Cinzas

"Viver, amar, morrer, acordar, dormir, sonhar, escrever, construir ou, enfim, desconstruir seria com efeito trabalhar no horizonte do impossível." (Evandro Nascimento em Derrida e Literatura)

Estava coberto de cinzas. Cada centímetro de seu corpo estava coberto pelo resto do resto de suas cartas queimadas. Uma pira enorme com mais de duzentas cartas incendiadas. Os sentidos se desfizeram em desfervor. Todas as cartas que enviou eram sobriamente incendiárias, achava que estava conquistando o outro pela conversa, a flama amorosa, mas não. Suas cartas incendiadas eram somente uma pequena centelha que morreu logo. E que ainda morreria mais uma vez.

O telefone havia tocado insistentemente aquela manhã e ele insistentemente se recusava a atendê-lo. Quem em sã consciência ligaria para ele numa manhã de domingo? Não sabia que estaria escrevendo? Criando? Sonhando? Uma ousadia interminável. Normalmente já não recebia ligações. Normalmente não passava seu telefone particular para os amigos ou conhecidos... Quem poderia ser? Resolveu atender. Lembrava da vez que seu irmão fora demitido, recebeu uma ligação chorosa e teve que emprestar alguns mil reais para que ele pudesse voltar para sua cidade natal e ficar debaixo das asas da mãe protetora que nunca abandonaria um filho ao relento. Lembrou-se também de quantas vezes sua mãe não o ajudou a mudar-se de cidades, de quantas vezes ele teve que vagar invariavelmente para poder conseguir abrigo, de quantas vezes se humilhou perante a sociedade para conseguir o sustento que lhe garantiria o tempo inviável necessário para escrever. Lembrou-se de quantas vezes não recebia ligações de seus pais, de quantas vezes já mudou de telefone e sempre deixava o número com a empregada da casa, já que sua mãe não lhe atendia. Lembrou-se e não ficou tocado. Já estava resistente àquele tipo situação. Quantas vezes escutou a mofa de sua família, foi exatamente quantas vezes tentou reconciliar com cada um deles. Resolveu não atender mais. Sentou-se novamente em frente do computador, mas não conseguia se concentrar. O telefone tocava novamente. Levantou-se, iria atender. Sentou-se novamente, decidira escrever uma carta para Heart, iria novamente lamentar-se de sua família. Quando pegou o papel e a caneta e colocou cuidadosamente o local e a data, o som do telefone mais uma vez o desconcentrou. “Alô?”, sua voz não poderia mostrar receptividade depois de mais de dez perturbadoras tentativas de seu interlocutor. Era o advogado da família Kunst, “cuido do espólio do senhor Juliano Kunst, e ele o menciona em seu testamento. Poderia vir a São Paulo tomar posse de sua parte da herança?” Demorou algum tempo para reconhecer nomes tão estranhos aos seus ouvidos.

“Desculpe interromper... Meu nome é Juliano, mas todos me chamam Heart.” Ainda se sentia culpado pela resposta mal humorada que deu à mesa do bar do Hotel Kennedy. Não poderia prever que Heart seria um nome que escutaria todos os dias em que passou em Florianópolis. Lá estava ele em sua palestra, na mesa ao lado nos restaurantes da ilha, no bar. “Maurício, você conhece aquele homem loiro?” É claro que o conhecia, Heart patrocinava o ciclo de palestras em que participava. Sentiu uma ponta de culpa que logo passou, não tinha que puxar o saco de patrocinadores, estava ali porque era exatamente aquele que gostaria que estivessem ali. Tomou mais dois drinks e tocou o braço de Maurício, era o sinal costumeiro para ir. “Heart não falou contigo no hotel? Vocês estão no Kennedy.” Ainda se arrependia de sua resposta. Foi a primeira carta que trocaram. “Em que quarto o Sr. Juliano está hospedado?” Era no fim do corredor de sua suíte. “O senhor não quer entregar pessoalmente esta carta? Ele acabou de chegar... Posso ligar em seu quarto e anunciá-lo!” É claro que não iria entregar nada pessoalmente.

A resposta seca era convidativa: “Posso te esperar para irmos juntos a palestra de hoje? Às 19h30 no hall?” Solicitou que a recepcionista ligasse em seu quarto dizendo que aceitaria o convite. “Deseja falar com ele?” Certamente não.

O jornal da cidade estava de pé, e uma folha se passava quando colocou os pés no hall. Os olhos de Heart não se voltaram para ele, “comentários sobre sua palestra de ontem estão em todos os jornais”. Pela primeira vez demonstrou seu desprezo por toda a publicidade que rondava sua vida pública e Heart sorriu, concluiu que ele era exatamente quem ele gostaria que estivesse ali. No caminho, nenhuma palavra sobre a resposta à primeira tentativa de aproximação de Juliano e também nenhuma palavra sobre o evento que organizara. Os dois falavam sobre os livros que ambos haviam publicado. Cada um em sua área, Juliano nas artes plásticas e ele na literatura. Eram críticos de arte e só tinham palavras de críticas cada um para com seu próprio livro. Dos seus livros para outros livros, críticas e mais críticas. Dos outros livros para a palestra. Um escritor contemporâneo qualquer iria falar sobre qualquer brevidade que sua obra buscava em vão representar. Sim, críticas. Juliano havia se recusado a compor a mesa redonda que este escritor estaria presente, apesar da insistência dos outros organizadores... entretanto, era ele que estava pagando pela aquela orgia cultural, portanto...

Da palestra para o bar, o papo de bar era um tanto ameno: viagens. Das viagens para o hotel, no hotel no quarto de Juliano, uma bela vista para um mar um tanto não saudável. Riram... falaram do romantismo daquela vista. Olharam-se e riram novamente. Nenhum dos dois havia falado em romance, mas haviam pensando e pensado a noite toda. As palavras não representavam vontades, mas os gestos representavam o desejo, acima de qualquer circunstância. O desejo toma o lugar das palavras e a vontade dos pensamentos: a perfeita ordem das coisas.

Juliano deveria permanecer na cidade por mais uma semana para cuidar da pós-produção do evento, porém ele ia naquela mesma noite. Deixou seu endereço sobre o criado-mudo. As cartas vieram e também foram. Várias delas, durante meses e meses.

São Paulo era terreno inóspito, por isso decidiu voltar para sua cidade natal depois de tantos anos. Estar em São Paulo era anunciar a morte de sua própria escrita. O ritmo desenfreado que enfrentava fazia com que se ocupasse mais com outras obrigações do que com escrever. Pisar naquela cidade era lembrar exatamente tudo o que viveu e o que deixou de viver: os desgastes, as desventuras, e a solidão. Recluso em si mesmo, viveu tal qual misantropo numa multidão que passa rapidamente pelas vitrines. Um prédio, um escritório, um advogado como tantos outros que ali existiam lhe deu o endereço da casa de Heart. “Já estava o esperando!” foram as primeiras palavras que escutou da mãe de Juliano. Sentiu-se desconfortável. Um chá no jardim. Não entendia qual espólio seu amigo poderia ter deixado para ele. “Reconciliaste com sua mãe?” Como aquela mulher que nunca havia visto poderia estar perguntando da única mulher que o poderia tirar do sério? “Li as cartas que mandaste para Juliano”, Então, sabe todos os meus segredos!”, “Não, os seus segredos estão estampados em sua face! Não é preciso saber ler, ou perder horas no quarto de um filho assassinado, em busca de um conforto, para poder entender sua razões e motivações de existir.” Disfarçando, sentia-se nu perante aquela potência, Juliano era um intérprete pálido perante sua mãe. Ela imóvel continuou: “Juliano não lhe deixa dinheiro, livros ou quadros... Juliano lhe deixou exatamente o que já era seu: suas cartas. Acredito que ele queria que eu não soubesse de seus segredos, dos segredos de ambos, mas se os teus segredos estão estampados em sua face, os de Juliano estavam espalhados pela casa, nos quadros e nos seus livros”. O silêncio era certamente de vergonha, e por mais que ela tentasse tornar a situação menos embaraçosa para ele, ela jamais conseguiria vesti-lo. “O que vai fazer das cartas?” No quarto de Juliano tudo estava já encaixotado, apontada a caixa de cartas, ambos se ajoelharam e se perderam nas pequenas narrativas que cada uma possuía, e nas narrativas respostas que somente ele conhecia e que a mãe poderia desconfiar. “Vou queimar as cartas!” Ela não se assustou, levantou-se e trouxe os aparatos para queimá-las. Na lógica das cinzas, o excesso são o fogo e a fumaça, sobra de energia, e o essencial é o que resta, as cinzas.

Estava coberto de cinzas. Cada centímetro de seu corpo estava coberto pelo resto do resto de suas cartas queimadas. Uma pira enorme com mais de duzentas cartas incendiadas. Os sentidos se desfizeram em desfervor. Todas as cartas que enviou eram sobriamente incendiárias, achava que estava conquistando o outro pela conversa, a flama amorosa, mas não. Suas cartas incendiadas eram somente uma pequena centelha que morreu logo. A amizade que os ligou era o essencial, o resto era fogo e fumaça. Não eram dois amantes, eram dois amados.

Recolhida as cinzas na caixa, somente o essencial restou. Nada de palavras, folhas ou tinta, somente cinzas. Quando chegou em sua casa, olhou para o telefone, muitas chamadas não atendidas. Haveria recados na secretária eletrônica? Que importa. Pegou todas as cartas de Heart e juntou-as com as cinzas. Mais uma vez tudo deveria ser queimado, até restar cinzas. O fogo no início foi tímido... mas quando entendeu que somente assim se poderia cumprir sua tarefa, destroçou tudo o que viu pela frente... não lhe importava se eram folhas ou sua carne fresca. No final, só restou cinzas, o essencial de cada um.