Invazável


Olhando para céu em busca da lua, não consigo enxergá-la. A chuva é Senhora da Vida neste momento, olho e fecho os olhos pela força da água que caia diretamente em minhas pupilas. Ela faz as plantas se curvarem, a terra se desfazer e nos sentimos todos menores, frágeis.
Só há um lugar não tocado por ela, aquele lugar em que me sentei, lá meu corpo se inscreve, é um lugar todo meu, não é como o coração, até lá ela faz o sangue ficar ralo, por tanta água que ali derramou. Lá, embaixo de mim, ele dança, como se ali fosse um refúgio seguro. Seco, por vezes até árido, muitas vezes quente pelo calor do meu corpo febril. Ele dança aquela dança contemporânea cheia de espontaneidade, vivacidade voraz dos movimentos angulosos, não há suavidade ali, só beija-flor, plainando e certeiro.
Meus cabelos depois de tanta água até parecem estar molhados, senti a água gelada da chuva noturna atingir meu couro cabeludo, escorrendo envolta da minha cabeça, descendo pelo meu pescoço, meu peito, barriga e pernas, mas, ali, onde eu sentei antes da chuva começar em busca da lua, está intacto.
A dança ganha mais ritmo, mais luz, apesar da escuridão total do meu sentar. A luz é própria, estrela, como o olho de uma nuvem. As imagens não mais se desfazem, performam atividade, dançam ao ritmo de raios cadentes. Os estouros daquele raio mais forte, ecoa, é uma guerra positivo contra negativo, de nuvens que se enegreceram com o tempo.
A senhora da vida não cessa, continua se avolumando em raiva, quer atingir até o fundo intacto do meu âmago, quer borrar a dança voluptuosa. Raios mais fortes e mais constantes. Ela não percebe que isso é música aos meus ouvidos? Que é através de todos esses raios que ali me vejo refletido? Ela não me ouviu com o silêncio necessário, trovejava enquanto me elaborava. Melhor assim, ganho um inimigo inculto que não consegue me vazar, que não consegue me cindir por completo. Os olhos das nuvens perdem o brilho, se fecham e choram a vida. A dança já está próxima do fim. Tem outro ato? Quanto tempo dura esse espetáculo? Não faz diferença seu fim próximo ou muito distante, ainda ecoam a secura árida dele ao dançar aquela música macabra de ecos, rossoa, ritombada ritumbante.
A chuva cessa aos poucos, os pingos rareiam, os raios se desfalecem na terra ou nos para-raios. E eu ali permaneci sentado por horas, horas sem fim, na espera. A paciência se tornou uma virtude invencível.
O espetáculo ainda não terminou, está a espera da próxima tempestade. O próximo ato é a Senhora da Morte.

Cair e voar

A Raffael

Ando viajando pelas nuvens. Subo pela sacada do meu apartamento, no parapeito, mas nunca caio. Quando coloco meu pé no ar, subo de degrau em degrau, são invisíveis. As nuvens já não me olham com aquele vigoroso e velho olhar de estrelas do passado. Elas olham e sorriem, abrem sorrisos misteriosos e flutuantes, entro no sorriso como se penetrasse o mistério dos próprios signos que as nuvens formam, formas únicas, indivisíveis, indeléveis.


Nessas viagens quase suicidas (porque não me permitem cair?) um dia, encontrei o anjo. Ele estava ali, parado, conversando com uma estrela, ouvi seu tratado secreto sobre ser a si mesmo, ele era a si e o outro era o outro, tão sereno, tão calmo, um sotaque enochiano que não conseguimos revelar os sentidos. Onde estão os sentidos? Sentimos todos eles riscados de nossas bocas, línguas e peles. Eu parei, apreciei a conversa e o anjo. Sua postura, seus lábios movendo em enochiano, que para mim não fazia sentido somente no começo, mas meus ouvidos se acostumaram, se prepararam para a língua dos anjos, signos simples mas tão plenos de significados que soam como chuva pelas nuvens. Sabia que alguma vez em minha vida, havia tomado banho de chuva de símbolos angelicais.

A estrela pelas nuvens brilhou seus olhos para mim. O anjo virou seu rosto e me viu. Logo me escondi atrás de uma nuvem. Ela sorriu e me disse que ali era como se eu estivesse nu, e não adiantaria ali me esconder, pois seria mais visível do que queria, envolto nela eu seria transparente, como ela, como tudo. Ele disfarçou que me via, era como se piscasse, fingindo que fingia não me ver. E fingiu. Fingiu tão bem que continuei minha jornada, mas com a piscadela do anjo em minha mente, e recordando o banho enochiano que havia tomado (seria um sinal de que eu encontraria aquele anjo com suas palavras sobre o eu e tu? Não poderia ser, mas foi.)

Segui em frente, mesmo assim. Queria atingir aquela nuvem que mostra a verdade, que derrama raios em minha cidade iluminada por instantes de volúpia entre as nuvens. Gostava dela porque a cada relâmpago eu aparecia de verdade, no reflexo de mim mesmo, em qualquer lugar. Era ali que me sentia inteiro. E logo ali estava ela, negra, cheia de si e do magnetismo que a fazia viva e única, especial entre as outras nuvens que transitavam quando sai pelo parapeito do meu apartamento. Aproximei-me vagarosamente, como ela sempre me pediu, “não me assuste”. Ela não tinha olhos como as outras, por isso não sabia se já tinha percebido minha presença ou não. Aprendemos juntos a vencer essa dificuldade, pois ela sempre falava o meu nome num tom sábio. Era com se encontrasse um amigo que sempre me questionava o porquê de eu ter voltado ali. Sempre busquei o mesmo conselho, a mesma palavra, a mesma voz. Não porquê não tinha entendido, mas porquê gostava de ouvi-la falar. Porém nesse dia a surpreendi, falei de anjos, não a pedir, mas a descrever, da mesma maneira que faço agora. Ela sorriu, e seu sorriso era medonho, aprendi a não temê-la, era a nuvem mais grotesca, mas a que mais me atraia. Apesar do sorriso misterioso, prossegui falando e falando, e ela abriu um sorriso maior ainda. E eu continuava a não entendê-la, até que finalmente gargalhou. E tudo brilhou pela primeira vez naquela noite e percebi que o anjo estava ali, a me observar a falar dele e dos banhos angelicais de chuva. E pela primeira vez não senti o etéreo chão sob meus pés e caí. Sabia que iria morrer, mas com serenidade me entreguei na queda.

Caí, caí e caí lentamente, minha vida não passou pelos meus olhos, mas sabia que ia morrer. Senti o chão verdadeiro se aproximando, não fechei os olhos pois queria ver a morte de olhos bem abertos. Ela não veio, quem estava ali era ele. O anjo a me segurar, seus pés firmes no chão tocaram. E eu fechei os olhos, a vergonha de ser visto por ele me cair e fez também minhas pálpebras pesarem. E ele falou comigo. Falou e falou, metade de símbolos que só eu possuo a chave para revelá-los. Quando terminou, deitou sua sentença final sobre mim. Sabia que tinha terminado. E eu somente pedi: podemos voar? E voamos.


(res)pirando e outros poemas

quando duas voltas são três
eu me performo em uma nova forma
e me transbordo em (res)piração
tudo é volta, torcimento e distorção
certezas absolutas?
somente sobre o gelo calórico polar
quando duas voltas são três
absurdamente há eu
duas vezes eu sintomaticamente eu
dois são três e voltas depois só resta forma
o acaso não existe
nem a matemática

Cegueira

A Felipe Cox

É um mistério que se materializa ao lado dele, não há respostas, só o etéreo desfeito e cintilante. Brilha tanto que ofusca sendo quase nada, e cegando. O mister-io do futuro ido. Impossível de pegar ou de achar. Ele estava ali, cego e sorridente. É estar cego e feliz, é não poder agir e ser agido. Não é um simples ser levado pelo brilho, mas é ter aberto os olhos e ter-se permitido cegar-se. Quis ser assim acima de tudo, permitiu-se! Cego e feliz! Tantos veem, tantos sabem, tantos fecham os olhos e permanecem vendo, mas estão ali, incertos, inserenos, inseguros, inverdadeiros. Só ele deixou-se ser por ele, cego e feliz. Como pode? Como permitiu-se? Foi um desejo. O de estar ali e ver como é a luz extrema do mistério que o cegou, vê cego a própria luz do etéreo. Invejemos...

eu e a noite

Quando só há você e a noite
algumas estrelas invisíveis aparecem
a noite, manto negro, de tanto ser observada
mostra suas intimidades
virgem a ser despida
sem medo e com curiosidade
é meu olho ardente que a mostra
são meus olhos que detectam o intocável
envolvidos ambos pelo desejo mútuo
nos descortinamos
pegamos fogo e estamos nus
sozinhos, distantes, serenos, acima de tudo
ela sem olhos
eu quase invisível
nos encontramos num desencontro
o acaso
há mais verdade nessa invisibilidade
do que na realidade

Névoa

sim era só o invisível foi um pequeno fluxo de esperança mas era mais um espectro como todos os outros chorei ri e me cortei os eventos passam recalco o mesmo problema a perfeição mas estou aqui mais inteiro do que nunca mais leve independente e delicado eis o meu título e meta delicadeza quero descer da roda gigante não quero mais brincar ali quero ser eu mesmo a roda em si quero ser e ver os outros viverem em mim obrigado por tudo mas já passou passado é passado e a memória o resgata e o resgatará o futuro é imprevisível e o presente é necessário morte a derrida é o renascimento de mim mesmo na névoa que é ele

A impressionante visão do outro.

A Renato

Deparo-me com ele invisível diante de mim. Sinto sua presença, meus olhos recalcam a própria visão. Sinto seu cheiro, sinto seu gosto, mas não o vejo. Tendências cegas numa virtude total de invisibilidade... Ah quero tê-lo, quero tocá-lo, mas não o vejo. Onde está seu cheiro? Por que não forma uma imagem dele mesmo? Seu gosto-cheiro saboroso pela manhã bocejando é a própria insorte da vida efêmera que nos propomos! Quero vê-lo! Por que não posso?
Ele fala! A palavra forma imagem viva de sua carne, a escrita do corpo serena sobre a minha pele. Sinto seu toque pela primeira vez como em todas as vezes. Toca-me por que nunca fui tocado. Olho o som de tua voz e ouço as virtudes de sua boca.
Ele cala! Sua carne-palavra se desfaz, mas sua presença-cheiro-sabor ainda é marcante em mim. O toque é presente sincero e feliz, por mais que isso possa significar. Sim, ele é um significado cheiro-sabor. Sua presença é ausência de corpo e muito de palavras, é o corpo vivo da palavra. Que sua invisibilidade dure por toda a eternidade e se faça presente num simples abrir de boca, num gesto sincero de exalar de si mesmo os humores do corpo, e fazer junções cerebrais palativas em mim. Como você pode estar presente-ausente por tantos anos? Só uma possível resposta: a distância... Mas o que significa ela? Nada, como o acaso. Roda-se a roda-gigante mais uma vez. Vamos ver onde ela vai parar...

Dolo e dano

As olheiras dão um ar tão macabro e a íris está tão dilatada que não se sabe mais o que é olho e o que é profundidade, a pele branca enganadoramente tétrica, morte aparente, os dedos roxo-preto-prateados por falta de circulação sanguínea, tudo é sinceramente preto e branco, escala de cinza em alta qualidade. Tudo isso dentro de um buraco, que tem muitos nomes, muitos deles interditos, e de tão diversos que não serão nominados muito menos enumerados. Dói. Estou tão arredio que o simples contemplar do buraco em que me acho é ato insólito, é inválido, insano, por vezes. Mas estou exposto, vidro por toda parte, e uma pequena plaquinha no canto direito inferior: “Vontade eterna de si mesmo” – ser humano em estado avançado de putrefação, terra e ar. Me olhe, me sinta, mas não tenha medo, tudo é uma pequena e leve narrativa da minha própria e imprópria autodestruição. Estou mentindo o tempo todo, quero atenção serena e sincera. É só isso! Quero ser ouvido! Já fui e sou muito só ouvido... Quero ser sol e soul. Convergência em torno de mim, exposto, dentro do buraco. Obra indecidível de mim mesmo, para me ver é preciso se arriscar, subir pelo vidro e olhar sinceramente dentro do buraco e desejar profundamente não ser morto pelo veneno prateado que escorre das pontas luminosas dos meus dedos. Tenho tanta miseris de mim mesmo que até me abandonei, deixei lá, aquilo que é, simples e só, e agora me acho aqui do lado de fora do vidro. Incompleto, rasgado em dobras, partido atravessado. Nunca teria audácia de subir o vidro e dar uma sincera visada em minha vista. O olhar de mim mesmo seria mortal vivaz. Interdito tempo espaço, em espirais sumo distorcidas. Porém, o momento final chegou, quebro o vidro, expulso todos do meu derredor. O circo acabou, a lona está rasgada e a aberração já se autoconsumiu em nada. Só resta dolo e dano, tudo/nada mais.

Permita-me uma morte, por favor!

Ele ainda não voltou. Meu apartamento continua vazio e um som ecoa dentro dele ribombando serenações. Está quinze minutos atrasado! O atraso nunca me incomodou, só que tem me dado ideias recalcitrantes nesses últimos dias. Como ele se atreve a fazer isso comigo? Quando eu penso em me atrasar, em viver mais um pouco a liberdade condicional que me foi (auto)concedida, seja por mais cinco míseros minutos, ele fica louco, insandesse em ligações telefônicas até a desestruturação passiva de mim mesmo pela culpa de ser um pouco feliz fora do antro familiar que se constituiu pelo desejo insano da segurança e solidez. Ele quer ouvir a minha culpa pedindo desculpas, nesse jogo incessante de prefixos e sufixos. Começo a imaginar: será que sofreu um acidente de carro? Logo meu celular vai tocar, é minha esperança, e será um policial: "Estou ligando pra falar que ele morreu, precisamos que você venha reconhecer o corpo!" Eu pensarei que o farei urgentemente, mas fingirei como sempre fingi: o triste, o impossível sensível. E irei felizcontido, seria minha liberdade total, contenção de felicidade para explodir no futuro livre do dom(ínio). Mato morrendo para renascer no círculo mais feliz de mim mesmo, vidas dentro de vidas, vidas em dobras e desdobras, sendo um novo ser desdobrado me redobrando no futuro. Tudo seria novo! (Olha minha imaginação trabalhando) Eu seria diferente, poderia usar a roupa que sempre quis, os óculos que sempre sonhei, fazer com que minha mão se movimente daquela maneira única que sempre quis que ela se movimentasse e sempre recalcou, no ato inseguro de segurar uma mão na outra. Viajaria, conheceria os recantos mais ilusórios da própria terra, entraria em vulcões (ato até o momento poeticamente irrealizável), no fundo dos oceanos e voaria nos limbos serenos gelados e sentiria a verdade, próxima e impossível, ao mesmo tempo. Tudo isso por um derrapar inconteste das rodas. A liberdade seria me concedida pelo acaso, mesmo não acreditando nele, mas por um pequeno gesto de confiança, sentiria um pouco de culpa, mas só um pouco, só no começo, porque teria (me) matado pelo pensamento, mas como eu sou esquecido essa dor logo seria cicatriz e assim seria somente mais um borrão na minha memória. Sim eu seria feliz! E se não fosse, inventaria uma felicidade-novo-conceito, aquela que só é para mim a fim de me sentir naquela zona de conforto únicoabsurdo. Já faz trinta minutos de atraso, meu sonho já é quase realidade, só mais um pouco desejo: as cores das paredes mudam, agora são brancas, os móveis se desfazem, são todos de madeira com almofadas pretas peludas, e só resta um risco vermelho nas paredes e  no chão um único tapete felpudo e uma pequena escultura rustica ao canto, seria assim, até que a maçaneta moveu, o trinco da porta se agitou pela presença da chave, das chaves porque ele nunca soube de primeira qual era a chave do apartamento, penetrando seu segredo, e revelando/abrindo a porta/passagem. Era ele. Abro o sorriso indecidível e digo: "você demorou!" e penso: quase fui feliz! Preciso me matar mais um pouco.

Símbolo-segredo

A Wellingnton Furtado Ramos

simbolo consiste no exercício de poder que permite à pessoa que detém um determinado segredo quebrar um objeto qualquer em duas metades, guardar uma das partes e confiar a outra a alguém que deverá guardá-la para atestar a sua autenticidade. (Eneira Maria de Souza)



Quero te entregar metade do meu símbolo. Quero te mostrar e testar ao mesmo tempo a validade do meu segredo. Porém, o meu segredo muitas vezes está mais que partido pela metade, está reduzido ao pó-estelar de muitos desejos, mas continua segredo-símbolo. Um segredo só pode ser compartilhado entre duas pessoas? Porque não com todas? Mas meu símbolo é tão secreto que às vezes até aqueles que possuem seus estilhaços nem saibam o que portam, recalcam a ignorância, o esquecimento, ou a audácia de simplesmente querer não saber do que se trata. Quer dividir meu símbolo? Quer compartilhar o meu segredo? É só pedir, é só ler, é só ver, eu sou símbolo sonante sinal, leia-me, olhe-me, mas faça-o com um prazer inenarrável. Ter os meus símbolos não é um ato passivo de pura lealdade fraternal, é um ato litigioso, quase religioso de portar uma parte de mim mesmo, já escrevi meu testamento é só ir lá e ver/ler/rir/lembrar/mentir, tudo fica para todos e nada fica com ninguém. Já revelei meu nome, minha idade, meus desejos, o segredo é símbolo, é mais profundo, é mais idílico, é mais sensível, é delicado. A entrega da metade do símbolo está feita, é um sacroofício, onde minha carne é reposta no altar da autodestruição. Mais uma metade que se vai. Mais um desejo que se re-parte, fique preparado, estou pronto para testar a sua metade e ver se você realmente porta o meu segredo. Posso abrir seu peito a qualquer momento, posso, com minhas unhas, arrancar seu coração e com as minhas mãos pulsá-lo com o frescor doce do calor da palma cheia de pecados inocentes. Se for a metade verdadeira de mim, ganhará outro segredo, se não for, aprenderá que eu também sou a mentira e ganhará uma parte verdadeira de mim, só por misericórdia. Um dia haverá tantas partes de meu segredo, de meus símbolos, de minhas cicatrizes, de minhas dores, de mim, enfim, que já não serei mais reconhecido, serei simplesmente, serei segredo-símbolo.

Soneto do sono

Aos alunos da Escola Municipal Etalívio Pereira Martins

(É por essas e outras que eu gosto de dar aula... primeiro esse soneto, depois as maravilhosas apresentações sobre os poetas brasileiros.)

E eu que achava que soninho é soneto
Mas não é não, é dois quartetos e dois tercetos
Quero sonhá-lo em cada vão momento
O pequeno som desse soneto.

Se sento e leio fico sonolento
Se sono sonho a cada vão momento
Se o sonho acaba fico rabugento
Quero sonhar o sono soneto.

Que infância boa àquela do soneto
De longos sonhos sem ressentimentos
De amor de colo e de acalento.

Mas agora sigo junto ao vento
De braços dados leio um cumprimento
Nesse sonho nos meus aposentos.

da aluna Thaynara. (Que orgulho!)

Um poema para desfazer a ilusão

Debaixo de terras vulcânicas
Aquelas que o vulcão secou
Ao devastar está ele
Ancião de si mesmo
Criador de sua própria tradição
Somente a ponta de seus dedos
Permanecem para fora da terra
Como a sentir o medo ecoar
Debaixo de terras vulcânicas
Daquelas que o vulcão devastou
Ao secar moldou ele
Virtude de si mesmo
Inventor de seus próprios dedos
Redirecionou a tradição
Com medo de sentir o eco

Das sereias, pés e novas-máquinas

Circurnavegando pela noite
As sereias vão sempre pela esquerda
E eu pelo meio
E horizonte verticalizado
Tendências pós-tudo
Sorri, mais uma vez e me olha
Tendências pós-carências noturnas
Eu ponho um pé no chão
E os sentidos riscados do dicionário
Essa palavra já não é mais
O outro pé na fumaça
Subindo em direção ao chão
Olho mais uma vez
As luzes estão apagadas
Meio peito se enche de desejo
Viro os olhos
Mexo os dedos
E assim eu desconstruo
Conexões ousadas
Gerasensação é a nova máquina de chilrear
Canta novas canções ao pé do ouvido
Mão na nuca e oito voltas
Do lado direito novas sensações
Eu no meio e as sereias rondando

Borboleta

a Robson 

a definição das cores só se dá em um único lugar
um lugar de poesia colorida asa
asa frágil de uma volta pelo ar sem destino
voo com um destino azul
pouco colorido no começo
mas vermelho no final
na rasante das cores misturadas
afinal uma cor arroxeada
é o voo libertador incerto
o sublime está no banal
como eu no ar
leve delicado

velha roupa nova

Ele sentou-se novamente no mesmo banco. Olhou para um lado e para o outro. Abriu o livro que trazia na bolsa jeans azul. Se o livro estivesse de cabeça para baixo ele não teria percebido. Passou os olhos pelas letras. Lembrou. Recalcou. Outros olhos nas letras e pegou um Trident de canela no bolso lateral da bolsa. Frescor com letras, mesmo que sem sentido, letras frescas. Os olhos não paravam, seguiam de um lado para outro. Até enganava bem! fingindo que estava lendo. Olha para o celular pretinho e pequeno que estava no seu bolso da calça e não da bolsa que pulou com certa destreza para fora e brilhou, olhou sem objetivo. Quando a luz se apagou, lembrou de ver as horas e apertou mais uma vez os botões e brilhou novamente, era cedo! O ato de esperar sempre incomoda. Olhou para dentro de si, num jogo novo que acabara de descobrir e viu, o esperado inesperado: uma roda-gigante! Tudo bem que a imagem já tá cansadinha de aparecer e reaparecer nestes escritos que se valhem de palavras e virtualidade insanas, mas é o que exprime o que esta personagem quase-insana sente! O mundo rodou mais uma vez. E a cada volta da roda-gigante, as coisas mudam, as pessoas aprendem. Às vezes, continuam a mesma, mas a grande mudança é a volta a mais. Ele permaneceu lá! Olhou de novo para fora de si! E tudo permaneu igual. Quase escrevi a palavra errado no lugar de igual. Mas qual seria a diferença? Ele pegou suas coisas, guardou o livro, cuspiu o chiclete, pegou um Halls preto, olhou o celular mais uma vez e se foi. Só o erro ficou, desculpe, a mesmidade!

A felicidade não é deste mundo

Ele olhou para traz mais uma vez. Só para ter certeza de que estava agora só. Sorriu, sinceramente, aquele sorriso que só se pode dar sozinho, em que não é possível flagrar o próprio rosto, pois nem o espelho pode vê-lo, sente-o de dentro e ele é a expressão da própria felicidade, exatamente aquela felicidade que é impossível para qualquer humano. É uma felicidade impossível, mas que existe na Terra por frágeis cinco segundos. Por mais que ele rememorasse o momento, o mesmo sentimento jamais voltaria, ele poderia mesmo pintar aquele momento eternizá-lo adornianamente, fazê-lo sonoro pela letra de uma música, mas não, nada neste mundo poderia trazer aquele cinco segundos de um sorriso inflagrável de volta, sente-se algo muito próximo daquela felicidade, mas ela é impura, inconsistente, inverossímil, às vezes. Poderia até ter outro momento como aquele, idêntico, mas a virtude da primeira vez, e o desuso do próprio sentimento, jamais traria aquela felicidade de volta. Infelizmente, ele já teve direito a toda a felicidade possível no mundo para uma única pessoa naquele instante do sorriso que não poderia ser visto a não ser pelo próprio coração de dentro para fora. Era o toque, o beijo, o desejo? Nunca ele saberá, porque nunca saberemos se é o conjunto, o instante ou mesmo uma ligação entre os neurônios que não deu certo que faz com que a felicidade seja possível por milésimos de segundos em alguns corpos da nossa fadada humanidade ao vale de lágrimas que se tornou nossas complexas e tecnológicas vidas. Sem pessimismos ou ceticismo, a felicidade existiu, por pouco tempo, mas existiu, ela não foi compartilhada, nem aceita como um momento único, pois é esta narrativa que a torna assim, pode ser mesmo que nem mesmo tenha realmente existido, posso, como narrador, estar criando esse momento de vivência-pela-linguagem. Nunca saberemos, somente ele, que pode ser eu, para falar: “Realmente fui feliz!” Aquela felicidade que do nada entra inunda a vida e esvai-se pela mesma porta. Só posso dizer que continuamos na busca, é algo que nunca ninguém saberá dizer se foi ou não! Até termos acesso completo a felicidade, aquela prometida pelas religiões, pela filosofia ou pela esperança boba e inocente, e lembrarmos: “Ah, sim, naquele momento, eu realmente fui feliz!” E sorriremos o mesmo sorriso! Será que alguém estará lá para observar e sorrir junto e compartilhar o invisível?

o abrir dos olhos

Acordar-te é meu único desejo. Ver a face do sono reposta sobre a tua e ter a primazia do primeiro sorriso do primeiro olhar do primeiro osculo. Que a repetição infinita do trauma se faça cicatriz em meu peito, assim volto sempre a rever o mesmo e único belo necessário fato. Os dedos percorrem avenidas de satisfação e a surpresa de uma curva perfeita se fez e desfez toda a ilusão de uma única punição. Não sinto mais culpa, ela se foi, sou outro, sou o Outro. Sou eu que tanto desejei que sempre esteve fora de mim, no espelho, nos relâmpagos de uma janela, na calçada a ser observado. Eu e ele-eu somos um único ser, posso ser tudo o que for, mas disso eu tenho certeza: sou um só! E a surpresa de também receber o que ofereço é a melhor notícia do vão pelo vão. Esta narrativa, ou borrão, rascunho e medo, é apenas uma lembrança, para a eterna repetição em minhas córneas que um dia se fecharão, eu sei, mas que enquanto não se feche, veja, o abrir dos olhos.

dois poemas

para Mário
dois poemas se fundem num
um que insiste em ser verdade
o outro flana realidade
trocas destratam as próprias palavras
verdade e realidade só na poesia podem ser profetizadas
e eu como poeta profetizo a mim na cena da própria sorte
escrever as próprias notas da vida
entre a verdade e a realidade só pode a ficção
de saber que tudo era mentira e agora em vão se transformou
mudanças camaleônicas que todas já previam
que tipo de mentira essa que inculca em si a verdade?
e que verdade é essa que se esconde da própria realidade?

Infância

Meros acasos

dentro de um quarto lacrado
asas cortadas
insano

voar e bater nas grades
implora
volta

serenidade encarnada
me olha
diz

a infância não volta
ocaso
acaso

Convulsão

É fusão dos sentidos
com a fusão de todos os tudos
persuasão insana
repercussão dos mundos
são são e não serão
confissão e um vulto

terminar com a ilusão

Tenho pouquíssimos segundos para contar o meu próprio fim porque ele já está muito próximo de mim que sinto seu fungar no pé do meu ouvido sinto um prazer deletério que pode me mostrar a fruição de um mundo novo que irá se desabrochar em desilusão ou mesmo em uma alegria sádica contemporânea desejos a parte tudo o que traz a morte até o meu percalço é a indecisão até mesmo a indecisão desde momento autodestruidor aniquilante e desinformante os sentidos tornam-se vagos insinceros e verdugos de minha própria desilusão virtudes a parte não tive nenhuma somente aquelas que me atribuíram e sorrateiramente me tiraram a única sobra é a morte desilusão porvir devir inconveniente e necessário o adeus é uma nova emboscada que faço a mim mesmo razão de uma própria infinitude esse texto se desfaz em sua própria tessitura porque seria necessário um microscópio para lê-lo pois seus sentidos não estão aqui ou ali mas sim dentro de cada letra desejosa de significado em si mesma e estuporada verdade está em forma de uma ilusão não queria ter terminado com ilusão.

Medo

Eu tenho medo de escrever mais uma linha.
Não me leia no intervalo.

Antropofagia

Eu comumito
um poemavelho
todo novo.

Eu e suas gares
Ele e meus desejos.

Há algo aqui dentro!

Há algo lá fora. Já é a segunda vez que olho pela persiana e somente vejo a água que cai tranquilamente do céu. Não há trovões, só a necessidade do céu desabafar, como nós fazemos com nossos amigos. Mas já olhava lá fora pela quarta vez. Resolvi inventar algo para fazer e peguei meu notebook e comecei a escrever uma história de alguém que tinha medo da própria sombra. Era como se ela pudesse comê-lo e mostrar que o inexplicável fosse mais forte que a realidade. Sinceramente, todas as histórias que escrevi nunca foram salvas. Fazia isso pelo gosto de ver as letras aparecendo aos poucos pelo toque dos meus dedos no teclado macio do computador. Quando terminava uma história sempre as deletava. “Deseja salvar o documento?”, “Não”. Olhei mais uma vez para conferir, mas era para ver se ainda chovia, mas não custava nada olhar para lá e ver se ali estava ele. E não estava. É a voz do passado que ecoa e destoa. Já tinha olhado um zilhão de vezes por aquela janela. Todos que tocavam a minha campainha já estavam acostumados a olhar para aquela janela para conferir se eu realmente escutara o sonoro toque dos sinos. E de lá eu confirmava quem era o ser oblíquo que queria falar. Às vezes, já recusei a abrir a porta para pessoas não acostumadas a mirar a janela, geralmente os sempre incômodos importunos. Observei muitas vezes os relâmpagos caindo do seu, em direção dos prédios do centro da cidade. Como aqui caem raios! Descargas elétricas capazes de matar... por que um raio não caiu nele, naquela ocasião? É uma boa pergunta, pois chovia no dia, e era uma baita tempestade. Acredito que vi um raio partir o céu, mas era tão longe que muitos segundos depois percebi a janela tremer. Som que perturba, imagem que estremece, é a definição de vê-lo, é a definição de relembrá-lo. Há algo lá fora. E preciso manter o olho na janela para ver se ele não se aproxima demais da janela, pois, se da minha cama olhar para o vidro e vê-lo me olhando, posso surtar, só de pensar na proximidade do ato. Mas desde aquele dia cruel e chuvoso ele nunca mais apareceu. Mas desde de lá cuido dele ali. Ele foi impetuoso apareceu entre um raio e outro e me olhou profundamente nos olhos. Sentiu meu medo e piscou. Mostrou sinceramente que gozava com meu medo. Há prazer em tudo. Não sei do que fiquei com mais medo. Se foi do modo como ele apareceu entre as gotas iluminadas da chuva ou mesmo de reconhecê-lo entre tantos ignaros fatos. Medos a parte senti algo tão verdadeiro que aqui está minha narrativa repetindo a mesma fala a mais de quinhentas palavras. Apesar da chuva, minha campainha tocou. Sinceramente nem olhei pela janela, pois sabia quem era. Somente não acreditava que Ricardo teve a coragem de sair na chuva e vir me visitar. Havíamos combinado essa tarde juntos no shopping no dia anterior. Não sei o que me levou a ser amigo de Ricardo, não éramos nada parecidos. Ele chegou calado, me abraçou como sempre fazíamos. Subiu as escadas antes de mim, como se fosse o dono da casa e nem olhou para trás. Fui à cozinha e peguei uma coca-cola para nós. Quando entrei pela porta de meu quarto vi Ricardo sentado no balcão da minha janela como já fiz centenas de vezes e vi sua imagem refletida na janela. Ele me olhou e sorriu pelo reflexo. Não sei se foi por mim ou pela coca, mas nem se virou. Acho que ele também me via pelo reflexo. Aproximei-me e entreguei seu copo de coca. Nem assim ele me olhou. Sua mão pegou o copo, sem olhos, e levou a coca direto a sua boca. Sua garganta agradecia pelo líquido que por lá descia. Via sua garganta se mover pelo reflexo. Seu pomo de adão se movendo para cima para baixo, como numa propaganda de refrigerante. “Sua felicidade transforma”. Pena que minha vida só in-forma amorfa. Ricardo depois de tomar sua coca de um gole só, perguntou se eu conhecia aquela pessoa que estava parada na chuva lá embaixo. Gelei e saltei para a janela. Sim! Sim! Conhecia. Era o mendigo que morava ali e estava aproveitando a chuva. Ricardo se assustou com meu salto. E eu também... mas não era ele. Expliquei para ele que há muitos meses vi algo estranho pela janela que realmente me deixou com muito medo. Ricardo se interessou pela história. Seus olhos verdes se dirigiam aos meus castanhos. Um raio havia caído longe dali e quando olhei para a rua vi alguém muito parecido comigo lá embaixo e quando realmente havia percebido que era eu lá embaixo, a janela tremeu devido ao estrondo do raio e caí no chão batendo minha cabeça. Quando levantei, ele já não estava mais lá. Ricardo riu, perguntou umas duas ou três vezes se eu tinha certeza se realmente tinha me visto pela janela. Riu novamente e perguntou se não tinha visto o mendigo e tinha confundido comigo mesmo, devido ao susto do raio. É claro que não confundi. Estou acostumado aos raios, vivia contando os segundos depois do clarão, para saber o quão longe eles estavam. E se eles caiam por perto, nem tremer, tremia, de tão acostumado. Ricardo riu. Porém, parou de rir levemente, como se lembrasse de algo. Soava estranhas as palavras de Vitor, mas sim, já havia acontecido o mesmo comigo. Ver a si mesmo é muito freak out, mas não tão surreal quanto eu poderia imaginar. Ao dormir sozinho, a gente imagina muitas coisas, sente muitos medos. Sabemos que a casa está vazia. Nossa mãe não está lá na caminha dela, roncando, às vezes, que nossa irmãzinha está já tendo sonho com os anjinhos. Mas eu estava lúcido, aquele dia, nenhuma sombra havia me procurado naquela noite. Ninguém havia me aterrorizado. Nada dentro do guarda-roupa, já havia verificado, é claro! Até que cochilei ao ler. Ao acordar estava abraçado comigo mesmo. Olhei-me nos olhos e senti a mim mesmo ao me afagar. Loucuras pessoais, privadas. Desejos, acredito! Ricardo riu novamente, perguntei o que ele tinha pensado e mudou de assunto, simplesmente, ignorando o fato contado e o acontecido. Porém, argumentei que tinha resolvido a questão, pois quando tinha entrado tinha visto a imagem dele refletida na janela e poderia ter sido meu próprio reflexo que teria visto de forma distorcida pelo raio e bater a cabeça poderia ter sido traumático. Realmente traumático, por meses que observava a janela em busca de mim mesmo! Resolvemos encerrar aquele assunto. Ricardo contou-me várias histórias. Enquanto a chuva parava. Mostrou me vários caminhos entre labirintos insondáveis. E até sentimos profundamente a falta do sol, apesar de sem chuva, o céu estava muito negro, para irmos até o cinema rever o magnífico filme do dia anterior. Por mais que estivesse tudo resolvido em minha mente, sempre olhava pela janela para me ver, nunca olhara na janela. Daquele ponto de vista de mim mesmo, já estava cansado. Tinha a esperança de sentir aquele medo novamente. Mas já não o sentia mais. Ricardo era um preenchedor de ambientes. E seus olhos preenchedores de mim. Acho que não suportaria mais uma sincera olhada e desci para fazer um lanche. Ricardo ficou olhando pela janela. Provavelmente querendo me encontrar... pensamentos meus! Quando voltei estava deitado em minha cama com meus mangás. Coloquei o lanche em minha mesa e lembrei-me de meu notebook ligado e o chamei para ler minha história ainda não apagada. Levantou levemente. Leu empolgado, mostrando-me frases e arrumando alguns erros de português. Sempre que havia tempo para ler minhas histórias, sempre me perguntava por que eu não colocava em um blog. Dizia que tinha vergonha. E recomeçávamos uma velha discussão sobre o valor da palavra. Sempre fechava essa história, deletando o escrito e mostrando uma nova música. Éramos especialistas em desviar assuntos. As horas passam muito rápido. E novamente estava sozinho na janela. A chuva retornou, desta vez mais forte. Raios, um clássico da minha janela. Agora conferia a janela pelo mesmo motivo de antes de mim mesmo por lá: ver o mendigo banhar-se. Mas desta vez ele não achava graça, estava em baixo de um papelão, procurando uma marquise. E a cada raio, me olhava na janela. Ria, era isso o tempo todo. A janela tremia e nem sequer me mexia. Tudo estava resolvido. Mais uma vez, os olhos de Ricardo mostraram a resolução. Enfrentava a mim mesmo em todos os raios. O tempo todo. Já até explorava outros aspectos de mim mesmo, de meu quarto e até daquele eu que aparecia atrás de mim, em certos raios. Sinceramente, há algo aqui dentro.

Dor

O som é algo difícil de ser explorado. É preciso muita atenção. Detalhes pequenos não são percebidos por nossas orelhas destreinadas de atenção. Somente o fone-de-ouvido pode resolver meu problema de surdez desconcentrada e mostrar para mim o mundo completo dos sons musicados. O novo cd é sempre melhor que o velho. Novas experiências, novas ousadias. Virtudes insanas daqueles que buscam no som eletrificado a única e última salvação para aquela dor que fica no peito reticente e latente. Vou até a sala escura, somente há o domínio da falta. A falta completa o ambiente, será o ambiente preenchido por ela? Mas uma luz começa a piscar mostrando que há várias pessoas reunidas. Pela falta? Pode ser. Ela se torna frenética, o som do novo cd embala todos. Malade et ballade. A sintonia não é complementar. Num piscar vejo a outra. Pernas perfeitas enredadas por um vestido de seda paranóico subindo e descendo, deixando o desejo transparecer vivo, quase é possível tocá-lo, embala-a junto com a música. Toca-lhe as pernas com as pontas dos dedos e desce sinceramente até o calcanhar e retorna até o embalo desfazê-lo e seguir até a próxima piscadela da luz. Outro: pura força em formas bélicas são agora hirtas pelo som inovador, movimentos secos mas leves e permitidos somente em situação especial de som escuro piscante. Outros também (não) estão lá: embalam-se embelezam-se desejam-se invejam-se cruzam-se desvirtuam-se. O que um novo som não faz aos meus ouvidos... Visto que a inocência não me permite ir até eles. Minha vontade os trazem. Todos estão aqui e vislumbram o meu desejo: o único real e presente. Como me toca. Como me evoca a insanidade de um arrastar de pele sobre pele. Meus pelos se arrepiam e torno-me uma única e só vontade: desejo. É uma pena que a música não dure para sempre. Como dez minutos poderiam ser a eternidade e assim esse momento único de felicidade solitária poderia ser o paraíso de anjos e bosques bucólicos barrocos. Mas entre um som e outro há um terceiro irritante, nunca deveria haver pausa para as trocas de faixas. Pois é entre as faixas que esse som irritante passa por cima jorrando toneladas de gás intoxicante aos ouvidos. A janela deveria manter o som fora fora e o som de dentro dentro... Melhor, não deveria haver janela... pois se ela contivesse não seria janela, seria uma outra parede. Deveriam ser todas paredes-janelas como para fantasmas que não são barrados por elas. Não se vão! A próxima música só está começando! Eu prometo ficar de olhos fechados. O som novamente se inicia e vislumbra linhas verdes fluorescentes, todos reanimam-se e dançam, perfectíveis em sua razão e virtude bela somente. Fecho os olhos e sinceramente sinto. É quase como a pele sobre a pele. É sentimento sobre sentimento. Tocando-se, retribuindo-se. Abro os olhos e espio por milésimos de segundos e vejo o invisível. Estranho. Sigo de olhos fechados. Sinto o som e prossigo. Porém a vontade de entender o ocorrido me fez abrir os olhos novamente e lá vejo o indizível. Fecho os olhos de susto. Com tanta força que crio rugas onde os sons rebatem e criam uma batida diferente. O toque do improvável desfaz todo sentimento sobre qualquer sentimento e endureço meu corpo antes leve pelo embalo. Os olhos mais enrugados até tudo parar... momentos invencíveis. A mesma eternidade da felicidade só que desta vez realmente eterna, pois só o medo e a dor podem o ser. Ao abrir vagarosamente neste momento de eternidade os olhos, reconheço o tom da pele, os pelos longos do braço, os dedos longos, os dedos feridos, as unhas comidas pela ânsia do nada. Subo os olhos e vejo a voz invadir os meus ouvidos. (Onde estão meus fones?) É como escutar um gravador reproduzindo os mesmo timbres azucrinantes de somente escutar a minha voz por mais de um dia. E ver aquela pinta no pescoço e ver o sangue pululando pela jugular da mesma maneira que sempre o senti subir e descer. A barba por fazer irritantemente perturbadora, pois coça. A bochecha saltada de tanto sorrir da desgraça. E os olhos castanhos onde pude me aprofundar-me na imensidão hipnótica de mim mesmo. É a dor de reconhecer-me ali ao meu lado por falta de companhia melhor. Não é só porque minha história é sobre o desgosto de ser eu mesmo. Mas ter de me enfrentar, no momento em que apago meu ego, é doloso. É doloso entender que não sou. Reticências preenchíveis por toda a falta. É só escolher. Fecho os olhos... mas abro as mãos em concha e seguro as pálpebras para me manter sob aquele signo de dor que sou eu mesmo. Olhos novamente profundamente nos meus olhos e vejo o passado rebuscado de desesperança. Por que eu fui estudar tanto? Deveria ter aproveitado tudo e todos. As letras não me preenchem como o som. Só a poesia, eu confesso, aquela que é reconhecida depois da vigésima leitura e finalmente decifrada e devorada pelo decifrador. As letras não me preencheram, só os poucos sentidos perdidos entre as linhas. Ainda posso escutar o som. Resgata-me. Rex tremendae majestatis Salva me Salva me Salva me. É som é pedido. Por mais que eu não acredite nesse rei, um outro qualquer pode me salvar. Os dedos doem pelo esforço auto-dolorido. A pressão de ser eu mesmo verdadeiramente por poucos segundos é excludente que preciso sair de mim e viver. Voltem fantasmas-desejos outra música já já vai começar.