Cigarro

Caneta azul, folhas pautadas, mesa de estudos, dois livros e cadeira com rodinhas. O conjunto era perfeito. Mas algo estava errado. Revisou os instrumentos. Rolou a caneta sobre as folhas. Não, algo ainda está errado. Rodopiou com a cadeira. Aproximou-se mais da mesa. Não, não era isso ainda. Verificou o título dos livros: On the road e Rua dos Cataventos. Era isso! Não sabia se seria um poema ou um romance. Abriu a gaveta e de lá retirou um maço de cigarros. Colocou um no canto da boca e não acendeu. “Será um poema”, pensou sozinho bem baixinho dentro do silêncio do lado esquerdo do cérebro. Recostou na cadeira, coçou a orelha direita e pensou no tema, “a felicidade de se escrever”, há muito tempo vinha celebrando um único rito em prol da própria palavra, não tinha percebido, mas logo, logo seria visível e contundente a impureza dessas novas-velhas palavras. “O som das palavras”, com certeza seria um dos versos. Provavelmente o último, lembrou-se de Poe. Parou, rodou com a cadeira de novo e percebeu que nem tinha acendido o cigarro. Abriu a gaveta e procurou com as mãos sem os olhos o isqueiro. Achou uma folha de papel, retirou e leu: “Palavras sonoras”. Sim era o mesmo poema com o fim no começo e o fim dizendo: “Futuro pensamento harmônico”. “Esse é um bom começo. Pelo visto seria o poema invertido e sem fogo. Colocou o pé esquerdo sobre a cadeira, seu bolso se alargou e o isqueiro caiu no chão. O estalo nem incomodou o zanzar da caneta azul passeando pela folha pautada. Não sabia mais porque tinha comprado tantas folhas pautadas. Nunca seguia as linhas, escrevia com letras tão grandes que às vezes ocupava três linhas e meia. O cigarro pulou para o outro canto da boca e apontou para cima num movimento leve e grotesco. A caneta descansou. Leu o poema em voz alta, o suficiente para perceber que já tinha escutado algo parecido, há algum tempo. O cigarro baixou rispidamente, como que impotente, perante o poema reescutado. Olhou para o chão como que a acompanhar o movimento do cigarro e viu o isqueiro e o pegou, esboçou um sorriso e lembrou-se do poema da gaveta. “Ah, sim!” Resolveu unir os dois poemas numa obra-prima, e sem a ponta flamejante, o cigarro subiu novamente. A esperança se reuniu e vibrou. “Isso vai ser bom!”, ressoou como se fosse um complemento a última linha do poema. Rereleu e rereouviu... “Continua a soar tão familiar!” Largou a caneta e acendeu o isqueiro. O telefone tocou. Ajuda aos deficientes, um motoboy pode ir buscar o donativo, ou mesmo pode até ser depositado em uma conta, quer anotar? Já estou com a caneta em mãos, trololó e a caneta desenhou no ar a palavra, “de novo!” com a exclamação tão grande que chegou até o canto silencioso de seu cérebro. Obrigado, obrigada! Jesus te abençoe. A todos nós! “O próximo poema será bem melhor. Tema?”, jogou o cigarro para o primeiro-outro canto da boca e largou o isqueiro e pegou a caneta e bateu três vezes sobre as folhas pautadas. Rabiscou uma fumacinha saindo de uma das linhas quase apagada. Riu alto. “Será sobre como o som das palavras rimam”, sim eu sei. Sim, “o som das palavras”, “palavras sonoras”, um castelo de cartas e “Isso vai ser bom!”, eco final de toda reprodução. Leleleitura e reconhecimento. O mesmo e velho mote. Rasgou o poema e pegou novamente o isqueiro, levantou e foi para o quarto. Voltou para a mesa e pegou a Rua dos Cataventos, voltou para o quarto e folheou o livro. Viu um menino envelhecido de repente. Pensou em uma corda no pescoço, olhou a viga exposta e viu a corda dependurada, nó de forca, e silenciou. A velha idéia da morte. Era um enfeite da casa. Daquele quarto em que somente ele poderia apreciar. Saiu do quarto com pressa e pegou a chave no bolso e lá deixou o isqueiro. Fechou a porta e colocou a mão na boca: “Onde está o cigarro?” Deve ter caído no desespero. Voltou para a mesa, queria escrever sobre a morte. Viu um cigarro sobre a mesa, torto, com o filtro úmido. Piscou forte. “A morte da palavra”, o título seria o “Dissom”, a palavra seria desafinada, estanque. O recalque da reescuta não permitiu perceber a nova-oposta poesia. O cigarro voltou para o canto esquerdo da boca. As mãos inquietas dentro da gaveta a procura do isqueiro e de lá saiu outro papel. Desta vez não pautado e com a letra bonita. Amassou-o rapidamente sem terminá-lo de ler. Piscou duro. Rasgou todas as folhas usadas. Juntou as folhas em branco, colocou a caneta num canto. E voltou para sua página preferida de On the road, “em algum lugar, a pérola me seria ofertada.” Tocou o conteúdo do bolso da calça por fora, sentiu o isqueiro, a chave e lembrou dos livros no quarto, da corda no pescoço e foi para a sala de jantar.

tristeza

uma ponta de sinceridade
somente dentro do espelho
fadados à farça
do palco vulcano
a verdade esvai na definição
transparece na representação
cachimbos voando errando
a sinceridade verdade
como se ela fosse possível
essa é a tristeza da vida
vida vida seja narrativa!

Falcão de luzes

As cores tantas
tão poucos sonhos
no preto e no branco
matizes inconstantes
por vezes inconscientes
a ansiedade nos faz vento
e não luz perceptível
a necessidade irrisória
mortal total
importante desimportante
e fulminante

E quando fecho os olhos
não há mais cores
só o vazio
aquele mesmo irrisório
mortal total
importante e fulminante

Virtudes a parte
as luzes e as cores
alimento de falcão

Pelo mundo


- Nome?
- Marcus Vinicius Camargo e Souza
- Doador de órgãos e sangue?
- Não sei...
- Não diz nada no seu RG.
- Eu não sei...
- A opção é sua...

Se a opção é minha e não há alguma indicação em meu RG, leve todo o meu sangue. Leve tudo. Assim que eu morrer, tudo pode ser (re)partido. Estraçalhe minha carne. Pegue meus olhos e ponha num mundo diferente. Meu coração ainda pode bater muitas vezes em outro lugar... cuidei tanto dele para isso mesmo. Leve tudo, não deixe que nada chegue ao caixão. Meu sangue não mais me pertence. Pó ao pó? Vida por vida, que vire pó por outra vida. Leve tudo o que achar necessário. Trance meus cabelos num casaco macabro. Meus dentes, minhas orelhas... os meus ossos podem ser úteis em artesanatos para serem vendidos numa feirinha. Leve tudo. Da minha pele deverá ser feito um quadro onde se pintará as ilusões. Por que sempre fui tão egoísta? Leve um dos meus rins agora, e quando eu morrer pegue o outro. Leve todos os pares agora. Leve... leve... leve, eu agora quero ser somente asa, assim quero viver para todo o sempre. Leve leve leve. Saltar de um astro a outro somente asa e o eu inteiro que não pode ser levado (desculpe, essa parte não seria saudável (re)viver em ninguém). É aquela parte que só a mim pertence. Que muitas vezes pode ser até o eu de verdade (se é que ela existe... não o eu, mas a verdade). Leve tudo de mim e me deixe leve de verdade, só asa, só imag(em)(inação), imbrique a palavra como quiser. Só quero estar aqui, o inteiro, para ver o que acontece ao final.

Uma poesia para dormir

Todo sonho é impossível.
Dorme e tudo reverso.
Sentido sentido e sentido
O sentido
Sentido, guarda!
Sentido magoado
O sentido guarda a mágoa.
Relações improváveis,
Impossíveis?
Só no sonho reversas.

Diário de Sonhos nº 514 - Quando um quadro também mata

Quando um sonho é realmente um sonho de verdade pode ser tocado, evocado pelas palavras e escriturados em todas as escrituras, e na escritura. Já a felicidade é intocável, não nos pertence e é parte do sonho em sonho. E enquanto vivia o que significa felicidade saída do Houaiss:

felicidade{verbete}
Datação
sXV cf. FichIVPM

Acepções
■ substantivo feminino
1 qualidade ou estado de feliz; estado de uma consciência plenamente satisfeita; satisfação, contentamento, bem-estar
2 boa fortuna; sorte
Ex.: para sua f., o ônibus atrasou, e ele pôde viajar
3 bom êxito; acerto, sucesso
Ex.: f. na escolha de uma profissão
felicidades
■ substantivo feminino plural
4 votos de feliz êxito; congratulações


Locuções
f. eterna
bem-aventurança, salvação eterna


Etimologia
lat. félícìtás,tátis 'felicidade, prosperidade, dita, ventura'; ver feliz-; f.hist. sXV felicidade, sXV fellicidade


Antônimos
desdita, desgraça, infelicidade, infortúnio, mal-andança; ver tb. sinonímia de desdita


f. eterna... ah o gostinho de tê-la dentro da minha cabeça em REM. A felicidade. Mas a palavra é voraz, é significante, é significado, é diacrônica, sincronica, paradoxal e os antônimos sempre estão por perto. E lá estava: "o quadro" na minha cozinha comendo o que restou de cérebro do almoço. E quando percebeu que o percebi de meu quarto, correu furiosamente até mim, percorrendo veloz o hall, a sala cruzando com a mesa de jantar, meus livros, Derrida, Foucault, Deleuze e Freud, Baudelaire, Cruz e Souza, Poe, Ruffato, Abelaira, Santiago, Cortazar, Noll e todos os outros. Deu tempo para me esconder, enquanto ele navegava no espaço do tempo perdido da rebública das letras, mas não adiantou, ele puxou bruscamente (com que mãos?) a coberta e sorriu uma risada maléfica e medonha. Como disse, um sonho pode ser tocado, e tocado acordei e ri, ri muito, um quadro quase me matou... vou ler Derrida e matar um quadro.

Um céu de pipas

Aos alunos da Escola Municipal Nerone Maiolino

Dragões quadrados losangos
Todas as formas brigam insanas
O céu é todo azulzinho
Pintado de multicoloridos
Pingos e respingos
Nuvens? Formas!
Um céu de pipas brigando

Caco de vidro e cola
arma
Nessa disputa acirrada
Rabiola, bambu e papel
Tudo para longe
O losango hoje venceu
Amanhã o quadrado
Para depois finalmente
Vencer o dragão infância

eu fragmento

em total incompletude sou apenas fragmento
peças inacabadas de um quebra-cabeça imontável
procuro eu, e vejo tu, o outro é sempre inconfundivelmente eu
não posso ser personagem de minha própria narrativa
sou outro e eu fragmento
todos montados num espaço insincero
insensatez veloz
eu, tu e ele somos todos um mesmo texto
texto inexplanável d’Ele
é só a incompletude que me define
e me indefine, forma insólida insólita
esse sou suplentarmente eu fragmentos

Lágrima

Deixe cair somente uma lágrima
Pathos ensurdecedor
Cai lágrima
Ordem sumária
Sem apelação
Somente, por favor, caia

Vedas

todo tempo num só espaço
todo espaço num só tempo
artimanhas da narrativa védica
respira Brâma, respira

Supreendente


Surpreendente. Posso olhar um fato,um ato e com o tato ainda descubro novos horizontes. Botei os olhos no céu, negro e limpo, cadente a estrela é semente em todos os corações do Vizir de uma noite de verão descendo pelo Nilo até a África do Sul, é claro, pulando algumas parte de cima da Estátua da Liberdade para dentro do rio e para o fundo de um pote de tinta cheio de vinho a se tornar vinagre numa salada serena de palavras conceitos definições sinônimos de um mesmo ato surpreendente. Como as coisas ainda podem me surpreender?