As máquinas da felicidade

Ora a linguagem encrática (aquela que se produz e se difunde sob a proteção do poder) é por estatuto uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o desporto, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, muitas vezes a mesmas palavras - o estereótipo é um facto político, a figura maior da ideologia. (Roland Bartes em O prazer do texto)
A sociedade cria dentro de seu próprio corpo mecanismos geradores de bem estar, como forma de controle social, o qual quero chamar de máquinas da felicidade.A discussão do que vem a ser felicidade está em pauta em diversos países como bem mostra o Le monde diplomatique Brasil numa reportagem de Mariana Fonseca intitulada "Por um mundo mais feliz" na edição de janeiro de 2011. Segundo a repórter o Brasil está aprovando a inclusão de mais um direito à constituição brasileira: o da busca da felicidade. O Espírito Positivo que tanto influenciou as nascentes sociedades organizadas indo contra todo e qualquer racionalismo ou idealismo buscou nos dados concretos realizar uma certa felicidade calculada. Mas para além do conceito positivista, o qual não quero nem elogiar ou criticar, tem-se outros "positivismos" anteriores a própria noção de Comte, se ele buscava a ciência como modo de organização do pensamento, a religião buscou a divindade, a universidade a contenção e apropriação do conhecimento, não como um todo, mas com o academicismo petrificado, para ficar somente com estas três máquinas da felicidade. A ciência, a religião e a universidade são reguladores e controles sociais que geram dentro de si um ideal utópico de organização ao mesmo tempo que geram a sua própria autodestruição, é a tese que quero sustentar. A contenção da liberdade do discurso individual, seja pelo cálculo das probabilidades, dogmatismos ou organização severa do conhecimento, não gera felicidade somente um lento desgaste que aos poucos transforma-se em inconformismo com a própria organização.
O cinema e a literatura souberam criticar ironicamente essas máquinas geradoras de felicidade. Comentar ou analisar os filmes de Jean-Luc Godard é impróprio, para não dizer desnecessário, por sua alta carga significativa, que atingem não o intelecto mas diretamente o sensível, e uma única forma possivel de comentário para seus filmes é por meio de um recorte macabro que assassina a obra como um todo. Porém, permita-me o assassínio de Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution (1965).  Alpha 60, um personagem-voz, é a máquina geradora da felicidade que por meio de seus cálculos intermináveis consegue promover o bem estar social de todos os habitantes dentro de Alphaville e todos os estrangeiros, caso de Lemmy Caution, precisam passar pelo Controle de Habitantes para poder permanecer, é preciso saber se o visitante pode representar um perigo ao não à organização. O recorte macabro que quero realizar está na cena em que Caution é interrogado por Alpha 60 no Controle de Habitantes a qual demonstra claramente que os que possuem a liberdade do discurso representam um perigo para a sociedade que já é feliz por falta de opção, ou por falta de significados arrancados dos dicionários ou das Bíblias. Alpha 60, então, propõe questões testes por medida de segurança para Caution, e dentre as diversas questões propõe "Sabe o que transforma a noite em luz?", a resposta de Caution é certeira "A poesia." A poesia não colabora de forma alguma para os cálculos intermináveis de Alpha 60 para o Bem Final, ou para o que estou chamando de máquina de felicidade,  o que o faz concluir que Caution dissimula, o que o torna um perigo para Alphaville e faz com que personagem Von Braun permita-se sentir o amor, por exemplo. Da mesma forma a poesia, ou o livro em si, é uma ameaça em Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut onde os livros são queimados pelos bombeiros fazendo com que qualquer escrito seja impensável neste mundo ao ponto dos arquivos serem composto somente por números e fotografias. Ou, de uma forma menor, em Equilibrium (2002) de Kurt Wimmer, ao ter como controle social os Sacerdotes capazes de matar somente os alvos corretos em 360° a partir de cálculos com ângulos, também neste filme os livros, ou toda qualquer obra de arte, ou souvenir são proibidos.  Os Sacerdotes que acabam sendo encantados pela magia da poesia, ou por qualquer tipo de sensibilidade, são brutalmente assassinados por seus companheiros em cenas altamente violentas. De qualquer forma, as máquinas de organização social visam o bem estar do seu cidadão pelo controle do seu sensível. Sem o sensível, sem infelicidade. A literatura nos três exemplos são máquinas geradoras de insatisfação visto que ao tornarem o homem sensível faz com que ele deseje entender não somente a felicidade, mas o que faz o homem infeliz, quais são suas misérias, infortúnios ou ilusões. Exemplo disso está no conto de Eça de Queiroz, Civilização, onde Jacinto cercado de todos os aparatos tecnológicos disponíveis no fim do século XIX ainda assim: "três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína." Jacinto decide passar algumas semanas em um outra propriedade e para tanto envia todos os aparatos tecnológicos mínimos para uma estadia confortável. Jacinto e o narrador chegam ao local aprazado, mas não os aparatos. E cear a comida dos caseiros, dormir em colchões desconfortáveis e apreciar as estrelas que as luzes da cidade impediam de ver faz de Jacinto um homem feliz com poucos livros: "daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o Dom Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!". Jacinto não deixou de ser o homem civilizado que era, mas compreendeu o poder que a máquina da felicidade tecnológica estava fazendo consigo mesmo. 
A eliminação da sensibilidade em troca de bem estar não é um efeito da ficção científica desses filmes ou do conto de Eça de Queiroz, ele está debaixo dos nossos narizes, seja na forma de aculturação mundial do gosto ou mesmo nas pílulas antidepressivas tão recomendadas. Compra-se esta certa felicidade pela perda dos significados mais profundos e sensíveis, como por exemplo na eliminação da interrogativa "por quê" tanto no filme de Godard quanto na teoria positivista de Comte. A banalização das ideias pela cultura de massa deseja que todos sintam os mesmos sentimentos rasos (Melhor para as vendas? Não importa.). Porém, como disse, o lento processo de desgaste que as máquinas de felicidade produzem acabam por gerar o inconformismo que faz com que os Sacerdotes de Equilibrium chorem em qualquer sinfonias menor, ou faça a personagem Natasha Von Braun se perguntar o que é o amor e recitar um poema de Capitale du douleur de Paul Eluard, deliciosa mania citacional de Godard. O inconformismo gera resistência ao duro discurso calculado das máquinas de felicidade, e arte é a forma máxima dessa resistência por sua multiplicidade de significados e profundidade de sentidos.
Recusemos, portanto, a esta certa felicidade e aceitemos o fato de que somos humanos e que não somos completos sem cada um dos sentimentos que nos compõe, seja o desejo da felicidade ou a inquietação do sofrer. Banir o sofrimento, desejo profundo de cada máquina da felicidade, seja não acreditando no mal, no caso da religião, ou na procura desenfreada de uma verdade, no caso do academicismo petrificado, não é a solução de qualquer problema de ordem social, fazê-lo é desnaturar a essência de cada um, é interditar o sensível, como se ele fosse um inimigo do bem estar. Não é despedaçando o ser humano em sua milhonésia parte que se encontrará a felicidade é compondo-o com todas as suas partes, é entendendo cada um dos sentimentos e aceitando-os todos como naturais, do bem estar ao sofrimento que algo próximo de um profundo significado de felicidade possa vir a existir, algo próximo do que significa ser humano.

Viver

Sentado à mesa do café-da-manhã, divagava com a faca sobre a margarina. Lembrava do sonho daquela noite. Um homem olhava-o profundamente em seus olhos, sorria e levantava dois palitos de fósforo longos e com a cabeça vermelha. Seus olhos passaram a faiscar como se fosse cometer um crime. A faca passeava sobre o pão enquanto sua mãe se aproximava. Ela nunca chegava de um único lance, ia aproximando-se vagarosamente. Abria a geladeira, pegava uma jarra. Ia até o armário, retirava um copo. Puxava a cadeira, sentava-se e a água lentamente caía dentro do copo. As divagações não cessaram até sua mãe abrir a boca, o desgrudar dos lábios fez um leve barulho que logo fora interrompido pela entrada da empregada bufando. A mãe olhou para ela com os olhos apertados, controlando via o medo os gestos desnecessários da empregada. Sorrisos de satisfação, pela manutenção violenta da tranquilidade na ambiência do café-da-manhã. A empregada saiu, sem nenhum barulho. O ritual novamente começara. As mãos tocaram o copo, enquanto a jarra era colocada sobre a mesa. Levada o copo até a boca, enquanto sua mão passeava sobre o crochê que enfeitava a mesa. Sorria, enquanto abria a boca. O filho ainda passando a faca serenamente sobre o pão, olhou para os olhos da mãe. Disse alguma coisa sobre o pai não estar muito satisfeito com comportamento do filho. Enunciou sua idade mais de quatro vezes e lhe exigia que fizesse algo de sua vida. Ele sorria ao pronunciar sua sentença sobre o julgamento do pai, já fazia algo, algo aliás muito importante: viver. Não havia ocupação mais interessante do que esta. Sua mãe desmoronou em si mesma. Levantou-se, dirigiu-se ao filho e passou a mão em sua cabeça. Mostrou o tamanho da casa com um gesto largo que abrangia a cozinha de um canto ao outro e afirmou que aquilo não duraria para sempre, que o pai um dia iria morrer e todo o conforto iria com ele, visto que o filho não se interessava pelos negócios da família. Negócios do pai da família, retorquiu severamente. A mãe abaixou a cabeça concordando. Exigiu que procurasse seu próprio sustento, já que aqueles negócios não o interessavam. Negócio nenhum o interessava, tinha outras espécies de negócios a tratar. E seguindo para a biblioteca, cuidaria do seu primeiro afazer do dia. Cuidaria, se houvesse encontrado algum livro sobre as prateleiras. Somente restava o pó, que estava disposto de acordo com a grossura de cada volume. Esperava por aquilo, só não tinha condições de mensurar exatamente quando aquilo iria acontecer. A empregada entrou exasperada. Ele a olhou e sorriu. Ela tentava explicar que seu pai havia mandado retirar todos os livros da biblioteca e que foram levados não sei para onde. Ela estava tristíssima perguntando o que sua criança iria fazer naquele momento. Saiu sem um aperto no peito, subiu ao seu quarto, trocou de roupas e pegou sua carteira. O celular brilhava a luz do sol matutino que lhe invadia pela janela, não tocou nele, como nunca o havia tocado. Sua face transmitia tranquilidade, os olhos da mãe ao observá-lo atravessar o sala de estar não conseguia acreditar naquilo. Ganhou  o jardim, e o motorista lhe perguntou onde deveria levá-lo. Um único gesto com a mão indicara que iria passear sem o carro. As ruas não faziam sentido para ele, andava sem destino, lembrou da mãe requerindo-lhe uma ocupação. O comércio da cidade estava abrindo suas portas. Entrou numa loja de antiguidades, observou cada móvel em seus detalhes. Um recamier o interessou-lhe particularmente. Sentou-se, tocou o tecido, passeou com os dedos pelos detalhes talhados na madeira. O vendedor vestido com terno e gravata perguntou se havia gostado da peça, os detalhes eram talhados por uma história qualquer a qual não prestou atenção, os detalhes explicavam a si mesmo sem história alguma. Deu o endereço onde deveria entregar o móvel, não perguntou o preço e ofereceu o cartão de débito ao caixa. O caixa ofereceu uma promoção qualquer que rejeitou ao questionar se havia alguma livraria ali por perto. O cartão havia sido rejeitado. Saldo insuficiente. Tirou algumas notas da carteira e pediu que o caixa guardasse o troco.  Sim, havia uma livraria há duas quadras na direção da praça. Seguiu para lá, viu a livraria que era ladeada por um sebo, preferiu a loja de livros usados. Ao ser prontamente atendido disse que iria procurar por si mesmo o livro que levaria aquela manhã. Viu muitos dos títulos da sua biblioteca desaparecida, até que encontrou um livro que não havia lido, abriu-o, leu a primeira linhas em voz alta: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz a sua maneira". Refletiu por um instante, não compreendia o que poderia ser uma família feliz, concluiu que se houvesse certamente era falsa, só poderia ser de plástico dentro de uma casinha de bonecas. Novamente seu cartão não funcionara, retirou mais uma vez o dinheiro da carteira. O tempo estava fresco, a praça era o local ideal para a leitura. Sentou-se embaixo de uma árvore qualquer, abriu o livro e acendeu um cigarro. Parecia que sua mãe se aproximava, mas não, era um rapaz. Parou na frente do lago, enquanto mexia na bolsa. Tirava uma máquina fotográfica, enquanto os pombos voavam com a presença de uma criança correndo. Virou a página. O rapaz virou-se, tirou uma foto na direção em que o rapaz estava. Guardou a máquina, enquanto caminhava em direção ao banco. Sentou-se colocando a bolsa ao lado abrindo a boca, o descolar dos lábios e seu som costumeiro. Não permitiu que falasse, perguntou antes se era fotografo. A negativa o fez rir. O rosto do rapaz ficou rubro perante a sua pele alva. Tentava explicar o motivo da fotografia, mas fora interrompido, não devia nenhuma explicação a ninguém... as pessoas estão acidentalmente na paisagem a qual se quer registrar. Até mesmo num retrato, não quer-se registrar a pessoa, mas o momento, o sentimento, o segredo que há ali. A pessoa aparece acidentalmente na paisagem. O rapaz riu-se da explicação, os dois começaram a discutir a fotografia até que o rapaz perguntou-lhe o nome. Giovani. O rapaz se apresentou já que ele não lhe havia feito a mesma pergunta. Leandro. Combinaram de se encontrar em um bar não longe dali depois das seis horas para terminar a discussão sobre a fotografia, visto que Leandro precisava ir para o trabalho. Continuou a leitura, os transeuntes não percebiam que ali para ele o tempo não passava, todos olhavam para o relógio e morriam oprimidos pelo ponteiros que indicavam horas cheias e seguiam sem poder parar e observar tudo o que só pode ser percebido lentamente. Almoçou em um boteco qualquer quando teve fome. Ao dirigir-se novamente para a praça, encontrou um amigo, queria somente lhe cumprimentar meneando a cabeça, mas infelizmente foi parado. Após os cumprimentos tudo bem desnecessários contou-lhe que seu pai estava furioso na empresa, sem um por quê?, continuou explicando que Giovani era o motivo da irritação, educara seu filho nas melhores escolas, mandara-o para a Europa e a América do Norte e para quê? Gritava um nada que poderia ser ouvido até mesmo na contabilidade. Todos estavam em polvorosa. Giovani não regia, parecia que estavam lhe narrando a história de uma outra pessoa que não ele. Seu pai confidenciou ao advogado, amigo de Giovani, que havia  tomado uma medida drástica. Lembrava de sua mãe pedindo que arrumasse uma ocupação. Livrou-se do amigo ao perguntar que horas entrava depois do almoço, olhando o relógio com os olhos arregalados saiu correndo. Sentado no banco esqueceu-se de tudo e sorveu cada personagem como se não os tivessem abandonado pela necessidade alimentar do corpo. Às cinco, Leandro voltava pelo mesmo caminho e estranhou que ele ainda estava sentado ali, não se aproximava. Dessa vez não foi até o lago, tirou sua câmera da bolsa e tirou a mesma fotografia sem a mesma luz do começo do dia. Giovani fechou o livro e levantou-se perguntando se aquilo era uma mania. Os dois sorriram, seguiram para o bar que deveriam se encontrar. O rapaz havia tomado a liberdade de chamar alguns amigos, ele não se sentiu incomodado visto que o bar era um local que qualquer poderia entrar, sentar e beber, rir, conversar e se apaixonar. Leandro sorriu. O bar era bem decorado, mas a sua atenção não se voltava para os enfeites pendurados no teto do local e sim para as pessoas. Analisou o cabelo, a roupa, os gestos de cada uma num único lance de vista, reconheceu um ou dois amigos do pai, um ou dois amigos que o visitaram na Europa a pedido da mãe. Enfadou-se, estava no seleto circo fechado de sua família. Leandro percebeu logo a mudança do sorriso em desgosto. Nada estava errado, era óbvio que mentia. Sentaram-se numa mesa ao fundo. Leandro apontou alguns homens e descrevia a profissão, Giovani falava que os conhecia e Leandro se chocou. A conversa mudou de tom com a chegada de quatro amigos, dois homens e duas mulheres. Os nomes foram ditos e esquecidos da mesma maneira. O que interessava era os cabelos cacheados de uma, os olhos verdes quase transparentes da outra. A barba por fazer de um, e as entradas do outro. Leandro apresentou Giovani ao contar a história das duas fotografias, todos se interessaram. E uma chuva de perguntas bombardeou-o, atingiam o alto mar já que as respostas eram vagas e imprecisas. Após o questionário mal preenchido, logo voltaram a discutir a questão do retrato. Leandro não concordava, Giovani argumentava que o retrato de pessoas desconhecidas eram mais expressivos que o de conhecidos. Havia mais história num desconhecido do que numa celebridade. A barba e os cachos concordavam com Giovani ao enumerarem fotógrafos que possuíam maior poder expressivo. Já as entradas concordava com Leandro, o retrato de uma pessoa conhecida expressa além do  retratado toda a força política daquele indivíduo. Sóbria, os olhos verdes questionou o amigo se não havia força política num desconhecido. A mesa parou de falar por um instante. Leandro balançou a cabeça refletindo, Giovani o olhava com demora. Os amigos perceberam que ali havia uma outra história acontecendo, com ou sem força política. Muitas cervejas ilustravam mais e mais as teorias particulares sobre o retrato que logo descambou para a pintura e por fim chegou aos planos futuros, cada um jornalista, sonhava com a grande reportagem, um livro de fotografias de desconhecidos, uma cobertura de uma guerra ou mesmo uma ponta no jornal televisivo. No momento de Giovani anunciar seu plano futuro, pegou o livro e disse que gostaria muito de terminar aquele livro antes que o pai o achasse e o escondesse como os outros. Todos gargalharam. Leandro percebeu o rosto sério do novo amigo. Era tarde, as despedidas começaram, promessas de novo encontro foi feita, mas naquela semana seria impossível, cada um com sua ocupação que não batia com o horário do outro. Há quanto tempo não se encontravam? Semanas, provavelmente. A memória foi comida pelo tempo, pensou Giovani. Restou somente os dois à mesa. Leandro queria encontrá-lo novamente, assustou-se com o fato dele não lembrar-se do número de seu celular. Anotou seu número num guardanapo que fora imediatamente guardado dentro do livro. Cada um tomou seu caminho. As ruas do centro da cidade estavam iluminadas levemente e as vitrinas das lojas formavam um mosaico do desejo, Giovani parou na frente de uma ou duas e apreciou o conceito. As luzes diminuam à medida que se aproximava de sua casa. Abriu o portão e estranhou uma luminosidade incomum no jardim. Era uma fogueira, concluiu com mais dois passos. A mãe chorava ao lado do pai que jogava um por um os livros que estavam num carrinho de mão. O pai ao ver o filho ferveu voando em direção ao livro que estava embaixo de seu braço que logo foi atirado ao fogo. O pai interrogava como ele havia comprado aquele livro se todos os seus cartões estavam bloqueados e olhava furiosamente para a esposa ao adivinhar que ela nunca deixava a carteira de seu filho vazia. Um sermão sobre o trabalho e a ocupação foi seguido de muitos olhares de raiva espumante. A raiva converteu-se rapidamente em ódio ao perceber que o filho não se comovia com toda a sua ira. Lembrava-se da mãe passando a mão em sua cabeça, lembrava-se da empregada contando-lhe como os livros sumiram, lembrava-se do amigo advogado que o parara na rua, lembrava-se dos olhos verdes, dos cachos, das entradas e da barba, lembrava-se de Leandro e sua máquina fotográfica, lembrou-se de seu sonho e sorriu. Levou uma bofetada na cara. O pai repetia sem cessar que ele deveria aprender a viver e que acordaria cedo amanhã para ir ao escritório.

Canção Marcial - Esben and the witch (tradução)

Il n'y a pas de victoire, il n'y a que des drapeaux et des hommes qui tombent.
(Jean-Luc Godard)



Na selvageria dos pensamentos nublados,
batalhando com ácidas respostas mentais
e caminhando em prados vazios,
é possível se abandonar calmamente
mesmo afogado em chuvas.


Atenção soldados
para esta canção marcial!
Cabeça erguida!
Olhos firmes!

As batidas dos tambores desaparecem.
O estrondo dos pratos diminuem.
A lama é engrossada com desejos
para poder afundar
os seus pés na terra.

E suas botas afundam
nas memórias intermináveis
de pensamentos perdidos.

E o exército de muitos
lutam sua própria luta,
perdidos na escuridão.
Cegos!

Suas vísceras, minha trincheira.
Eu mesmo, minha arma.
Os sussurros quebram o silêncio
com delicados gemidos.

Braços e pernas.
Dentes e unhas.
Nossa frágil unidade
está destinada à falha

Este batalhão
desgastou-se
em capitães e camaradas.
Já posso apostar pela sua morte...

Inocência irônica


Les Carabiniers, França, 80min, 1963, preto e branco

Um filme postal poderia arriscar. Ulisses e Miguel Ângelo são iludidos pelos encantos da guerra, nenhuma guerra específica visto que todas as guerra parecem uma única guerra, a que move os homens pelo desejo de conquista e de vitória, e inocentemente eles aceitaram ser carabineiros para poder conquistar aquilo que não tinham: pequenos objetos que sua miséria não poderia comprar. Cleópatra e Vênus até montaram sua lista de objetos os quais gostariam que eles pilhassem, visto que na guerra tudo é permitido, até matar inocentes, principalmente. Partindo para o combate, eles mantém contato com seus familiares por meio de postais contendo suas impressões sobre a guerra e seus atos. Entretanto, as suas impressões que não são tão inocentes quanto eles aparentam ser, são palavras ferozes e capazes de nos fazer refletir o que significa a guerra, e volto a frisar, não uma guerra específica e porque não as pequenas guerras que travamos todos os dias: "il n'y a pas de victoire, il n'y a que des drapeux et les hommes qui tombent" ou "não existem vitórias, apenas bandeiras e homens que caem", esta é a mais vigorosa impressão postal que lemos nos diversos cartões que nos foram entregue durante o filme. De ambos os lados caem os homens e as bandeiras. Uma jovem garota comunista, interpretada por Odile Geoffroy, com o dedo em riste repete o discurso de Lenin e ao ser executada tem seu rosto coberto por um pano branco e grita por seu irmão, o que comove os carabineiros que permitem que ela tenha um último desejo antes de morrer atendido. E ela simplesmente deseja recitar um poema: Admirável Fábula de Maiakovski:


Isso não pode ser a morte
Por que iria ela rondar o forte? 
Não tendes vergonha de acreditar numa fábula?
Simplesmente alguém, para sua festa, ordenou este carnaval
Inventou esses tiros enquanto ele pisca os olhos 
Como é encantador o baixo do anfitrião, 
parece um canhão
E a máscara não é de gás, simples brinquedo farsante
Vejam! 
Em sua corrida, o foguete mede o céu! 
A morte teria essa graça ao deslizar pelo salão do céu? 
Ah, não diga: “O sangue de uma ferida”
É odioso
Simplesmente, para honrar os heróis, 
eles foram ornados de cravos
Claro! 
O cérebro não quer compreender, nem pode
A nuca dos canhões, não fosse para um beijo 
por que seria enlaçada pelos braços das trincheiras? 
Ninguém foi morto 
Simplesmente, não podendo mais estar de pé, 
deitaram-se do Sena ao Reno 
pois floresce e inebria a gangrena nos canteiros dos mortos 
Quem disse mortos? 
Não! Não!
Todos se erguerão
Assim, simplesmente, voltarão 
e dirão sorrindo às suas mulheres: “Que brincalhão, 
que fenômeno era seu anfitrião”
Eles dirão: “Não houve nem granadas nem explosivos”
É claro que não havia um forte
Alguém inventou para a festa 
um mundo de admiráveis fábulas

O desejo de não morrer faz com que o significado do poema transcenda, sabendo que logo morreria, a jovem ironiza com a ideia da morte ser uma admirável fábula e que ainda permaneceria viva como num sonho, "todos se erguerão, assim, simplesmente, voltarão e dirão sorrindo às suas mulheres: que brincalhão [...]", ela também voltaria, os diversos tiros que leva não a matam por completo, caída no chão move o braço, o que faz o capitão atirar mais uma vez e outra e outra e outra. Homens e bandeiras caem de todos os lados: morre a jovem comunista, morre metaforicamente o carabineiro em sua violência. Morremos todos nós diante do horror de qualquer guerra. E as conquistas, ou a vitória, são todas ilusórias. Postais e mais postais se acumulam, à guisa de títulos de propriedade. Ulisses e Miguel Ângelo levam para casa os monumentos, os meios de transporte, as mulheres, dentre outras coisas. Fotografias e postais de tudo o que viram e que inocentemente não sabiam que já eram de cada um deles: tudo estava ali, eles não se reconhecem herdeiros dos bens da humanidade. Cleópatra até diz que dará o Pharteton para um familiar qualquer, visto que está velho e precisava de uma reforma.

Por fim, depois de uma longa cena enumerando cada um dos bens que logo entrarão em posse real, assim que a guerra acabar, há a divisão de tudo entre os quatro personagens, eles se encantam com cada uma de suas conquistas, escolhem, brigam, soam inocentes, mas não, o sorriso de mofa no rosto de cada um deles só nos mostra a genialidade de Jean-Luc Godard, eles são irônicos: não há vitória, só quedas. E sentimo-nos quedar diante da nossa inocência perante o mundo. E a lição permanece: por que não sermos igualmente inocentes irônicos também?

b - iamamiwhoami (tradução)


E ali ele estava, sozinho...
Poderiamos ter recolhido todas as nossas coisas e ido
morar na areia movediça,
lado a lado, de mãos dadas.
Afundando aos poucos e voando,
Permitindo o silêncio cobrir a luz cega.

Respire fundo enquanto descemos e descemos...

Voar alto,
cada vez mais alto.
Até a lua nos forçar a escalar até o chão.
E eu desejando afundar na areia...

Voar alto,
cada vez mais alto.

Com ódio e desprazerosas saudações
A paranoia me eu ensinou a viver com.
Mesmo que eu nunca vá esquecer o que ficou para trás.
As suas músicas ainda ressoam em minha mente.
E todo o branco azula,
me procurando procurando você.

Respire fundo enquanto descemos e descemos...

Exumação [conto de aniversário]

É muito diáfana a linha divisória entre a sanidade e o desequilíbrio mental.
(Manoel Philomeno de Miranda em Nas fronteiras da Loucura)

Acordou determinado. Sabia a demanda que deveria cumprir naquele dia. Pegou seu carro e seguiu o caminho da memória, faria duas homenagens, uma para o passado e outra para o futuro. Percorreu um caminho que não conhecia, somente lembrava-se. Foi guiado pelo desejo, não havia nada marcado no mapa, não havia um X nesta exploração, era necessário farejar o sentido da lembrança. Quinze anos separavam os dois acontecimentos. Depois de muito correr pela cidade, um cheiro tornou-se a bússola ... Finalmente, saíra da cidade e pegara a BR. Era aquele o caminho. A certeza era a certeza da memória.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os super-heróis que enchiam sua caixa de brinquedos tornavam-se dessa forma sua liberdade criadora na infância, não podia sair do quintal mas não estava preso, tinha os bonecos-de-ação de todos os tipos, gêneros, articulados ou imóveis. Eles se aventuravam muitas vezes em histórias mais que reais, dramas pessoais não vividos nas séries televisivas que apreciava com um gosto peculiar entre uma ópera ou outra que assistia pela madrugada, seus personagens discutiam a política de seus mundos, queriam provocar mudanças, eram, descobriu depois, heróis trágicos, pais das pátrias e dos povos, sofriam por todos porque este era o seu destino, todos aqueles heróis de plástico estavam predestinados a sofrer a pena pelo sofrimento alheio em diálogos um tanto complexos para a pequena narrativa do super-herói que mesmo salvando a humanidade inteira tinha tempo ao final de cada episódio para viver cenas domésticas de pura futilidade da indústria cultural. Um deles, provavelmente o Batman, estava com um problema com seus ministros, estava tramando um golpe de estado para poder tornar-se o único senhor soberano do local... nunca saberemos se aquele herói teria superado tal questão, sua avó havia interrompido um momento muito importante na sua pequena mitologia monológica pessoal. Uma amiga estava vindo buscá-los para conhecer sua fazenda, não longe da cidade. Sair de casa? "A senhora ligou para minha mãe?", era só o que se passava em sua cabeça. Não importava se tivesse ligado ou não, iriam de qualquer maneira. Ela também era uma mãe...
Um Fusca veio e seguiram pelas ruas, e não importava o carro, ele sempre sentava-se no banco de trás, de joelhos no banco a olhar para trás, não gostava de ver o caminho vindo até ele, gostava de vê-lo abandonando-o lentamente. Da rua para a estrada, da estrada para o estreito caminho de terra batida, salpicado de cascalho, uma porteira, uma ponte e mais uma porteira. O mato não era um local desconhecido, conhecia-o bem, sempre estava indo e voltando das fazendas dos tios-avós, mas aquela situação era completamente diferente, era um local desconhecido, sem todos os familiares ao redor, somente o atento e severo olhar de sua avó. Entraram na casa, a água já estava fervendo e a guampa pronta para o mate, era audácia pura para uma criança beber algo tão quente, nenhum outro primo ou prima o fazia. Sentia-se parte deles, pronto para discutir um golpe de estado em um mundo qualquer, mas preferia ouvir, foi ouvindo que aprendeu as pequenas e certeiras lições de sua avó, seu juízo sobre as coisas nunca forma estreitos, tinha a mente mais ampla que conheceu, fraquejava as vezes como qualquer ser humano, mas era íntegro a qualquer momento.
A palavra cachoeira ressoou entre muitos nomes de velhos conhecidos que ele nunca vira ou nunca iria ver. Seus olhos brilharam, a água é o único dono da natureza, ocupa qualquer espaço e de tanto ocupá-lo segue seu caminho sorrateiramente para seu destino, qualquer que fosse. Era um pequeno símbolo a ser absorvido e que certamente o absorveria. Foi levado até a queda d'água, era raso, diziam, e sua tromba d'água caia exatamente em cima de uma pedra, um presente de Deus, segundo a dona do local. Suas roupas simplesmente desgrudaram do corpo, não pensou muito e já estava dentro da água gelada, seguiu cuidadosamente até a cachoeira, tateando o desconhecido com os pés, areia, pedra, folhas secas, troncos. Sentia o beliscar de pequenos peixes em suas pernas de penugem clara que provavelmente os atraíam. Finalmente, a queda d'água, a pedra em que caia em cima era enorme, não muito mais elevada do que o nível da areia, levou sua mão até o seu fluxo que de tão forte faziam-nas cederem rapidamente. As explorações com os pés não pararam, a textura da pedra era algo novo, liso e escorregadio, algo que entrou para dentro do seu imaginário, uma sensação nova que ficou registrada na memória, como muitos dos acontecimentos daquele dia.
Seus pés agora queriam testar a força do líquido que caia e enchia aquele pequeno lugar de água não muito cristalina. Aos poucos foi sentindo a força da água juntamente com a textura da pedra, e sua combinação faziam-no vibrar. Entretanto, ao chegar ao ponto central da queda d'água os pés perceberam uma reentrância, a água caia dentro de um buraco na pedra, era sua leitura infantil da força da água, não se lembrava do provérbio popular. Seus olhos se arregalaram com o choque. Quão profundo deveria ser aquele buraco? Foi vagarosamente afundando seu pé direito naquele assombro, sua perna não alcançou um fundo... Deveria ser um buraco infinito. Olhou para trás, e sua avó e sua amiga já não estavam lá, havia se arriscado sozinho. Sorriu de pura liberdade, resolvendo testar mais uma vez a profundidade.
Estava com quase todo seu corpo dentro da água e seu peso agora era suportado por sua cabeça e forçava  seus cabelos fazendo cócegas no couro cabeludo, assim poderia penetrar melhor naquele infinito. Não pode com a força da água, ela o afundou e escorregando na textura da pedra, não uma perna, mas as duas e depois o corpo todo entrou no buraco. A água barrenta o cegou, não havia ali um peixe sequer, um turbilhão de nadas passava em sua cabeça, não sabia o que era a morte ou qualquer coisa parecida, nunca esteve em um  hospital ou mesmo lido livros versando sobre o assunto, os heróis não morrem e não matam, eram justos e faziam sofrer uma pena para dirimir as culpas, era assim que o Batman puniria seu traidor, se essa narrativa tivesse tido um fim. São visões de um inocente sonhador. De um pequeno sonhador que deixou a vida ali mesmo. Naquele buraco infinito seu corpo entrou e de lá nunca mais saiu, perdera naquele momento tudo o que o ligava a realidade, seu pesado corpo fora dragado pela água e seu fluxo, mas algo fora regurgitado de volta pela mesma força que o colocou lá dentro.
Sua avó não havia percebido a diferença entre seu espectro e seu corpo, ou se houvesse percebido nada havia comentado, ele estava lívido por todo o conhecimento adquirido pela morte prematura, pela primeira vez tinha um olho fechado e o outro aberto, ouvia as perguntas que os outros faziam e um olho respondia o que eles exatamente queriam ouvir, o outro pensava profundamente sobre aquele momento, nunca optando por uma resposta contudente, era a múltipla possibilidade de respostas que animavam seu espectro. Nunca ninguém sentiu falta de seu corpo, seu espectro fora tomado como a chegada da adolescência que muda radicalmente o pensamento de qualquer um, mas não era isso, havia adquirido toda uma consciência num único lance. Vivia metade no mundo dos mortos, metade no mundo dos vivos, poderia compartilhar das duas partes e das duas partes se nutriu. Os super-heróis de plásticos foram esquecidos, trocados por livros, devorados um atrás do outro, estava a procura de algo que ainda não havia encontrado, permanecia lendo e lembrando-se do seu corpo que ainda deveria estar caindo com a força da água para dentro do infinito.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.

Siderações [desengavetando textos velhos, provavelmente de 2005 ou 2006]

A Cruz e Sousa

Ela olhou as estrelas e sentiu no fundo de seu coração o aperto. Era o combinado. As estrelas estão em todos os lugares. E representam muito mais do que telefonemas ou cartas escritas sem pretensão. A saudade daquele homem vem sempre sorrateira durante a noite, por isso as estrelas. Durante o dia o quarto está iluminado e as fotos de seu irmão estão todas sob seus olhos, mas na calada da noite, não é possível ver com a nitidez do dia. Fotos e estrelas as únicas coisas que podiam acalmar aquele coração aflito. Ela pediu que ele fosse trabalhar na Argentina, mas não, ele queria emoções fortes para suas fotos e textos. "Por que, meu irmão, você foi para a guerra?", ela gritava da sacada de seu apartamento, silenciosamente, sem palavras, mas muito alto dentro do coração de seu irmão.
Um telefonema com uma única pretensão. As estrelas aproximam corações e mentes, mas não os ouvidos. Como a palavra pode ser destruidora. Cinco fonemas, cinco letras e um sentido, o sentido final. Ela gostaria que essa palavra tivesse outro significado. "É preciso buscar novamente no dicionário, deve haver outras entradas com outros sentidos, às vezes figurados...", mas não, esse sentido é fatal.
Ela caiu de joelhos, suas pernas não mais a sustentavam. O peso das palavras?
"Por que ele foi para o Iraque? Ele poderia ter ido para a beira de vulcões, mais previsíveis quem sabe, mas uma guerra... Poderia ser uma guerra contra robôs, contra palavras, contra conceitos velhos e ultrapassados, mas contra homens? Não... Pior, homens sob o calor de Marte." Astros e estrelas malditos. Ela vomitou, não se sentia bem, pôs para fora seu escatológico almoço. Vômito de ira?
Ela flagelou-se, sem cilício ou chicote, apenas pensamentos desconexos. Palavras quintessenciadas? Horas de destruição silenciosa. Hiroshima com apenas uma vítima. Nenhum outro telefonema, nem visita. Sim, ela era sozinha. Seu irmão era tudo e todos. Tão longe e presente.
Se não há consolo caloroso, há o consolo frio e vil. Três círculos sagrados onde os homens construíram a paz verdadeira, brancos e pequenos, sólidos para se desfazerem dentro do suco digestivo. Irônico, não?
Paz... Absoluta paz. Ela jogada no centro de sua sala num tapete felpudo negro, que combinava com vários objetos naquele lugar, visíveis e até invisíveis. Paz... O efeito de sua calma embalada já era quase total. Ela queria ver as estrelas mais uma vez. Abriu a porta-balcão, afastou duas cadeiras e atingiu o parapeito da sacada, olhou para o céu e blasfemou, desta vez em alto e bom som. Queria tirar satisfação com as estrelas. Por que não? Subiu no parapeito. Iria andando até elas, a decisão já estava tomada. Pôs seu pé sobre o ar sólido que aceitou sua pisada raivosa e ela caminhou até o céu. Não, o nome dela não era Ismália. Está mais para Alda.
"Por quê? Me digam!" As estrelas somente a olhavam. Sentiram penas as estrelas? Elas já viram muitas dessas coisas acontecerem....

Finas flores de pérolas e prata,
das estrelas serenas se desata
toda a caudal das ilusões insanas.

Quem sabe, pelos tempo esquecidos,
se as estrelas não são os ais perdidos
das primitivas legiões humanas?!

O olhar das estrelas era desgastante, impassível e sincero. Ela viu que não obteria sua resposta. Sua demanda apenas começara. Pelo véu negro da noite flutuou encarando todas as flores de pérolas e prata, mas nada. Nenhuma delas cederia à dor de sua visitante.
Quando ela desistiu de inquirir as estrelas um ponto brilhante se fez na Terra envolvido pela escuridão da noite. O que seria? "O brilho só pode vir do céu..." Não. Pequeno engano, ilusões criadas por mentes mesquinhas e impuras.
Ela se ateve ao brilho incomum e numa visão aproximou-se. Lá estava a terra onde tudo começara. A terra ignóbil e desnecessária. Quantas cidades não estariam ali enterradas embaixo daquelas estruturas? Quantos milênios de guerra essa cidade já não viu?
O brilho estava atrás de uma trincheira e ela se aproximou levemente, flutuava naquele ar quase sólido de sangue evaporado. Ali estava a estrela que procurava. Um homem, sua máquina fotográfica, seu cartão de autorização e um bloco de anotações jogado ao lado. O tiro foi certeiro, no meio da testa, feito por um especialista. Mas mesmo assim brilhava. A barba espessa fez com que o reconhecimento demorasse um pouco, mas sim, aquele era seu irmão.
A sua calma em pílulas não permitiu que ela tivesse um ataque naquele momento. Somente aquela tristeza e uma lágrima sincera. "Meu irmão... Acorde!" Isso não é um conto fantástico. Ele não vai acordar como num passe de mágica. Morto, ele está morto. E, exceto em sonhos, que não é este o caso, o impossível não pode acontecer.
Ela velou o irmão. O efeito calmante era tão potente que ela não se desesperou. O brilho daquele homem bem afeiçoado, pele morena e rosto quadrado, muito bem feito só disputando com Narciso, foi se tornando cada vez mais forte. Uma estrela em crescimento. Das estrelas serenas se desata toda a caudal das ilusões insanas. Uma estrela sempre está no céu, e foi para lá que se foi o que se foi.
Ela acompanhou a evolução daquela estrela até o céu, de onde acabara de chegar e toda a luz a sua volta foi se desfazendo, e um silêncio incômodo a assustou. Olhou a sua volta. A vista estava rubra de tanto sangue em derredor. Decidiu voltar, mas escutou o choro de um bebê. "Uma criança, aqui?" Quem sabe... Ela procurou em todos os lugares próximos, mas o som daquele pedido ainda sem palavras articuladas não se fez mais alto ou baixo. Até que ela percebeu que o choro vinha de dentro dela.
De seu ventre uma dor inconcebível. Mas aquele bebê não estava pronto para nascer. Mas era seu ventre que queimava. E sua dor foi tão atroz que a acordou de sua busca insana por motivos.
O telefone tocava. "Alô?" sua voz estava rouca, sua boca estava seca. "Aqui é Dorneles, o seu chefe, estou ligando para saber se vou ter que arrumar mais uma mesa para colocar os processos que estão atrasados? Pois o luto do seu irmão já passou já faz mais de uma semana!" Insensível? Não. Prático. Para ele a dor também já passou. Quando ela desligou o telefone percebeu que sua calça estava encharcada de sangue. Quanto tempo ela passou ali, jogada na própria dor? Não importa quanto tempo. O que mais importa agora é que ela finalmente pode se considerar sozinha. Sinto muito Cruz e Souza, o Mistério para os homens já acabou.