Da merda exposta

Quando acordei me achei numa caixa de vidro. Nu, sinceramente despido de qualquer pudor, necessariamente indiscreto em cada detalhe. Primeiramente me achei sozinho, mas foi na percepção dos vermes a minha volta, das bactérias, dos vírus e dos espectros que começei a perceber os outros. Insinceramente, necessariamente me olhavam, exposto.
Não me lembro exatamente do dia em que me expuseram, é como se algo tivesse sido apagado da minha memória, para que aquela situação se tornasse tão atípica e perigosamente suplementar a ponto de me fazer pensar que eu me expuz, eu me levei até aquela situação. Como se eu quisesse me mostrar, mostrar para o mundo quem eu realmente sou, quais os meus desejos, minhas necessidades, meus medos. Minha merda estava alí apodrecendo ao ar livre para que todos pudessem apreciar o embrião de minha própria destruição. Eu não me expuz... não construi essa caixa de vidro com minhas próprias mãos, construíram para mim, me enformaram ali, envasado cresci ali, em busca de sol... em busca de exposição a luz do dia... Aos olhos de todos, ao nariz de todos, aos ouvidos de todos. Eu juro que não me expuz. Foram eles, eles que me colocaram ali, me despiram, me fizeram cagar ao ar livre e não poder esconder o que há de mais íntimo, nem eu mesmo olhava para o que restava de mim no vaso, baixava a tampa ao me levantar sem olhar e apertava a descarga com um gosto supremo de controle total sobre a baixeza do mundo mundo escatológico.
De dentro da caixa eu não conseguia ouvir os viventes que falavam, mas seus gestos, suas expressões me demostravam desprezo, nojo, admiração ou pena. Mostravam para minha mente, pois não podia ouví-los e ter a certeza do que realmente diziam. Nunca saberei a verdade, sua mão poderia conter o vômito que pretendia sair de sua boca, mas sua mente poderia estar saltitante de curiosidade sobre a minha merda exposta.
Me matei da maneira mais corajosa, utilizei a mais vil de todas as armas: as palavras. Gritei palavrões ao remexer minha genitália para os incautos. Mordi meus próprios dedos até sangrarem e escrevi o nome de cada um que me observava nas paredes da caixa de vidro, mas tenho certeza que via seus nomes de dentro da caixa, mas eles viam meus nomes de fora. As palavras e os atos expostos, todos foram me matando conscientemente, e não morri, demorri em vegetal exposto em busca de sol, envasado em minha própria condição humana animalizada pela insurdecedora praticidade de ser eu, inteiramente um ato exposto total.

Obra póstuma

Hoje eu acordei morto. E de agora em diante, tudo o que escrevo é póstumo. Uma retrovisão do futuro presente. De tantos acidentes enigmáticos que reaconteceram em minha mísera existência que acabou neste instante não posso me tornar machadiano e dar em negativas a avaliação de minha vida. Devo ter feito diferença a uma borboleta negra em qualquer estação. De todos os amores que tive, de todas as sombras que me envolveram, de tudo o que deixei por fazer, nada me compromete mais do que a necessidade da (in)existência de mim mesmo. Re(volto) para mim, neste último instante eterno que se prolongará. Infelizmente terão que aturá-lo, indefinitivamente. Morte em conceito total. Que os alemães não estejam aqui para me escutar e ver seus castelos de areia desmoronando com a onda que próprio me tornei. Contar minha morte é revelar todos os meus segredos, é impor a ti tudo o que estava escondido entredito interdito em tudo o que escrevi, durante todos esses anos. Portanto, minha morte há de permanecer vazia. Sem velório, sem choro. Estou aqui ainda, espectro, presente e ausente na mesma (des)proporção. Viajei entre as nuvens, vendo seus olhos, fui carregado por anjos, cantores cantaram ao pé do meu ouvido, me entreguei severamente e cegamente em amores desnecessários, desvirtuados. Chorei pouco, confesso, mas chorei sinceramente. Colhi rosas brancas, me tornei o próprio demônio de mim mesmo a derreter no inferno de mim mesmo. Fui analisado pesadamente até a última célula e nada descobriram, ainda falta a parte do meu segredo que permaneceu e permanece ainda aqui. Poucos tolos a conhecem e não reconhecerão seu significado. Desvirtuose ascensão intencional. De tanta vontade de reconhecer as misérias humanas, acabo me reconhecendo como A Pequena Miséria Humana. Segundos antes do fato mortífero que atacou, vi o filme de minha vida. Meus pais, minha avó, meus amores e meus desamores. Vi a ti. Heroísmos, falsidades, borrões. Meu filme não me comoveu, como tudo o que escrevi não fez diferença para ninguém, exceto para aquela borboleta de estação desconhecida. Entrego a ti, somente meu testamento, sem nenhuma alteração, é só vir e buscar as partes que te interessam. Estou. Estado insano virtual. Nada mais me interessa, muito menos o humano. Me desumanizo em função de minha própria espectralidade.

Morte

Para Junior

Em tempos esquecidos, Manonos, dedicado servo de Lug, o habilidoso, sentou-se em uma árvore de um bosque qualquer. Lá os pensamentos se postaram pesadamente em sua cabeça, sentiu o peso da responsabilidade de tudo o que aprendera em tão longo tempo de esforço em ser o diferencial em sua tribo. Passou pelo velho treinamento de todo e qualquer carvalho, cantou as canções, decorou as historietas, viu o passado, vaticinou o futuro, e finalmente foi iniciado na arte da morte. Cortou cabeças em válidos rituais insanos, banhados de um sangue sagrado, cortou sua própria garganta, e a viu secar em poucos minutos ao ser sugado por seus asseclas. Sem sangue sobreviveu durante vários dias e noites secretas. Até retornar a sua tribo e ser ovacionado como um pequeno herói, igual a todos aqueles que sobrevivem ao velho ritual da ascensão da consciência total.

Consciente de seu futuro, foi chamado a guerra, aquela guerra tão bem descritas pelo Cezar e seus historiadores. Presenciou o futuro, e não viu nada. Lembrou-se da morte. Não temeu. Colheu sua última plantação. Juntou os grãos, beijou sua esposa, seus filhos, olhou uma última vez para seu amante. Emprestou muitos fardos para seu sogro, com a promessa de devolução nesta ou em outra vida. Não tinha nada a temer. Morreria somente para os homens, e voltaria a viver para os homens. Tinha consciência total de seu futuro.

Na guerra, lutou ferozmente, não temia um só inimigo. Com os olhos vidrados cortou gargantas como no ritual sagrado, sem divindades. Vislumbrou as penas vermelhas da morte, lutou porque tinha que lutar. Seus companheiros de guerra recuaram. Excetos aqueles que receberam os mesmo trato que ele nos bosques esquecidos. E eles lutaram contra uma centúria completa. General por general, Manonos teve seu coração perfurado pelas lanças da águia. Não trazia gibão consigo, não precisava. Lug lhe deu toda a habilidade necessária, se não tivesse toda a habilidade para aquela batalha seria ali que morreria. E morreu.

Os campos funerários em que hoje estou, não se encheram de nenhuma tristeza. Manonos recebeu o título de o Inconsequente. Certamente sorriu, a batalha não foi perdida. Sua morte foi celebrada, como se celebra a vida.

Aprendo com o túmulo de Manonos que eu sou ele. E ele é eu. Sempre acreditei na vida eterna, cheia de compromissos e verdades. Somente temia a dor da morte. Mas Manonos não a temia. Meu sogro, hoje um amigo, não me devolveu nenhum fardo de seu empréstimo, espero o quanto for necessário. Lug se tornou todos os meus estudos e todas as habilidades que tenho, ainda sou de muitas formas devoto a ele. Fiel a causa de ser tudo o que posso ser, sou diferencial em diferência. A dor também se apagou, ao presenciar o passado sob meus pés. Aberto o túmulo vi ali uma carta entregue em minhas mãos. Hieróglifos traduzidos pela morte. Uma última instância em vida.

Tudo que é trazido a mim pelos meus ouvidos não me perturbam mais. O que me perturba é minha consciência total e o pouco respeito por aqueles que não a possuem. Verdades a parte, pois não existem. Vivo a cada momento, presentificando passado e futuro num mesmo instante espacial. Assusto a qualquer mortal com a fome de destruição que aprendi a me felicitar. Choro em gozo voraz. Querem saber da minha morte? Posso lhe dizer que acontece todos os dias em que sento num bosque qualquer, debaixo ou em cima de qualquer árvore e sinto aquele peso sobre minha cabeça. Inconsequentemente vivo a morte.