A vida mínima [conto de aniversário]

Fran Recacha - Icarus. oil & acrylic on canvas . 130 x 195 cm . 2007

O silêncio, na maioria das vezes, impedia o ar de circular. Não era possível ouvir voz alguma, somente alguns passos sorrateiros que se arrastavam de um cômodo a outro que, por vezes, relembravam a vida que ali dentro ainda existia. Caminhando para o quarto, por hábito, dirigiu-se para o banheiro e ligou o chuveiro. Algumas gotas tiveram a coragem de cair, higienizou-se diante de nenhuma sujeira ou gota de suor, arrastou-se para diante do guarda-roupa, tateou no escuro a terceira porta a esquerda e pegou uma camiseta aleatória. Vestiu-a. Segurou a respiração por um momento. Estranhou, pois era muito maior do que seu corpo, sentiu-se de certa forma confortável, tinha um cheiro distante misturado com odor de mofo, sabia que todas as suas camisetas estavam folgadas, pois, desde que parara de comer, perdera muitos quilos, mas aquela extrapolava em folga. Lembrou-se que ali mesmo já havia existido uma outra vida, o cheiro, sem querer, aproximou-o do passado.

Como esquecera que tudo aquilo existiu? Meneou a cabeça no escuro a procura de outros vestígios daquela vida e percebeu que além daquela camiseta esquecida só havia outras memórias pálidas naquele quarto, naquela sala, naquele banheiro, naquele quintal. A luz já havia entrado vigorosa por aquelas janelas, as portas permaneciam abertas para o entra e sai interminável dos afazeres do lar, da rotina de trabalho, assim como a água fluía livre pelos canos, o som das conversas ultrapassava as paredes, a música embalava diversos momentos, ouvia, de memória, o latido do cão. Lembrou-se até de que o tempo havia passado por ali, colocou o ouvido próximo do relógio de pulso, na esperança de que ele ainda funcionasse, mas não havia sinal de tique-taque, a bateria deveria ter se consumido, assim como o tempo.

Por que tudo aquilo acabara? Aquela outra vida ainda existia em outro lugar? Só se lembrava de quando tudo se tornou escuro, silencioso e harmonioso. Era isso que sempre desejara para si: a harmonia do menor, dos desejos mínimos, da vontade de existir sem atrapalhar quem quer que fosse. Passar desapercebido dos olhares alheios, não exalar cheiro algum, não pensar para acreditarem que não pensou. Estava devidamente conjunto com seus desejos, poderia dizer até que estava feliz, se esse fosse o significado. 

Entretanto, havia um motivo para ele estar naquela situação. Com os olhos fechados, sentiu seu corpo acariciado por aquela camiseta grande. Realmente, ninguém mais desconfiava de sua existência, o telefone não tocava, a campanhia não mais estrondava em sua cozinha, o cão não latia no portão. Morreu de inanição? Não importa, conseguiu se esconder até da luz, pois ela não mais lhe batia a janela pedindo para entrar e sanar o ar com seu calor. Tentou se lembrar se sentia falta daquele carinho, mas não sentia mais seu corpo, acostumara-se com a camiseta e ela já não roçava em seus pelos. Pensou que naquele momento poderia chorar, poderia sentir solidão ou mesmo começar a reclamar todos os seus momentos sozinhos desde que fora abandonado, mas não conseguia cumprir com aquele intento. Era pedante demais para ser sentido na harmonia que conseguira criar naquele pequeno universo vazio que tanto o satisfazia. Vivendo a vida mínima, chegou a um ponto pacífico, um acordo divino com a própria existência. Muitos poderiam acreditar que se tornara um fantasma que habitava aquela casa por hábito, acreditem no que quiser, pois nesta vida nem mesmo o que os outros pensavam afetavam para mais ou para menos como agia.

Aqueles pensamentos agora se tornavam tão fúteis que pode se movimentar novamente. Fechou a porta do guarda-roupa. Seu quarto de visitas fora transformado em uma biblioteca, passou a mão por muitos livros, seus dedos não acumulavam pó, não havia nenhum para ser depurado pelo toque. Seu tato escolheu o livro da noite, era o momento de relaxar na poltrona que permanecia no centro do quarto porque ali estava o ponto de “luz” que o ajudou a ler num passado remoto... A lâmpada queimada não o impedia de sentar-se confortavelmente e abrir o livro na página duzentos e trinta e oito e ler, mesmo que de forma fingida. As letras não eram mais necessárias, havia decorado todos os livros que ali dormiam esperando seu toque para ganharem vida, não esquecia nem mesmo uma vírgula. Emocionara-se, era o grande momento. Viver a vida mínima não era deixar de sentir. A personagem iria se sacrificar em nome de seu amor, doar-se por completo para que o seu amado vivesse.

Fora isso que tinha feito também, sacrificou-se para que o outro pudesse viver. Foi abandonado e não argumentou, sabia que longe dele o outro seria, finalmente, feliz. O outro fez as malas, deixou algum dinheiro sobre a mesa de centro, abriu o portão e, sem conseguir dizer adeus, teve a ousadia de acenar um tímido nos-encontramos-por-aí. Fechado o portão, o cachorro se deitou a seus pés, também iria sentir falta daquela vida. Fechou as janelas, uma por uma, cerrou as cortinas. Por mais que parecesse que estava se fechando para nunca mais sair, era na verdade um ato libertador, ouvira o seu próprio respirar aliviado no momento em que o outro abandonou aquele lar. Fechou a porta dos fundos, já era noite, por hábito, passou a chave, medo de um possível ladrão roubar os seus bens. Não seria melhor deixar aberto, já que nada mais fazia diferença alguma? Fechou a porta principal, o cachorro ficou de fora, latiu muito nos primeiros dias, mas depois não era mais possível ouvi-lo. A Sorte deve ter-lhe dado um destino melhor. A vida tornou-se mínima, custava menos do que o suficiente para existir. Sumiu da memória do outro, não fazia mais diferença, não era mais cobrado por aquilo que não queria oferecer. Enfim, a vida mínima é assim, o sonho realizado de não mais ser.