Réptil ou um sonho para se pisar...

Sonhar acordado não faz meu estilo. Sou pé-no-chão, presencio todos os fatos com uma desconfiança inimaginável, paradoxalmente real.“Você não deve pensar assim...” Era uma voz quase inaudível e aguda, vinda de algum lugar perto da grama. “A vida tem muitas nuanças imperceptíveis.” Foi exatamente essas inocentes palavras que um lagarto esverdeado utilizou ao aparecer na relva. Um lagarto falando não foi o mais improvável, mas sim foi pensar o que um lagarto saberia sobre a vida, improbidades da existência humana. Somente no final de tudo isso que fui refletir em porque dei bola para tamanha ilusão, estava perdendo meu tempo. “O tempo não mostra nada além da experiência.” Era mais uma pérola da sabedoria falida e cansada que saia da boca do réptil. “E sabedoria é inteligência refletida.” Essa foi ótima, completou eficazmente o raciocínio e seu oposto. Até sentei-me, assim poderia despertar desse sonho macabro de auto-ajuda. “E você é um tipo de sábio dos lagartos?” Resolvi brincar com o resto de minha ilusão... “Claro. Observar a vida é o que mais enche a mente de sabedoria...” Mente? “Claro! Se não tivesse uma, poderia estar te ensinando?” Lagarto abusado, ilusão impertinente, queria brincar com o meu passado, nem tinha penas negras ou um bico para dizer nevermore. Certamente Poe não gostaria dessa brincadeira. “Sou diferente, reflito e não digo o que quer ouvir, e está muito espantado, sei disso!” pela cretinice, é óbvio, de um lagarto pensar que conseguiu analisar O corvo “E por isso nega minha presença e minha sabedoria-inteligência. Curva...” Sinto muito, mas ninguém é maior do que eu, pobre instinto natural. “Siga-me que te mostrarei o mundo.” E foi rastejando. Hesitei por milésimos de segundo, mas o segui porque tinha uma missão a cumprir. E assim, me levou ao abismo. “Sei de tanta coisa, porque vejo o mundo daqui. Bela lição, não?” Ele andou lendo alguns livros do Paulo Coelho? “Olhe mais uma vez. Vê o rio? Impassível, ele corre sem se importar com as pedras, porém numa entrega no mar infinito. Vê...” Azar do pobre lagarto, estava cansado de ver e ouvir essa anestesia briosa, e por isso pisei nesse sonho que sangrou como a realidade e se foi abismo abaixo direto para o mar infindo de todas as burrices humanas.

E chove aqui dentro também...

Nunca fez tanto calor no verão desta cidade quente.. Efeito de todos os efeitos: estufa, aquecimento, niño, descongelamento. Todos ao mesmo tempo e com um único e funesto resultado: um imenso, um brilhante, um escaldante Sol sorridente.
Na esquina, naquele sobrado, só para negar o que diz e sente a maioria e ser tachado de insano, chovia torrencialmente. A construção era muito elegante, arquitetura antiga de fachada verde-claro. No jardim da frente várias plantas verdinhas que davam até gosto, também com tanta chuva... Eram riscos de água sobre o carpete, móveis de madeira de lei estufados pela umidade incessante. Coisas e coisas que a chuva sempre estraga...
“Vanda, onde está A lira dos vinte anos?” gritava Antônio de dentro de seu amplo quarto nublado. “Na janela secando, seu bobinho!” respondeu Vanda que brincava na chuva gelada do hall, suas mãos estendidas para o alto recebiam-na como uma anfitriã. Aquilo tudo não a incomodava, ela adorava a água, apesar de todos os estragos, já tinha se acostumado com o tempo instável e em como driblar cada uma das artimanhas da chuva incessante.
Entretanto, nem Antônio, nem Osório e um pouco menos Cândido, os outros moradores do sobrado, gostavam da chuva que os assombravam. “O corredor ainda está encharcado! E você sabe que não posso me molhar...” gritava mais uma vez Antônio de volta para Vanda que agora estava deitada no chão do hall para receber as gotas em seu rosto. Seu sorriso branco recebia o frescor de todo esse pesadelo úmido sem nenhum pesar. “Me dê mais cinco minutos e pego seu livro, Antônio...” Ele bufou e Osório gargalhou, ria da situação úmida de seu companheiro, pois seu quarto estava seco, fazia dois dias que não chovia por lá, gargalhava porque hoje estava por cima, entretanto passou maus bocados nos últimos dias: chuva, neblina e muito papel perdido, muitas linhas borradas.
Cândido, apesar da chuva da sala de estar que separava o hall do corredor dos quartos, gostava mais do corpo de Vanda todo molhado e nu, o buraco da chave era perfeito para observar seus seios que também recebiam a água tão pura e inocente como seu sorriso. Vanda, é claro, sabia de Cândido, porque ele ofegava inconfundivelmente, o que ela adorava, por saber que seu corpo era igualmente inconfundível. Em segredo, ela gostava de ser adorada e só era adorada porque a chuva a deixava mais e mais excitada.
Finalmente, levantou-se e lentamente vestiu sua roupa que molhou-se com as gotas do hall, ela nem se importou, foi até a janela, pegou a Lira, envolveu-a num saco plástico e levou até Antônio. A roupa molhada colou-se ao seu corpo, seus seios saltados perturbaram visivelmente Antônio e sua fragilidade: “Vamos até o hall tomar um banho de chuva?” Seu pedido era provocante, mas petulante para um homem naquela condição: “Não sarei daquela gripe da última vez!” Osório novamente gargalhou do outro quarto, nesse quesito sempre esteve por cima. Porém, Vanda tinha uma quedinha pela doença de Antônio e não pelo bom humor de Osório.
Cândido agora recuperado da chuva no hall seguiu para a fechadura do quarto de Antônio, sua esperança não se concretizou em prazer, era hora de se secar ou acabaria como seu amigo. Depois de se secar era só esperar, esperar e esperar... Sabia que Vanda era insaciável e que Antônio hora ou outra cairia em tentação.
O tempo é imprevisível. Chuva no quarto de Osório e falta de gargalhadas. Neblina no hall. Cândido em pranto por falta de prazeres recônditos. Vanda era, a cada mudança climática, volúpia revoltada. Antônio espirava, tossia e se embebedava no prazer de sua molhada amante. “Antônio, poeta maldito, que também morresse logo de pneumonia” era o que Osório mais desejava. E o Sol? O Sol continuava impossível lá fora...