Há algo aqui dentro!

Há algo lá fora. Já é a segunda vez que olho pela persiana e somente vejo a água que cai tranquilamente do céu. Não há trovões, só a necessidade do céu desabafar, como nós fazemos com nossos amigos. Mas já olhava lá fora pela quarta vez. Resolvi inventar algo para fazer e peguei meu notebook e comecei a escrever uma história de alguém que tinha medo da própria sombra. Era como se ela pudesse comê-lo e mostrar que o inexplicável fosse mais forte que a realidade. Sinceramente, todas as histórias que escrevi nunca foram salvas. Fazia isso pelo gosto de ver as letras aparecendo aos poucos pelo toque dos meus dedos no teclado macio do computador. Quando terminava uma história sempre as deletava. “Deseja salvar o documento?”, “Não”. Olhei mais uma vez para conferir, mas era para ver se ainda chovia, mas não custava nada olhar para lá e ver se ali estava ele. E não estava. É a voz do passado que ecoa e destoa. Já tinha olhado um zilhão de vezes por aquela janela. Todos que tocavam a minha campainha já estavam acostumados a olhar para aquela janela para conferir se eu realmente escutara o sonoro toque dos sinos. E de lá eu confirmava quem era o ser oblíquo que queria falar. Às vezes, já recusei a abrir a porta para pessoas não acostumadas a mirar a janela, geralmente os sempre incômodos importunos. Observei muitas vezes os relâmpagos caindo do seu, em direção dos prédios do centro da cidade. Como aqui caem raios! Descargas elétricas capazes de matar... por que um raio não caiu nele, naquela ocasião? É uma boa pergunta, pois chovia no dia, e era uma baita tempestade. Acredito que vi um raio partir o céu, mas era tão longe que muitos segundos depois percebi a janela tremer. Som que perturba, imagem que estremece, é a definição de vê-lo, é a definição de relembrá-lo. Há algo lá fora. E preciso manter o olho na janela para ver se ele não se aproxima demais da janela, pois, se da minha cama olhar para o vidro e vê-lo me olhando, posso surtar, só de pensar na proximidade do ato. Mas desde aquele dia cruel e chuvoso ele nunca mais apareceu. Mas desde de lá cuido dele ali. Ele foi impetuoso apareceu entre um raio e outro e me olhou profundamente nos olhos. Sentiu meu medo e piscou. Mostrou sinceramente que gozava com meu medo. Há prazer em tudo. Não sei do que fiquei com mais medo. Se foi do modo como ele apareceu entre as gotas iluminadas da chuva ou mesmo de reconhecê-lo entre tantos ignaros fatos. Medos a parte senti algo tão verdadeiro que aqui está minha narrativa repetindo a mesma fala a mais de quinhentas palavras. Apesar da chuva, minha campainha tocou. Sinceramente nem olhei pela janela, pois sabia quem era. Somente não acreditava que Ricardo teve a coragem de sair na chuva e vir me visitar. Havíamos combinado essa tarde juntos no shopping no dia anterior. Não sei o que me levou a ser amigo de Ricardo, não éramos nada parecidos. Ele chegou calado, me abraçou como sempre fazíamos. Subiu as escadas antes de mim, como se fosse o dono da casa e nem olhou para trás. Fui à cozinha e peguei uma coca-cola para nós. Quando entrei pela porta de meu quarto vi Ricardo sentado no balcão da minha janela como já fiz centenas de vezes e vi sua imagem refletida na janela. Ele me olhou e sorriu pelo reflexo. Não sei se foi por mim ou pela coca, mas nem se virou. Acho que ele também me via pelo reflexo. Aproximei-me e entreguei seu copo de coca. Nem assim ele me olhou. Sua mão pegou o copo, sem olhos, e levou a coca direto a sua boca. Sua garganta agradecia pelo líquido que por lá descia. Via sua garganta se mover pelo reflexo. Seu pomo de adão se movendo para cima para baixo, como numa propaganda de refrigerante. “Sua felicidade transforma”. Pena que minha vida só in-forma amorfa. Ricardo depois de tomar sua coca de um gole só, perguntou se eu conhecia aquela pessoa que estava parada na chuva lá embaixo. Gelei e saltei para a janela. Sim! Sim! Conhecia. Era o mendigo que morava ali e estava aproveitando a chuva. Ricardo se assustou com meu salto. E eu também... mas não era ele. Expliquei para ele que há muitos meses vi algo estranho pela janela que realmente me deixou com muito medo. Ricardo se interessou pela história. Seus olhos verdes se dirigiam aos meus castanhos. Um raio havia caído longe dali e quando olhei para a rua vi alguém muito parecido comigo lá embaixo e quando realmente havia percebido que era eu lá embaixo, a janela tremeu devido ao estrondo do raio e caí no chão batendo minha cabeça. Quando levantei, ele já não estava mais lá. Ricardo riu, perguntou umas duas ou três vezes se eu tinha certeza se realmente tinha me visto pela janela. Riu novamente e perguntou se não tinha visto o mendigo e tinha confundido comigo mesmo, devido ao susto do raio. É claro que não confundi. Estou acostumado aos raios, vivia contando os segundos depois do clarão, para saber o quão longe eles estavam. E se eles caiam por perto, nem tremer, tremia, de tão acostumado. Ricardo riu. Porém, parou de rir levemente, como se lembrasse de algo. Soava estranhas as palavras de Vitor, mas sim, já havia acontecido o mesmo comigo. Ver a si mesmo é muito freak out, mas não tão surreal quanto eu poderia imaginar. Ao dormir sozinho, a gente imagina muitas coisas, sente muitos medos. Sabemos que a casa está vazia. Nossa mãe não está lá na caminha dela, roncando, às vezes, que nossa irmãzinha está já tendo sonho com os anjinhos. Mas eu estava lúcido, aquele dia, nenhuma sombra havia me procurado naquela noite. Ninguém havia me aterrorizado. Nada dentro do guarda-roupa, já havia verificado, é claro! Até que cochilei ao ler. Ao acordar estava abraçado comigo mesmo. Olhei-me nos olhos e senti a mim mesmo ao me afagar. Loucuras pessoais, privadas. Desejos, acredito! Ricardo riu novamente, perguntei o que ele tinha pensado e mudou de assunto, simplesmente, ignorando o fato contado e o acontecido. Porém, argumentei que tinha resolvido a questão, pois quando tinha entrado tinha visto a imagem dele refletida na janela e poderia ter sido meu próprio reflexo que teria visto de forma distorcida pelo raio e bater a cabeça poderia ter sido traumático. Realmente traumático, por meses que observava a janela em busca de mim mesmo! Resolvemos encerrar aquele assunto. Ricardo contou-me várias histórias. Enquanto a chuva parava. Mostrou me vários caminhos entre labirintos insondáveis. E até sentimos profundamente a falta do sol, apesar de sem chuva, o céu estava muito negro, para irmos até o cinema rever o magnífico filme do dia anterior. Por mais que estivesse tudo resolvido em minha mente, sempre olhava pela janela para me ver, nunca olhara na janela. Daquele ponto de vista de mim mesmo, já estava cansado. Tinha a esperança de sentir aquele medo novamente. Mas já não o sentia mais. Ricardo era um preenchedor de ambientes. E seus olhos preenchedores de mim. Acho que não suportaria mais uma sincera olhada e desci para fazer um lanche. Ricardo ficou olhando pela janela. Provavelmente querendo me encontrar... pensamentos meus! Quando voltei estava deitado em minha cama com meus mangás. Coloquei o lanche em minha mesa e lembrei-me de meu notebook ligado e o chamei para ler minha história ainda não apagada. Levantou levemente. Leu empolgado, mostrando-me frases e arrumando alguns erros de português. Sempre que havia tempo para ler minhas histórias, sempre me perguntava por que eu não colocava em um blog. Dizia que tinha vergonha. E recomeçávamos uma velha discussão sobre o valor da palavra. Sempre fechava essa história, deletando o escrito e mostrando uma nova música. Éramos especialistas em desviar assuntos. As horas passam muito rápido. E novamente estava sozinho na janela. A chuva retornou, desta vez mais forte. Raios, um clássico da minha janela. Agora conferia a janela pelo mesmo motivo de antes de mim mesmo por lá: ver o mendigo banhar-se. Mas desta vez ele não achava graça, estava em baixo de um papelão, procurando uma marquise. E a cada raio, me olhava na janela. Ria, era isso o tempo todo. A janela tremia e nem sequer me mexia. Tudo estava resolvido. Mais uma vez, os olhos de Ricardo mostraram a resolução. Enfrentava a mim mesmo em todos os raios. O tempo todo. Já até explorava outros aspectos de mim mesmo, de meu quarto e até daquele eu que aparecia atrás de mim, em certos raios. Sinceramente, há algo aqui dentro.

Dor

O som é algo difícil de ser explorado. É preciso muita atenção. Detalhes pequenos não são percebidos por nossas orelhas destreinadas de atenção. Somente o fone-de-ouvido pode resolver meu problema de surdez desconcentrada e mostrar para mim o mundo completo dos sons musicados. O novo cd é sempre melhor que o velho. Novas experiências, novas ousadias. Virtudes insanas daqueles que buscam no som eletrificado a única e última salvação para aquela dor que fica no peito reticente e latente. Vou até a sala escura, somente há o domínio da falta. A falta completa o ambiente, será o ambiente preenchido por ela? Mas uma luz começa a piscar mostrando que há várias pessoas reunidas. Pela falta? Pode ser. Ela se torna frenética, o som do novo cd embala todos. Malade et ballade. A sintonia não é complementar. Num piscar vejo a outra. Pernas perfeitas enredadas por um vestido de seda paranóico subindo e descendo, deixando o desejo transparecer vivo, quase é possível tocá-lo, embala-a junto com a música. Toca-lhe as pernas com as pontas dos dedos e desce sinceramente até o calcanhar e retorna até o embalo desfazê-lo e seguir até a próxima piscadela da luz. Outro: pura força em formas bélicas são agora hirtas pelo som inovador, movimentos secos mas leves e permitidos somente em situação especial de som escuro piscante. Outros também (não) estão lá: embalam-se embelezam-se desejam-se invejam-se cruzam-se desvirtuam-se. O que um novo som não faz aos meus ouvidos... Visto que a inocência não me permite ir até eles. Minha vontade os trazem. Todos estão aqui e vislumbram o meu desejo: o único real e presente. Como me toca. Como me evoca a insanidade de um arrastar de pele sobre pele. Meus pelos se arrepiam e torno-me uma única e só vontade: desejo. É uma pena que a música não dure para sempre. Como dez minutos poderiam ser a eternidade e assim esse momento único de felicidade solitária poderia ser o paraíso de anjos e bosques bucólicos barrocos. Mas entre um som e outro há um terceiro irritante, nunca deveria haver pausa para as trocas de faixas. Pois é entre as faixas que esse som irritante passa por cima jorrando toneladas de gás intoxicante aos ouvidos. A janela deveria manter o som fora fora e o som de dentro dentro... Melhor, não deveria haver janela... pois se ela contivesse não seria janela, seria uma outra parede. Deveriam ser todas paredes-janelas como para fantasmas que não são barrados por elas. Não se vão! A próxima música só está começando! Eu prometo ficar de olhos fechados. O som novamente se inicia e vislumbra linhas verdes fluorescentes, todos reanimam-se e dançam, perfectíveis em sua razão e virtude bela somente. Fecho os olhos e sinceramente sinto. É quase como a pele sobre a pele. É sentimento sobre sentimento. Tocando-se, retribuindo-se. Abro os olhos e espio por milésimos de segundos e vejo o invisível. Estranho. Sigo de olhos fechados. Sinto o som e prossigo. Porém a vontade de entender o ocorrido me fez abrir os olhos novamente e lá vejo o indizível. Fecho os olhos de susto. Com tanta força que crio rugas onde os sons rebatem e criam uma batida diferente. O toque do improvável desfaz todo sentimento sobre qualquer sentimento e endureço meu corpo antes leve pelo embalo. Os olhos mais enrugados até tudo parar... momentos invencíveis. A mesma eternidade da felicidade só que desta vez realmente eterna, pois só o medo e a dor podem o ser. Ao abrir vagarosamente neste momento de eternidade os olhos, reconheço o tom da pele, os pelos longos do braço, os dedos longos, os dedos feridos, as unhas comidas pela ânsia do nada. Subo os olhos e vejo a voz invadir os meus ouvidos. (Onde estão meus fones?) É como escutar um gravador reproduzindo os mesmo timbres azucrinantes de somente escutar a minha voz por mais de um dia. E ver aquela pinta no pescoço e ver o sangue pululando pela jugular da mesma maneira que sempre o senti subir e descer. A barba por fazer irritantemente perturbadora, pois coça. A bochecha saltada de tanto sorrir da desgraça. E os olhos castanhos onde pude me aprofundar-me na imensidão hipnótica de mim mesmo. É a dor de reconhecer-me ali ao meu lado por falta de companhia melhor. Não é só porque minha história é sobre o desgosto de ser eu mesmo. Mas ter de me enfrentar, no momento em que apago meu ego, é doloso. É doloso entender que não sou. Reticências preenchíveis por toda a falta. É só escolher. Fecho os olhos... mas abro as mãos em concha e seguro as pálpebras para me manter sob aquele signo de dor que sou eu mesmo. Olhos novamente profundamente nos meus olhos e vejo o passado rebuscado de desesperança. Por que eu fui estudar tanto? Deveria ter aproveitado tudo e todos. As letras não me preenchem como o som. Só a poesia, eu confesso, aquela que é reconhecida depois da vigésima leitura e finalmente decifrada e devorada pelo decifrador. As letras não me preencheram, só os poucos sentidos perdidos entre as linhas. Ainda posso escutar o som. Resgata-me. Rex tremendae majestatis Salva me Salva me Salva me. É som é pedido. Por mais que eu não acredite nesse rei, um outro qualquer pode me salvar. Os dedos doem pelo esforço auto-dolorido. A pressão de ser eu mesmo verdadeiramente por poucos segundos é excludente que preciso sair de mim e viver. Voltem fantasmas-desejos outra música já já vai começar.