molhados."

E também lhe disse:
"Imagine-se viajando sempre
em viagens de negócios talvez.
E quando você voltar
suas crianças terão crescido
e você nunca fez sua esposa suspirar."

"E as pessoas te irritam,
fazem você pensar que o mundo está acabando.
E todas as feições de alguma maneira se misturaram.
Todo mundo é de plástico,
todo mundo é sarcástico,
todas as comidas são congeladas
e precisam ser descongeladas."

"Você poderia pensar que o mundo está acabando
neste momento...
O mundo poderia acabar
neste momento."

"Quem sabe você só deveria beber bem menos café,
Ou nunca assistir o noticiário das dez.
Ou ter beijado alguém que valesse a pena,
ou mesmo lamber uma pedra,
ou as duas coisas."

"Talvez poderia cortar o seu próprio cabelo,
só porque seria engraçado.
Não custa nada
e sempre cresce,
cresce mesmo depois de sua morte."

"E as pessoas só são pessoas,
Eles podem ter enervar.
O mundo é para sempre.
Vem e vai.
Se não quiser jogar fora seus cartões de crédito,
As ruas não serão menos plásticas.
E se você beijar um qualquer,
Seria simplesmente um treino."

"O mundo é para sempre.
Ponha alguma sujeira no seu bolso.
E tire seus sapatos
porque as pessoas são simplesmente pessoas,
As pessoas são pessoas.
As pessoas são pessoas como você."

"O mundo é para sempre.
Vai e vem.
O mundo é para sempre.
Vai e vem, vai e vem."

O rei Silêncio

Summer Solstice Painting (chairs/thrones), 12"x12" oil on panel de Bárbara Mayfield

onde Silêncio reina petulante
todo homem treme
seres inexperientes
e sua duvidosa questão

somente aquele que já esteve
sob o jugo do rei calado pode entender
nem Eco, nem nenhuma ninfa castigada
perturba o reino da quietude
é o encontro do Silêncio com o significado

pequenas dúvidas são semeadas
por entre seus lábios serenos
ele pesa seus olhos sobre os seres
e os seres pesam a culpa sobre si

tudo aquilo que jamais foi dito
tudo aquilo que não pode ser imaginado
permanece imóvel
recua para a origem da própria palavra
desvia caminhos e certezas

onde Silêncio reina petulante
todo homem treme
por si mesmo e por todos os outros
que nunca saberão de suas culpas ou erros

um bom dia para bombardeios ou acordasonhadores - Sigur Rós [tradução de uma versão em inglês]



Deslizo adiante
são os pensamentos da minha mente
acredito que seja somente a metade do caminho
para trás
consigo me ver cantando o Hino
que escrevemos juntos
nós tinhamos um sonho
nós tinhamos tudo
cavalgamos para o fim desta guerra
cavalgamos à procura
escalamos arranha-céus
que logo explodiram
a paz foi passear
escoo o equilibrio
rio abaixo
deslizo novamente adiante
são os pensamentos em minha mente
eu sempre retorno para o mesmo lugar
totalmente em silêncio
sem respostas
porém, a melhor coisa que Deus criou
foi um dia novo.

A memória do outro

"E o senhor como se chama?"
"Espere, está na ponta da língua."
(Umberto Eco em A misteriosa chama da Rainha Loana)


Sem tempo para verdades

Aprendi a encarar a memória como uma narrativa. Quando alguém  lembra-se de algo que está em seu passado e traz à tona pela ato de rememorar e conta, utiliza-se de todos os aparatos narrativos: espaço, tempo, ação, personagens, mesmo que as instâncias sejam confusas, fosse mesmo preciso realizar muitas voltas temporais para se chegar ao fato que realmente deseja se lembrar ou muitos dos personagens sejam caros ao interlocutor, são todos expedientes da narrativa moderna. Lembrar, portanto, é narrar. E a narrativa, felizmente, sob este olhar crítico, é uma mentira. A representação na arte é um objeto afastado três vezes da verdade, como diria Platão em sua República, a verdade está na mente do criador, o artesão que faz o objeto o afasta uma vez da verdade e o pintor que o coloca representado num quadro, mentiu mais uma vez. Realmente é um perigo aos cidadãos, um perigo que só poderia afetar a república e seus "homens perfeitos". Lembrar, mais uma vez, é mentir ou narrar, mas nunca reviver. Um eu passado viveu e um eu atual reconta o vivido. Temos que separar o sujeito dessa forma, parti-lo em pelo menos duas partes, o eu atual e o eu passado, mas no próximo segundo, o eu atual já é diferente daquele que o eu do segundo anterior, então duas partes se tornam três e assim sucessivamente, tornando o sujeito múltiplo, ou como quero agora, plural. Essa pluralidade do sujeito não o torna menos a si mesmo, pelo contrário, somente o reafirma, pelas muitas singularidades que o compõe. Erro seria acreditar na unidade de si mesmo, como se o homem pudesse ser entendido e observado de um único lance, de uma única vez. O eu atual lembra-se segundo seus interesses, segundo suas vontades, segundo suas necessidades, de acordo com a construção atual de si mesmo e, para tanto, o tempo precisa ser repensado.
Repensar o tempo é necessário para fazer da memória não uma prisão, como muitos fazem ao viver do passado, ou simplesmente tornar o tempo um desejo, aqueles que só pensam no futuro, e sim tornar o tempo um caminhar eterno. O tempo que é encarado com produtividade, aquele tempo que caminha sem ponto de partida ou de chegada, se baseia na seguinte proposta: não existe passado, presente ou futuro. Essa proposta não busca anular a existência do tempo, mas sim procurar um novo relacionamento com cada instância temporal. É preciso negar neste exato momento o tempo clássico e todas as suas implicações. O hoje é o ponto de produtividade e seu ato é o caminhar. Essa metáfora tem uma necessidade: caminhar sem olhar para o ponto que se partiu ou mesmo sem pensar no ponto de chegada é poder se importar somente com o hoje: o passado deixa de paralisar o sujeito e o futuro deixa de ser uma elaboração constante, um desejo. Influenciado pelo passado e direcionado para o futuro, o tempo é, portanto, considerado como um todo. Traz-se o passado e o futuro para o presente, precisam ser elaborados em conjunto. Lembra-se de algo simplesmente para viver o hoje; as experiências, os traumas, as explorações da memória tem uma única e total utilidade: o hoje. O passado nos ensinou algo para ser repetido ou nunca mais realizado e tomar essas atitudes torna o caminhar mais preciso. Dessa forma, não é possível reviver o passado, somente reinventá-lo pela narrativa que se faz dele, e já o disse, é uma mentira. O eu atual ao relembrar utiliza-se do como se é hoje para resgatar o que deseja do passado e o reconta pelos expedientes narrativos que utiliza. E o nosso interesse pela memória, como veremos, é a possibilidade de aprender com a experiência alheia, verdadeira na sua mentira ou mentirosa na sua possível verdade.

As mentiras memoráveis

Já se acreditou que realmente se revivia o passado pela memória, as narrativas autobiográficas traziam o passado de volta. Já se acreditou mesmo que se poderia voltar ao passado para poder se alterar o futuro, é a máquina do tempo de H. G. Wells . Já se questionou até o tempo ao se relembrar, são as palavras de Santo Agostinho. A memória já foi até verdade, recuperação exata do vivido, dizia um pacto que para se ter autobiografia era preciso compactuar com a verdade. Hoje, até mente-se que viveu ou lembra-se um passado que nunca existiu ou que só poderia ter existido. Sempre me questiono: isso sempre aconteceu e nunca havíamos aceitado tal fato? Lembrar é mentir, é dizer o que o eu atual elabora do eu passado. O tempo pretérito é uma convenção perante o presente, uma marca que diz que algo aconteceu antes do agora, nada mais, nada menos, as narrativas inventadas se utilizam desse recurso para contar a sua verdade. A memória se utiliza desse recurso para contar a sua mentira.
Toda a memória é, portanto, inventada, nunca houve uma recuperação exata do passado por mais que seu autor ou seus teóricos ou críticos acreditassem nisso. Eles também mentiam para si mesmos, queriam acreditar na verdade baseada num único ponto de vista. A palavra e seus usos não permitem tal acontecimento, porque quando se reelabora o passado pela narrativa, o passado não é o que mais interessa, mas sim o hoje. E isso se dá por duas vias: uma para o próprio autor e outra para o leitor. O autor reinventa a si mesmo para expressar o que seu eu atual tem a dizer do vivido e reinventa para poder se atualizar. Justifica-se, atualiza-se e emoldura-se, assim o passado modifica o hoje pela reinvenção de si mesmo. E nosso interesse como leitor deste passado reelaborado é a curiosidade necessária de toda e qualquer história: ela tem algo a nos mostrar do ser humano. O romance, numa consideração generalista, nos mostra uma sociedade inteira, por mais que seja centrada numa única personagem. A autobiografia, a biografia ou essas escritas de si, tenha o nome que tiver, ou seja, qualquer manifestação de um eu que parece ser real, servem para, a partir de um único ser, uma única e específica elaboração, abrir nossos olhos para algo mais geral, mais amplo: o ser humano que em sua especificidade pode ensinar a todos, pelo menos que seja uma única lição, mesmo que seja para ser negada, aceita ou refletida. A literatura tem essa e outras funções.

A memória cultural

Umberto Eco, crítico e escritor italiano, em seu romance A misteriosa chama da Rainha Loana (La misteriosa fiamma della Regina Loana, 2004) traz em seu bojo uma interessante discussão sobre a memória como narrativa e a narrativa como memória. Yambo, a personagem central, perde sua memória num acidente automobilístico e numa tentativa de resgate de suas próprias lembranças acaba por resgatar somente a memória que existe dentro de cada um de nós: a memória cultural. Yambo tenta lembrar-se de sua esposa, de seus filhos, de sua própria história, mas somente lembra-se dos livros que leu ou das músicas que ouviu. "Não estou apenas desmemoriado, mas talvez viva agora de memórias fictícias. Gratarolo [amigo de Yambo] mencionara a possibilidadde de que, em casos como o meu, a pessoa inventasse retalhos de passado que nunca viveu realmente, só para ter a impressão de recordar. Terei pego Sibilla como pretexto?" (p. 67) Esse é Yambo que se questiona o tempo todo se está realmente obtendo êxito em sua demanda de recuperação de sua memória ou se está somente perdendo tempo recriando algo em sua mente que os outros lembram para ele. É o caso de Sibilla ser sua amante, como ele poderia confirmar tal fato que não fosse somente acreditar nas palavras do amigo que lhe a indicou nessa condição? A impossibilidade de reativar sua memória pelos vários exercícios e tentativas dos famíliares e amigos são todas improdutivas, nada o faz relembrar, o que vem a sua mente são os livros que leu, citações e mais citações que se amontoam numa mente cheia de lembranças alheias: "Disse a mim mesmo: Yambo, você tem uma memória de papel. Nâo de neurônios, de páginas." (p. 92). Primeiro são as páginas da literatura ocidental que recheiam a memória de Yambo, mais tarde, numa nova tentativa são os objetos culturais que enchem a cabeça das crianças: histórias em quadrinhos, livros de literatura infanto-juvenil e as canções. Para tanto, ele resolve voltar para Solara, o lugar da sua infância, e lá encontra tudo o que seu avô havia guardado no sotão:

Compreendi que aqueles dias no sótão foram mal empregados: reli páginas que folheara aos seis ou doze anos, outras aos quinze, comovendo-me a cada vez com histórias diferentes. Não é assim que se reconstrói uma memória. A memória amalgama, corrige, transforma, é verdade, mas raramente confunde as distâncias cronológicas, uma pessoa deve saber muito bem se uma situação qualquer lhe aconteceu sete ou dez anos antes, eu também distinguia o dia do despertar no hospital do dia da partida para Solara, e sabia muito bem que entre um e outro houve uma maturação, um mudar de opiniões, um confronto de experiências. Mas, ao contrário, naquelas três semanas eu absorvera tudo como se, menino, tivesse engolido tudo de uma só vez e num só fôlego - e, claro, tinha impressão de estar entorpecido por causa de uma beberagem inebriante. (160)
Desesperado por recuperar sua memória e o que ela significa, ele quer concordar com a verdade que há na lembrança e na exatidão temporal de uma memória, porém o que ele estava vivendo provou exatamente o contrário: sua infância foi engolida de uma única vez. Todas aquelas lembranças perderam-se no tempo, ou melhor, perderam-se numa possível exatidão do tempo: elas funcionam a maneira de um ouroboros, a serpente que morde sua própria cauda tornando o tempo infinito pela forma circular:

Aprende-se ainda criança a metafícia do infinito e o cálculo infinitesimal, só não se sabe ainda o que está intuindo, e poderia ser a imagem de um Regresso Sem Fim, ou, ao contrário, a horrível promessa do Eterno Retorno e do volver de idades que se mordem as caudas, pois alcançada a última caixa (a maneira das matriosckas), se uma última houvesse, talvez no fundo daquele vórtice se descobrisse a si mesmo com a caixa do ínício nas mãos. (p. 125)

Ao recuperar lembranças fictícias de seu passado, não era ele quem lembrava, mas os outros que lhe apontavam os objetos de sua infância, com todas as caixas do sótão ele descobriu-se mais perdido do que quando começou este insano processo representado pelas matriosckas ouroboros. O momento exato de quando leu um gibi ou ouviu uma canção deixou de ter importância, a recuperação do seu passado por um daqueles objetos se tornou impossível: todas as crianças como ele haviam lido ou ouvido as mesmas coisas e enfrentado aquela mesma época do fascismo em que os discursos institucionalizados celebravam o Duce e os de oposição criavam super-heróis que poderiam se não salvar o mundo da tirania, poderiam descolar seus sonhadores leitores para um mundo melhor onde imperava uma justiça fantasiosa. Ele era mais um entre tantos outros, tinha uma construção subjetiva formada pelo o que os familiares que impunham ou o que a escola lhe mostrou que era o certo: "Tudo o que descobri foi o que lera, mas assim como tantos outros leram. A isso reduzia-se toda a minha arqueologia: à exceção da história do copo inquebrável de uma espirituosa anedota sobre meu avô (mas não sobre mim), eu não revivera a minha infância, mas aquela de toda uma geração" (272). E de geração em geração, a humanidade toda e sua história é formada pelos bens culturais que guardamos pelos livros ou imagens, são conhecimentos que passam de uma geração a outra, são reformados ou resgatados, pois cada um desses objetos resiste ao tempo. E ao resistirem criam uma memória maior, não do sujeito, mas de toda a coletividade, mesmo em tempos sem escritas era a partir da fala que todo esse conhecimento resistia, passando de pai para filho. O livro e sua durabilidade somente fez com que essa memória se ampliasse e se diversificasse, como também o sujeito pode perceber-se plural com tantos passados diferentes de si mesmo. É a palavra que resiste, e não somente ela, mas também a linguagem e todas as suas formas de expressão. A linguagem é a única herança durável e imaterial que passamos de uma geração para a outra, e como disse Hölderlin: a linguagem é uma herança perigosa.
"E se restassem apenas e sempre e ainda palavras, a confundir ainda mais os meus neurônios doentes sem acionar a troca desconhecida que daria livre curso a minhas lembranças mais verdadeiras e escondidas? Que fazer? Lenin na poltrona branca da sala de estar. Talvez eu tenha errado tudo, e errou tudo Paola [sua esposa] também: sem voltar a Solara permaneceria semente perdido, voltando, podia sair de lá louco" (157). Não era possível recuperar seu passado, a palavra era tudo o que lhe havia restado, e é o que resta para cada um de nós, é a nossa herança, só lembramos através das palavras de nossas narrativas do passado. Por exemplo, uma foto de alguns anos atrás é uma narrativa, podemos perguntar: qual era o lugar? Quem são as pessoas? O que estavam fazendo? São perguntas intermináveis. Uma fotografia narra um romance inteiro de lembranças que podemos recriar com as palavras.
Além das discussões políticas promovidas por cada uma das leituras da personagem central, temos um recurso estético notável: nós mesmos ao ler o romance tornamo-nos Yambo e entendemos suas dúvidas e angústia. Se folhearmos o livro é possível perceber uma grande quantidade de ilustrações, é um romance ilustrado como consta na capa do próprio livro, são reproduções de quadrinhos, cartazes, ilustrações de livros, capas de livros, fac-símiles de jornais, selos e transcrições de canções, além de montagens de diversas imagens (principalmente na parte final). Com a leitura do livro cada uma das ilustrações se contextualiza e nós entendemos o que passa Yambo em sua desesperada tentativa de recuperação da memória. Há duas maneiras de contextualização: ou vemos a ilustração e não entendemos porque ela apareceu e em poucas páginas ela é relembrada por Yambo, ou é comentada no texto e algumas páginas (ou muitas páginas) depois a ilustração aparece. Yambo havia visto cada uma dessas referências em sua infância e quando colocava seus olhos novamente nesses objetos somente se lembrava de que já havia visto aquilo antes. Nós procedemos da mesma maneira, ora ouvimos falar do objeto para depois vê-lo, ora nós o vemos para somente depois lê-lo referido na narrativa. Dessa forma, o gosto de possuir o objeto já possuído também é experimentado pelo leitor, assim, tomamos posse da memória do outro. A memória de Yambo também é nossa, da mesma maneira para aqueles que leram os clássico que ele menciona na primeira parte e se emocionam por terem lido os mesmos livros. Entretanto, é preciso propor uma questão: "Se faz isso para divertir os meninos [...] é uma coisa, do contrário está se identificando demais com aquilo que lê e isso é pegar emprestada a memória de outra pessoa. Tem clareza da distância entre você e essas histórias?" (165). A pergunta poderia ser feita para nós mesmos: temos clareza da distância daquilo que lemos, assistimos ou ouvimos de nós mesmos? Mas para além disso: essa distância é realmente necessária? Esses objetos fazem parte de nossa formação plural e é o que nos faz compartilhar algo humano entre todos os seres humanos, é a nossa memória coletiva, cultural.

Conclusões

Não quero tratar do fim do romance, a leitura do livro como um todo, e espero que este ensaio possa atiçar a curiosidade de qualquer interessado, é preciosa e construtiva, não só para a questão da memória, mas muitas outras. Entretanto, quero tirar de minha elaboração duas questões:

1. Não podemos viver do passado, ou sofrê-lo, isso paralisa o homem e o impede de avançar na descoberta de novas experiências para si mesmo, ou seja, os traumas do passado quando não reelaborados de forma produtiva para o presente não permitem que o homem dê o próximo passo na direção de novos traumas que logo também se tornarão passado, e assim por diante, neste eterno caminhar proposto. Da mesma forma, não é possível paralisar-se no desejo de um futuro que não se realiza a não ser pelas ações do hoje. E para além dessas obviedades: "a memória é o porvir", é o que diz Jacques Derrida: tudo o que foi construído no passado tem uma implicação no futuro (porvir, por-vir). Ao tomarmos posse de nossa perigosa herança, a linguagem, temos que usufruí-la de maneira produtiva: o que vamos fazer com o que aprendemos do passado pelas reelaborações que realizamos a todos os instantes e como essas reelaborações alteram de alguma forma o nosso caminhar para o porvir inalcançável? É preciso uma reflexiva relação do sujeito com o tempo, e partir desse relacionamento, depende somente dele aceitar e entender sua própria pluralidade, e assim, o tempo deixará de paralisar aquele que caminha e o fará "imortal", como nos diz Fernando Pessoa, não mais seremos determinado pelo tempo.

2. Seja de nossa própria memória ou da memória do outro, privada (as histórias-mentiras que ouvimos de amigos ou familiares) ou pública (caso das escritas de si que curiosos lemos) temos que tirar dali uma lição, ou uma política da memória. É possível aprender com a diferença da pluralidade de cada sujeito seja público ou privado com o qual nos relacionamos pelas palavras? Existe na memória do outro (e nos mesmos somos um outro quando relembramos, já somos um outro de nós mesmos) a possibilidade de se criar um mundo melhor, se não melhor, mais justo a partir de todo o aprendizado com as experiências, traumas e explorações alheias que nos é legada todos os dias pelo nossos olhos e ouvidos? A aceitação dessa possibilidade é a recusa de todo o esquecimento provocado do passado, esquecimentos estes que só nos trazem uma falsa melhora, uma falsa justiça, porque enquanto aquele que foi esquecido não puder ter voz e ser lembrado, nunca teremos uma ética da diferença, é o próprio Eco que nos propõe: "Recordar é bom também [...]. Alguém que disse que a recordação age como uma lente convergente numa câmara escura: concentra tudo e a imagem que resulta é muito mais bela que o original." (p. 30)

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana - romance ilustrado (trad. Eliana Aguiar). Rio de Janeiro: Record, 2005).

Marina e Antony

A performer Marina Abramović e cantor e compositor Antony Hegarty de Antony and the Johnsons trabalharam juntos numa produção teatral relacionada à biografia da performer intitulada The Life and Death of Marina Abramović. Uma entrevista foi publicada no site NOWNESS.com (http://www.nowness.com/day/2011/7/8/marina-abramovic-life-and-death), originalmente em língua inglesa e vertido para o português por mim. Visitem o link para a “story” de NOWNESS.com e veja as fotos mencionadas de Antony Crook e clique em “LOVE” também.

Marina Abramović: vida e morte

Artista performática dedica-se mortalmente pela nova produção de Robert Wilson.

Segurando lâminas afiadas e armas carregas em nome de sua arte, a grande dama da performance, presenteia-nos com seu próprio funeral em A vida e a morte de Marina Abramović (The Life and Death of Marina Abramović). Antony Crook fotografou a maratona de ensaios desta nova produção que recrutou o brilhante cantor Antony Hegarty e o sonoro William Basinski para seu elenco, além de Willem Dafoe como narrador e um trio de dobermans. Dirigido por Robert Wilson a peça baseia-se nos diários de Abramović para uma trama entrelaçada por íntimos detalhes de suas diversas relações, incluindo a complicada história com sua mãe que perpassam todo o espetáculo. O projeto A presença do artista (The Artist is Present), realizado pelo MoMA de Nova Iorque no ano passado, marca a sexta instalação de um projeto pontual que revisa mais de três décadas de sua carreira. Falamos com a performer após sua estréia no Manchester Festival.

O que foi mais intrigante em seu trabalho com Robert Wilson?

Como tudo é uma ilusão. Quando começamos tinha a imagem de mim sentada num enorme bloco de gelo, porém nos ensaios eu vi um grande bloco de acrílico imitando o gelo. Eu perguntei para Robert: “Não é gelo?” e ele me respondeu: “Ficou louca? Se você sentar num bloco de gelo pelo resto da performance, seu vestido ficará molhado. Teatro é ilusão, Marina.”

Como foi o envolvimento de Antony Hegarty e Willem Dafoe?

Quando eu comecei o trabalho, tive que pensar na música e a única pessoa no mundo que eu gostaria que dissesse sim para meu projeto era Antony. Ele criou 11 inacreditáveis músicas baseadas na minha biografia. Para mim, Antony é como um anjo enviado pelos céus. A primeira vez que o escutei tive um forte impacto emocional. Já Willem Dafoe é um amigo de longa data. Como o narrador, ele é a espinha dorsal de toda a peça, até mesmo canta e dança para as músicas eslavas.

Conte-nos sobre os animais que estão na peça.

Queríamos um cavalo em cena, mas não poderíamos arcar com este custo, por isso temos um cavalo de madeira. A cena de abertura é meu funeral com cachorros comendo os ossos de meu corpo. É um tanto macabro, mas inacreditavelmente poético ao mesmo tempo. Queríamos 12 cachorros, entretanto, devido à burocracia Britânica acabamos com apenas três. E também temos uma cobra em cena.

Os ensaios duraram de dez a doze horas. Você é reconhecida por sua resistência, mas foi um desafio?

Durante os três primeiros dias de ensaio pensei que eu iria terminar num hospital psiquiátrico. Robert criou uma realidade paralela e precisei de um tempo para me acostumar. Ele é obcecado por qualquer aspecto, mesmo a posição do meu dedo mindinho da mão precisa ser controlada em relação à sombra que ele projeta. E isto me fez ver meu corpo de uma nova maneira. Foi um processo de aprendizado inestimável para todos os envolvidos.

A participação do público é uma assinatura em seus trabalhos. Isto está presente nesta peça?

Não, eu acredito que o público precisará de lenços de papel. Todos que assistem parecem querer chorar.

De: NOWNESS.com (traduzido por marcuss souza)

Ontem, Antony Hegarty compartilhou em sua página no Facebook um vídeo com cenas da peça teatral do Canal ManchesterIntFest (http://www.youtube.com/user/ManchesterIntFest).


"Você sabe o que é mais interessante sobre a idade? Antes, eu não poderia fazer essas performances de longa duração, porque minha mente não suportava. Agora sou fisicamente fraca, mas mentalmente forte. Esta é a contradição." (Marina Abramović)

Use - Fallulah [tradução]

para eles...

Riscos, considere-os.
Juntei pequenos dentes-de-leão e assisto-os voar.
Por que não os toma e os usa?
Por que não os toma? São as pequenas coisas que tem...
Por que não as coloca em seu devido lugar?

Ofereça-me abrigo, ofereça-me um lar.
Onde possamos sentar, sentar e sentar...
E nunca estar sozinhos.

Use tudo isso, se tiver a certeza que pode.
Recolha pedras, sei que estarão salvas em suas mãos.
Antes que caiamos num lugar desconhecido.

Pare. Nós dois sobrevivemos a queda.
Te assustei com todas as minhas despedidas?
Eu irei usá-las.
Eu irei colocá-las em seu devido lugar.
Exatamente onde eu acho que devem ficar.

Vamos alugar uma casinha qualquer com nosso cão e nosso gato.
Onde nós poderemos sentar, sentar e sentar.
Onde levaremos um ao outro a loucura....

Porque não os toma, e os usa?
Por que não os toma, são as pequenas coisas que tem...
Por que não as coloca em seu devido lugar?

Luminicisnes - Antony & The Johnsons [tradução]




Oh! Eu estou vivendo.
É algo dourado. Dourado.
E significa tudo.

Fui abençoado
pela sua graça.
São os luminicisnes
na água
da sua brilhante face.

Oh! É um tipo de mistério para mim.
Oh! É um tipo de mistério para mim.
O que tenho visto
são faces em meus sonhos.
Oh! Os luminicisnes...
Os luminicisnes.

Quando eu fecho meu olhos
e sonho, os cisnes vêm.
Quando estou apaixonado
Eu reverencio a canção dos luminicisnes.
Oh! É um tipo de mistério para mim.
Oh! É um tipo de mistério para mim.

Danço agarrado em seus pescoços.
Danço, pescoço com pescoço.

Oh! Eu estou vivendo.
É algo dourado. Dourado.
E significa tudo.

O colecionador de fragmentos

"Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?" (Roland Barthes por Roland Barthes)
Fernando, à frente do espelho, sempre cobria com uma das mãos a face e semi se apreciava. Não encontrava ali a beleza nem a feiura, encontrava algo estranho. O estranho que admirava. Muitas vezes, mergulhava em seu próprio descoberto e permanecia ali por muitos minutos. Os minutos passavam em horas e cada parte descoberta fazia sentido em si. Um olho lhe dizia uma verdade, enquanto a bochecha lhe dizia outra. O queixo desmentia cada uma das verdade já ditas, e ele cobria uma nova parte ao descobrir uma outra verdade. Isso porque somente analisava seu próprio rosto.
A água sobre seu corpo já havia secado. O frescor da sua pele era mascarado pelo perfume e outros cheiros cosméticos, que cada parte sua exigia para poder manter uma outra verdade mascarada. Ele se preparava para dormir.
O dia de trabalho fora pouco produtivo, sentiu-se esgotado, o ritual do banho revigorou suas forças e o colocava inteiro em suas partes descobertas. Deitou-se em sua cama, não gostava nem um pouco de roupas, o clima ameno o permitia dormir nu. Olhando para o teto, sentia-se oprimido, lembrava da sua infância, das muitas vezes que passou suas férias escolares na fazenda, dormia sob o olhar da Lua. Não havia dormido sem roupas nos acampamentos que sua mãe organizou na fazenda... deveria voltar a fazenda somente para poder realizar este sonho, teria de ser numa noite de verão, preferencialmente sob a Lua Cheia para que tudo esteja bem iluminado, exatamente como numa noite em que viu seus amigos de infância tomarem banho pelados no açude há poucos metros de onde haviam escolhido para o acampamento daquelas férias. A água gelada, a noite clara, a alegria, as gargalhadas.
Sorriu, deveria ter sido menos tímido, não... deveria ter nunca desejado um dos seus amigos, não fora banhar-se por vergonha, vergonha por ser descoberto por suas vergonhas descobertas. Uma parte que revelaria muitas verdades de um adolescente que nunca se despira diante outros adolescentes.
Sentiu-se despedaçado, quantos amigos daquela época ainda tinha a sua volta? Quantos realmente eram amigos? A fazenda nas férias era algo que atraia os outros jovens para sua companhia... Sua mãe sempre organizara todos os acampamentos, já lhe cobravam por volta de outubro algo que sua mãe já tinha planejado desde agosto. Tentou enumerar nomes, poucos lhe vieram a mente, e muitos outros foram esquecidos. O fim da vida escolar geralmente marca a vida de muitos, os quais preservam os amigos para o resto da vida, Fernando era diferente, afastou-se dos amigos na primeira semana do fim do Ensino Médio, sua mãe decidiu que ele iria para a Escócia com seus tios antes de começar a universidade. Não ligou, não mandou e-mails, não distribuiu fotos pelas redes sociais, isolou-se de trás do muro de Adriano. Ficou um ano incomunicável, os amigos tomaram seus rumos e esqueceram-se do tímido Fernando... certamente lembravam dos acampamentos.
A Escócia não lhe serviu de nada, absorveu um sotaque insuportável que nem lhe dava vontade de falar inglês. Chacota entre os colegas do trabalho, decidiu por emudecer sua segunda língua, era como se nunca tivesse pisado em solo estrangeiro. Enviara três e-mails para uma empresa americana nesta tarde com a qual fechou negócio, sabia escrever muito bem. Se morasse um ano nos Estados Unidos perderia seu sotaque? Ou seria tratado de forma mais preconceituosa ainda? Estrangeiro brasileiro com sotaque escocês? Sua língua mataria aquela oportunidade de se abster do trabalho por alguns meses.
Afastou da mente aquela ideia que já lhe havia sido ofertada pelo chefe do escritório americano. Lembrava de um amigo em especial, Leon, o mais velho daquela turma escolar, quantas vezes foram a fazenda juntos? Ele estava no banho noturno? Não! Certamente nem teria dúvidas... Leon gostava do mato e dos bichos, seria biólogo ou médico veterinário, estaria agora em alguma fazenda cuidando de animais de grande porte, tomando banhos nus em riachos. A Lua seria sua única testemunha. Aquele monolho teria só para si a mais admirável verdade.
A manhã seguinte seria terrível, reunião para definir os próximos investimentos do escritório. Horas intermináveis de números minuciosos. E para piorar seria uma webconferência com a filial do nordeste. Sotaques e sotaques. Era óbvia sua escolha para os investimentos, sempre fora um conservador reservado, mas a batalha seria pelo risco que todos queriam correr com o dinheiro alheio. Irritação em sotaques errados. Deveria pensar em algo para distrair-se depois da reunião... A fazenda seria uma ótima opção se não fosse quinta-feira. Seus tios deveriam estar viajando, e lá somente haveria os caseiros e teria toda a liberdade, o açude pela noite... Amanhã é quinta-feira, não sexta! Carina e um café, certamente seriam uma distração e já que havia lembrado de Leon poderia saber de seu paradeiro. Sabia que você é a unica pessoa da época da escola que eu ainda tenho contato? Depois que voltei da Escócia dei a sorte de você ser minha veterana no curso de Administração. Lembra das férias na fazenda dos meus tios? Certamente não se lembraria, fora somente uma única vez e daquela vez sua tia não permitiu as meninas irem para o acampamento, eram poucas e haviam camas e quartos para todas. Por isso, os meninos tomaram banho sob a claridade da Lua Cheia... Leon não estava lá naquela noite, mas todos estudaram juntos, beberam juntos na comemoração-despedida do fim do Ensino Médio e início de sua longa estada fora do país.
Pôs a mão sobre um olho, o teto não era menos opressor... Levantou-se e abriu a janela, lá estava a Lua, crescente, um sorriso, não teve vontade de sorrir para ela. Mesmo que matasse o trabalho na sexta não teria seu sonho nu sob a Lua Cheia realizado. Deitou-se com Leon... qual seria o nome do veterinário que atendia a fazenda de seus tios? A Lua Cheia, Leon e o açude. E a reunião de amanhã... Queria afastar este pensamento por um pensamento já afastado, nem era a Lua que desejara... quem sabe na semana que vem? O vento fresco que entrava pela janela fez-lhe cobrir-se, deixando somente sua barriga de fora. Ali havia uma verdade desmentida por descobrir-se a perna, e o braço quando apareceu descontou todas as verdades, ditas e desmentidas.
Precisava ir ao banheiro. De pé, em frente ao vaso sanitário, conseguia ver seu rosto, seu cabelo já estava desgrenhado de tanto rolar na cama. O teto o oprimia mais uma vez. Era hora de retornar a fazenda, mesmo que não fosse Lua Cheia. Cobriu todo o corpo, inclusive a cabeça, não queria ver ou desmentir nenhuma verdade, a única coisa que desejava era dormir, melhor, esquecer todos aqueles pensamentos somente conectados pela opressão do teto.
Rolou tanto na cama que o lençol enrolou-se em sua cintura. Muitas verdades foram descobertas: jamais se encontraria com Leon novamente, o veterinário dos tios era baiano com um sotaque enfraquecido pela convivência com os caipiras do centro do país, nunca mais falaria inglês por vergonha, e o teto continuamente iria oprimi-lo... Já era cinco e meia da manhã e seu despertador começava a tocar, anunciando menos um dia em sua vida.

O exílio, uma doença incurável

Dante no exílio


Savez-vous pourquoi une vague tristesse s'empare parfois de vos coeurs et vous fait trouver la vie si amère? C'est votre Esprit qui aspire au bonheur et à la liberté, et qui, rivé au corps qui lui sert de prison, s'épuise en vains efforts pour en sortir. Mais, en voyant qu'ils sont inutiles, il tombe dans le découragement, et le corps subissant son influence, la langueur, l'abattement et une sorte d'apathie s'emparent de vous, et vous vous trouvez malheureux. (François de Genéve em L´Evangile selon le Spiritisme)

A palavra exílio desassossegou-me em algumas conversas semana passada, cada uma ofereceu-me um contexto diferente, cada uma com sua própria necessidade e significado. Essa profusão de sentidos, chegou mesmo a confundir o que vem a ser o exílio, tirando-o do seu lugar comum. Tenha o significado que tiver, o soar desta palavra provoca-me um estado de ruptura com a existência. Todos possuem um certo exílio, mesmo que não acreditem ou não queiram acreditar. É um sentimento necessário e produtivo, mostra-me o real significado de existir e do debater-se com a vida. Janice, no primeiro conto de Exílio e o Reino de Albert Camus, "A mulher adúltera", sente este exílio no próprio corpo ao viajar com o marido, Marcel, ela precisa de ar, precisa ouvir um chamado mudo, precisa ser livre:
Logo uma angústia sem nome invadiu-a. Desvencilhou-se de Marcel. Não, ela não superava nada, não era feliz, ia morrer, na verdade sem se ter liberado. O coração doía-lhe, sufocava sob um imenso peso que, de repente, descobriu que arrastava havia 20 anos, e sob o qual se debatia agora com todas as forças. Queria libertar-se, mesmo se Marcel ou os outros jamais o conseguissem. Desperta, ergueu-se na cama e aguçou o ouvido a um chamado que lhe pareceu bem próximo. Mas, dos extremos da noite, só lhe chegavam as vozes extenuadas e incansáveis dos cães do oásis. Um vento fraco se erguera e ela ouvia suas águas ligeiras correrem no palmeiral. Vinha do sul, lá onde o deserto e a noite se confundiam agora sob o céu novamente fixo, lá onde a vida parava, onde ninguém mais envelhecia ou morria. Em seguida, as águas do vento emudeceram, e ela nem mesmo teve certeza de ter ouvido algo, a não ser um chamado mudo que bem podia fazer calar ou ouvir, à sua vontade, mas cujo significado jamais conheceria, se não atendesse naquele instante. Sim, naquele instante - isso ao menos era certo! Levantou-se suavemente e ficou imóvel, junto à cama, atenta à respiração do marido. Marcel dormia. O calor da cama logo a deixou, e o frio se apossou dela. Vestiu-se lentamente, procurando as roupas às cegas, na luz fraca que chegava dos lampiões da rua através das persianas. Segurando os sapatos, foi até a porta. Esperou um momento ainda na obscuridade e depois abriu a porta cuidadosamente. O trinco rangeu, ela se imobilizou. O coração batia loucamente. Aguçou o ouvido, e, tranquilizada pelo silêncio, girou um pouco mais a maçaneta. Esse movimento de rotação lhe pareceu interminável. Abriu, finalmente, deslizou para fora e tornou a fechar a porta com as mesmas precauções. Depois, com a face colada à madeira, esperou. Ao fim de uns instantes, ouviu, longínqua, a respiração de Marcel. Voltou-se, recebeu no rosto ar gelado da noite e correu ao longo da galeria. [...] (Albert Camus em O Exílio e o Reino)
Janice sente essa angústia inominável. Seu exílio é lido por meio de uma longa lista de sentimentos correlatos: solidão, melancolia, saudade, languidez, depressão, insatisfação, nostalgia. O tédio expresso por todo o conto é patente na vida de Janice, faz com que chegue a esta decisiva cena e sinta-se nessa prisão, esse ostracismo que ela mesmo consignou a si mesma, "um peso que arrastava havia 20 anos". Era consciente do lugar em que se colocara, procurava uma certa felicidade que certamente encontraria num casamento, porém, como qualquer outra ilusão, não encontrou e se acomodou, e dessa forma encostou um punhal chamado insatisfação velada em seu peito que oprime e pesa de forma invisível mesmo sem rasgar a pele.  Mas, sua vontade é de libertar-se, de sair desse lugar que a incomoda à procura de outro que possa pelo menos a satisfazer em sua ânsia, liberdade essa que significa, num olhar mais demorado, um risco, um desacomodar: o calor a abandona e precisa enfrentar o frio do deserto, onde ninguém envelhece ou morre. A movimentação de Janice não termina aqui, é somente o momento em que decide enfrentar esse sentimento inominável. 
O exílio stritu sensu é debater-se com a diferença espacial do lugar que não lhe pertence, porém, há um exílio lato sensu, o qual estou elaborando, que se cria dentro do ser humano mesmo permanecendo no lugar que é seu, é o caso de Janice, ela não sente essa angústia inominável somente porque está em viagem com o marido, debatendo-se com a diferença, ela carrega isso há vinte anos, esse exílio está no próprio corpo, não existia e ali se desenvolveu.
O exílio e seus sentimentos correlatos tratam do não pertencimento a qualquer lugar em que se esteja, mesmo que este lugar seja a terra natal, a cidade em que cresceu, a casa que viu envelhecer com o tempo. Nada te acomoda, nada te conforta, poderia no passado até ter confortado ilusoriamente. Não é uma simples questão de espaço, é para além dela, pode estar no próprio corpo, não se acomoda dentro de si, é estar preso a um fardo pelos pés no fundo de um lago e sufocar, muitas vezes se pode perceber o brilho da Lua, mas não se pode sair do corpo e libertar-se. E é para além do corpo, é um aprisionamento mental, é não se sentir bem intelectualmente, é sentir a décadence. Ou, um último exílio, o temporal, é estar preso a um tempo que não te pertence, é desejar o passado ou um futuro, tanto distante quanto próximo. Enfim, é não pertercer e não possuir lugar, seja o espaço, o corpo, a mente ou o tempo.
Não é preciso ser estrangeiro para se sentir fora de um lugar. Muitas vezes, a cidade natal pode se tornar o lugar do não pertencimento, principalmente, quando seu horizonte de expectativas vai se ampliando a ponto de seu lugar não mais corresponder, não mais afetar ou mesmo satisfazer. O exílio não estava ali, criou-se ou desenvolveu-se silenciosamente, não foi necessário se deslocar, é um ato de tornar-se estrangeiro sem se movimentar. Deseja-se uma experiência que o lugar natal não pode mais oferecer, mesmo que tente o valorizar, mesmo que tente tirar dele uma virtude que ele não possui. O embate com a diferença se estabeleceu sem deslocamentos porque se diferenciou-se do seu lugar, o desconforto desenvolveu-se debaixo do próprio nariz.
O exílio corporal está relacionado com o não pertencimento pessoal, o seu lugar-corpo não lhe corresponde e sua vontade é estar em outro corpo, é desejar viver uma outra vida que ao menos satisfaça algumas necessidades íntimas, ou mesmo, numa visão mais cética, é não querer estar neste corpo, é não estar em corpo algum, é desejar uma liberdade tão grande em que fosse possível abarcar o mundo todo e tudo o que ele tem a oferecer com um único olhar, é ser mais do que um ser humano, é ser o Outro com todas as consequências que isso implica.
A mente se recusa a participar daquilo que desconsidera. Ela aspira pelo o que choca ou pelo que faz mover. Os olhos estão cansados de ver as mesmas coisas, as mesmas atitudes, as mesmas representações. Anseia por uma outra mente que possa desafiar sua própria constituição, sua própria concepção de mundo. É dessa maneira que se cria o exílio dentro de si. É tornar-se, aos poucos, décadent à maneira de Nietzsche, é saber-se doente e conhecer milimetricamente o que isso significa, é "[...] da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence - este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez somente para mim seja possível uma 'tresvaloração dos valores".Nenhum médico curou Nietzsche, foi ele mesmo que se curou no isolamento: "Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso - qualquer fisiólogo admitirá - é ser no fundo sadio". Sentir-se exilado é estar doente de uma doença incurável por saber-se que no fundo é são, e por ser tão são ou lúcido perante a ilusão que se adquire essa doença, deita-se na cama da desilusão que tem em seu corpo o vírus terminal e incurável do exílio.
O tempo determina o homem, faz dele limitado e mortal. Esta é a análise de Eduardo Lourenço de alguns poemas de Fernando Pessoa, em sua Mitologia da Saudade, "[...] por ser naturalmente 'divina', a alma é naturalmente imortal. Quer dizer, fora do tempo. Tempo e espaço são as formas originais da Queda da alma no corpo. São o próprio corpo, incapaz de se pensar como alma, como manifestação primordial da Unidade, única realidade, mesmo que não possamos pensá-la senão na ordem da pura ausência." Só se pode ser imortal quando se vence a opressão do tempo. O presente, o passado ou o futuro deixa de fazer sentido para que o lance do olhar seja não sobre o tempo, mas sobre a vida. Nesse lance que não permite que as determinações do tempo façam o objeto observado envelhecer, ser a própria memória do momento passado ou do momento por-vir, desejando algo que não existou ou mesmo que nunca existirá.
Depois de algumas peripécias, Janice, finalmente, atinge o deserto, de onde vinha aquele chamado mudo:
Nenhum sopro, nenhum ruído, a não ser, às vezes, o crepitar abafado das pedras que o frio reduzia a areia, vinha perturbar a solidão e o silêncio que cercavam Janice. Momentos depois, no entanto, pareceu-lhe que uma espécie de gravidade giratória atraía o céu acima dela. Na densidão da noite seca e fria, milhares de estrelas se formavam sem trégua, e seus cristais reluzentes logo se desligavam dela para deslizar insensivelmente em direção ao horizonte. Janice não conseguia se arrancar à contemplação desses fogos à deriva. Girava com eles, e o mesmo caminhar imóvel unia-a, pouco a pouco, ao seu ser mais profundo, onde o frio e o desejo agora se combatiam. Diante dela, as estrelas caíam uma a uma, depois extinguiam-se entre as pedras do deserto. a vida demente ou imobilizada, a longa angústia de viver e morrer. Depois de tantos anos durante os quais, fugindo de medo, correra loucamente sem objetivo, finalmente ela se detinha. Parecia que encontrara suas raízes, a seiva tornava a subir em seu corpo, que já não tremia. Comprimida com toda a força de encontro ao parapeito, estendida na direção do céu em movimento, esperava apenas que também o seu coração, ainda transtornado, se acalmasse e que se fizesse silêncio dentro dela. As últimas estrelas  das constelações deixaram cair seus cachos um pouco mais abaixo no horizonte deserto, e se imobilizaram. Então, com a suavidade insuportável, a água da noite começou a encher Janice, submergindo o frio e elevando-se pouco a pouco do centro obscuro de seu ser, para transbordar em ondas ininterruptas até a boca cheia de gemidos. No instante que se seguiu, todo o céu se estendia acima dela, voltado sobre a terra fria. (Albert Camus em O Exílio e o Reino).
Janice desejava somente correr loucamente sem objetivo, fugir do exílio que a oprimia, queria encontrar suas raízes no nada, no vazio, no inexistente, só desejava ouvir o silêncio, a calma do coração. Se integrou com algo maior: o firmamento e suas estrelas, o mundo se tornou pequeno, mais um exílio haveria de desenvolver-se dentro dela. O coração voltaria a palpitar, essa pequena epifânia somente mostrou que essa doença é incurável, não há nada de errado nela, é sã. O exílio promove os incessantes deslocamentos, seja físico ou de perspectivas. Embate e deseja a diferença, pode parecer contraditório, mas não desejar a diferença e viver dela são os sintomas de qualquer um que se deitou na cama da desilusão cuja consequência imediata é descobrir-se são e por isso mesmo desejar mais e mais a diferença. Um exílio leva ao outro, é ser conscientemente estrangeiro em qualquer lugar que se pise. Sentir-se exilado em qualquer uma das instâncias apresentadas, espacial, corporal, mental ou temporal, é saber que algo faltará sempre, é uma busca de algo que o suplemente ou lhe corresponda mesmo sabendo que em poucos instantes isso não lhe suplementará mais ou mesmo lhe corresponderá. Trata-se, portanto, de um idealismo irrealizável, uma utopia desvivível. Sentir-se exilado é saber que algo destitui todo o tempo, seja no lugar que for.
Dessa forma, sentir-se exilado é querer não estar neste mundo, ele não te conforta, é querer chegar ao momento final para que tudo deixe de não fazer sentido, é calar o que te incomoda. Mentira. O exílio é o que mantém o homem em movimento, é uma virtude, não está no rol das misérias que sofre o homem que deseja mais. Pelo contrário, são os exilados, e somente eles, que fizeram o globo girar mais uma vez, suas mentes inquietas são forças de trabalho incessante que promovem a mudança, a diferença e o choque na existência  e que torna o mundo todos os dias um lugar confortável para mais uma vez tornar-se desconfortável, um ciclo interminável, como a vida do homem insatisfeito e imortal. Janice retorna para o lado do marido: "ela chorava, com todas as lágrimas, sem conseguir controlar-se" e diz: "Não é nada, querido, [...], não é nada".