Sentado à mesa do café-da-manhã, divagava com a faca sobre a margarina. Lembrava do sonho daquela noite. Um homem olhava-o profundamente em seus olhos, sorria e levantava dois palitos de fósforo longos e com a cabeça vermelha. Seus olhos passaram a faiscar como se fosse cometer um crime. A faca passeava sobre o pão enquanto sua mãe se aproximava. Ela nunca chegava de um único lance, ia aproximando-se vagarosamente. Abria a geladeira, pegava uma jarra. Ia até o armário, retirava um copo. Puxava a cadeira, sentava-se e a água lentamente caía dentro do copo. As divagações não cessaram até sua mãe abrir a boca, o desgrudar dos lábios fez um leve barulho que logo fora interrompido pela entrada da empregada bufando. A mãe olhou para ela com os olhos apertados, controlando via o medo os gestos desnecessários da empregada. Sorrisos de satisfação, pela manutenção violenta da tranquilidade na ambiência do café-da-manhã. A empregada saiu, sem nenhum barulho. O ritual novamente começara. As mãos tocaram o copo, enquanto a jarra era colocada sobre a mesa. Levada o copo até a boca, enquanto sua mão passeava sobre o crochê que enfeitava a mesa. Sorria, enquanto abria a boca. O filho ainda passando a faca serenamente sobre o pão, olhou para os olhos da mãe. Disse alguma coisa sobre o pai não estar muito satisfeito com comportamento do filho. Enunciou sua idade mais de quatro vezes e lhe exigia que fizesse algo de sua vida. Ele sorria ao pronunciar sua sentença sobre o julgamento do pai, já fazia algo, algo aliás muito importante: viver. Não havia ocupação mais interessante do que esta. Sua mãe desmoronou em si mesma. Levantou-se, dirigiu-se ao filho e passou a mão em sua cabeça. Mostrou o tamanho da casa com um gesto largo que abrangia a cozinha de um canto ao outro e afirmou que aquilo não duraria para sempre, que o pai um dia iria morrer e todo o conforto iria com ele, visto que o filho não se interessava pelos negócios da família. Negócios do pai da família, retorquiu severamente. A mãe abaixou a cabeça concordando. Exigiu que procurasse seu próprio sustento, já que aqueles negócios não o interessavam. Negócio nenhum o interessava, tinha outras espécies de negócios a tratar. E seguindo para a biblioteca, cuidaria do seu primeiro afazer do dia. Cuidaria, se houvesse encontrado algum livro sobre as prateleiras. Somente restava o pó, que estava disposto de acordo com a grossura de cada volume. Esperava por aquilo, só não tinha condições de mensurar exatamente quando aquilo iria acontecer. A empregada entrou exasperada. Ele a olhou e sorriu. Ela tentava explicar que seu pai havia mandado retirar todos os livros da biblioteca e que foram levados não sei para onde. Ela estava tristíssima perguntando o que sua criança iria fazer naquele momento. Saiu sem um aperto no peito, subiu ao seu quarto, trocou de roupas e pegou sua carteira. O celular brilhava a luz do sol matutino que lhe invadia pela janela, não tocou nele, como nunca o havia tocado. Sua face transmitia tranquilidade, os olhos da mãe ao observá-lo atravessar o sala de estar não conseguia acreditar naquilo. Ganhou o jardim, e o motorista lhe perguntou onde deveria levá-lo. Um único gesto com a mão indicara que iria passear sem o carro. As ruas não faziam sentido para ele, andava sem destino, lembrou da mãe requerindo-lhe uma ocupação. O comércio da cidade estava abrindo suas portas. Entrou numa loja de antiguidades, observou cada móvel em seus detalhes. Um recamier o interessou-lhe particularmente. Sentou-se, tocou o tecido, passeou com os dedos pelos detalhes talhados na madeira. O vendedor vestido com terno e gravata perguntou se havia gostado da peça, os detalhes eram talhados por uma história qualquer a qual não prestou atenção, os detalhes explicavam a si mesmo sem história alguma. Deu o endereço onde deveria entregar o móvel, não perguntou o preço e ofereceu o cartão de débito ao caixa. O caixa ofereceu uma promoção qualquer que rejeitou ao questionar se havia alguma livraria ali por perto. O cartão havia sido rejeitado. Saldo insuficiente. Tirou algumas notas da carteira e pediu que o caixa guardasse o troco. Sim, havia uma livraria há duas quadras na direção da praça. Seguiu para lá, viu a livraria que era ladeada por um sebo, preferiu a loja de livros usados. Ao ser prontamente atendido disse que iria procurar por si mesmo o livro que levaria aquela manhã. Viu muitos dos títulos da sua biblioteca desaparecida, até que encontrou um livro que não havia lido, abriu-o, leu a primeira linhas em voz alta: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz a sua maneira". Refletiu por um instante, não compreendia o que poderia ser uma família feliz, concluiu que se houvesse certamente era falsa, só poderia ser de plástico dentro de uma casinha de bonecas. Novamente seu cartão não funcionara, retirou mais uma vez o dinheiro da carteira. O tempo estava fresco, a praça era o local ideal para a leitura. Sentou-se embaixo de uma árvore qualquer, abriu o livro e acendeu um cigarro. Parecia que sua mãe se aproximava, mas não, era um rapaz. Parou na frente do lago, enquanto mexia na bolsa. Tirava uma máquina fotográfica, enquanto os pombos voavam com a presença de uma criança correndo. Virou a página. O rapaz virou-se, tirou uma foto na direção em que o rapaz estava. Guardou a máquina, enquanto caminhava em direção ao banco. Sentou-se colocando a bolsa ao lado abrindo a boca, o descolar dos lábios e seu som costumeiro. Não permitiu que falasse, perguntou antes se era fotografo. A negativa o fez rir. O rosto do rapaz ficou rubro perante a sua pele alva. Tentava explicar o motivo da fotografia, mas fora interrompido, não devia nenhuma explicação a ninguém... as pessoas estão acidentalmente na paisagem a qual se quer registrar. Até mesmo num retrato, não quer-se registrar a pessoa, mas o momento, o sentimento, o segredo que há ali. A pessoa aparece acidentalmente na paisagem. O rapaz riu-se da explicação, os dois começaram a discutir a fotografia até que o rapaz perguntou-lhe o nome. Giovani. O rapaz se apresentou já que ele não lhe havia feito a mesma pergunta. Leandro. Combinaram de se encontrar em um bar não longe dali depois das seis horas para terminar a discussão sobre a fotografia, visto que Leandro precisava ir para o trabalho. Continuou a leitura, os transeuntes não percebiam que ali para ele o tempo não passava, todos olhavam para o relógio e morriam oprimidos pelo ponteiros que indicavam horas cheias e seguiam sem poder parar e observar tudo o que só pode ser percebido lentamente. Almoçou em um boteco qualquer quando teve fome. Ao dirigir-se novamente para a praça, encontrou um amigo, queria somente lhe cumprimentar meneando a cabeça, mas infelizmente foi parado. Após os cumprimentos tudo bem desnecessários contou-lhe que seu pai estava furioso na empresa, sem um por quê?, continuou explicando que Giovani era o motivo da irritação, educara seu filho nas melhores escolas, mandara-o para a Europa e a América do Norte e para quê? Gritava um nada que poderia ser ouvido até mesmo na contabilidade. Todos estavam em polvorosa. Giovani não regia, parecia que estavam lhe narrando a história de uma outra pessoa que não ele. Seu pai confidenciou ao advogado, amigo de Giovani, que havia tomado uma medida drástica. Lembrava de sua mãe pedindo que arrumasse uma ocupação. Livrou-se do amigo ao perguntar que horas entrava depois do almoço, olhando o relógio com os olhos arregalados saiu correndo. Sentado no banco esqueceu-se de tudo e sorveu cada personagem como se não os tivessem abandonado pela necessidade alimentar do corpo. Às cinco, Leandro voltava pelo mesmo caminho e estranhou que ele ainda estava sentado ali, não se aproximava. Dessa vez não foi até o lago, tirou sua câmera da bolsa e tirou a mesma fotografia sem a mesma luz do começo do dia. Giovani fechou o livro e levantou-se perguntando se aquilo era uma mania. Os dois sorriram, seguiram para o bar que deveriam se encontrar. O rapaz havia tomado a liberdade de chamar alguns amigos, ele não se sentiu incomodado visto que o bar era um local que qualquer poderia entrar, sentar e beber, rir, conversar e se apaixonar. Leandro sorriu. O bar era bem decorado, mas a sua atenção não se voltava para os enfeites pendurados no teto do local e sim para as pessoas. Analisou o cabelo, a roupa, os gestos de cada uma num único lance de vista, reconheceu um ou dois amigos do pai, um ou dois amigos que o visitaram na Europa a pedido da mãe. Enfadou-se, estava no seleto circo fechado de sua família. Leandro percebeu logo a mudança do sorriso em desgosto. Nada estava errado, era óbvio que mentia. Sentaram-se numa mesa ao fundo. Leandro apontou alguns homens e descrevia a profissão, Giovani falava que os conhecia e Leandro se chocou. A conversa mudou de tom com a chegada de quatro amigos, dois homens e duas mulheres. Os nomes foram ditos e esquecidos da mesma maneira. O que interessava era os cabelos cacheados de uma, os olhos verdes quase transparentes da outra. A barba por fazer de um, e as entradas do outro. Leandro apresentou Giovani ao contar a história das duas fotografias, todos se interessaram. E uma chuva de perguntas bombardeou-o, atingiam o alto mar já que as respostas eram vagas e imprecisas. Após o questionário mal preenchido, logo voltaram a discutir a questão do retrato. Leandro não concordava, Giovani argumentava que o retrato de pessoas desconhecidas eram mais expressivos que o de conhecidos. Havia mais história num desconhecido do que numa celebridade. A barba e os cachos concordavam com Giovani ao enumerarem fotógrafos que possuíam maior poder expressivo. Já as entradas concordava com Leandro, o retrato de uma pessoa conhecida expressa além do retratado toda a força política daquele indivíduo. Sóbria, os olhos verdes questionou o amigo se não havia força política num desconhecido. A mesa parou de falar por um instante. Leandro balançou a cabeça refletindo, Giovani o olhava com demora. Os amigos perceberam que ali havia uma outra história acontecendo, com ou sem força política. Muitas cervejas ilustravam mais e mais as teorias particulares sobre o retrato que logo descambou para a pintura e por fim chegou aos planos futuros, cada um jornalista, sonhava com a grande reportagem, um livro de fotografias de desconhecidos, uma cobertura de uma guerra ou mesmo uma ponta no jornal televisivo. No momento de Giovani anunciar seu plano futuro, pegou o livro e disse que gostaria muito de terminar aquele livro antes que o pai o achasse e o escondesse como os outros. Todos gargalharam. Leandro percebeu o rosto sério do novo amigo. Era tarde, as despedidas começaram, promessas de novo encontro foi feita, mas naquela semana seria impossível, cada um com sua ocupação que não batia com o horário do outro. Há quanto tempo não se encontravam? Semanas, provavelmente. A memória foi comida pelo tempo, pensou Giovani. Restou somente os dois à mesa. Leandro queria encontrá-lo novamente, assustou-se com o fato dele não lembrar-se do número de seu celular. Anotou seu número num guardanapo que fora imediatamente guardado dentro do livro. Cada um tomou seu caminho. As ruas do centro da cidade estavam iluminadas levemente e as vitrinas das lojas formavam um mosaico do desejo, Giovani parou na frente de uma ou duas e apreciou o conceito. As luzes diminuam à medida que se aproximava de sua casa. Abriu o portão e estranhou uma luminosidade incomum no jardim. Era uma fogueira, concluiu com mais dois passos. A mãe chorava ao lado do pai que jogava um por um os livros que estavam num carrinho de mão. O pai ao ver o filho ferveu voando em direção ao livro que estava embaixo de seu braço que logo foi atirado ao fogo. O pai interrogava como ele havia comprado aquele livro se todos os seus cartões estavam bloqueados e olhava furiosamente para a esposa ao adivinhar que ela nunca deixava a carteira de seu filho vazia. Um sermão sobre o trabalho e a ocupação foi seguido de muitos olhares de raiva espumante. A raiva converteu-se rapidamente em ódio ao perceber que o filho não se comovia com toda a sua ira. Lembrava-se da mãe passando a mão em sua cabeça, lembrava-se da empregada contando-lhe como os livros sumiram, lembrava-se do amigo advogado que o parara na rua, lembrava-se dos olhos verdes, dos cachos, das entradas e da barba, lembrava-se de Leandro e sua máquina fotográfica, lembrou-se de seu sonho e sorriu. Levou uma bofetada na cara. O pai repetia sem cessar que ele deveria aprender a viver e que acordaria cedo amanhã para ir ao escritório.
Canção Marcial - Esben and the witch (tradução)
Il n'y a pas de victoire, il n'y a que des drapeaux et des hommes qui tombent.
(Jean-Luc Godard)
Na selvageria dos pensamentos nublados,
batalhando com ácidas respostas mentais
e caminhando em prados vazios,
é possível se abandonar calmamente
mesmo afogado em chuvas.
Atenção soldados
para esta canção marcial!
Cabeça erguida!
Olhos firmes!
As batidas dos tambores desaparecem.
O estrondo dos pratos diminuem.
A lama é engrossada com desejos
para poder afundar
os seus pés na terra.
E suas botas afundam
nas memórias intermináveis
de pensamentos perdidos.
E o exército de muitos
lutam sua própria luta,
perdidos na escuridão.
Cegos!
Suas vísceras, minha trincheira.
Eu mesmo, minha arma.
Os sussurros quebram o silêncio
com delicados gemidos.
Braços e pernas.
Dentes e unhas.
Nossa frágil unidade
está destinada à falha
Este batalhão
desgastou-se
em capitães e camaradas.
Já posso apostar pela sua morte...
Inocência irônica
Les Carabiniers, França, 80min, 1963, preto e branco

Isso não pode ser a morte
Por que iria ela rondar o forte?
Não tendes vergonha de acreditar numa fábula?
Simplesmente alguém, para sua festa, ordenou este carnaval
Inventou esses tiros enquanto ele pisca os olhos
Como é encantador o baixo do anfitrião,
parece um canhão
E a máscara não é de gás, simples brinquedo farsante
Vejam!
Em sua corrida, o foguete mede o céu!
A morte teria essa graça ao deslizar pelo salão do céu?
Ah, não diga: “O sangue de uma ferida”
É odioso
Simplesmente, para honrar os heróis,
eles foram ornados de cravos
Claro!
O cérebro não quer compreender, nem pode
A nuca dos canhões, não fosse para um beijo
por que seria enlaçada pelos braços das trincheiras?
Ninguém foi morto
Simplesmente, não podendo mais estar de pé,
deitaram-se do Sena ao Reno
pois floresce e inebria a gangrena nos canteiros dos mortos
Quem disse mortos?
Não! Não!
Todos se erguerão
Assim, simplesmente, voltarão
e dirão sorrindo às suas mulheres: “Que brincalhão,
que fenômeno era seu anfitrião”
Eles dirão: “Não houve nem granadas nem explosivos”
É claro que não havia um forte
Alguém inventou para a festa
um mundo de admiráveis fábulas
O desejo de não morrer faz com que o significado do poema transcenda, sabendo que logo morreria, a jovem ironiza com a ideia da morte ser uma admirável fábula e que ainda permaneceria viva como num sonho, "todos se erguerão, assim, simplesmente, voltarão e dirão sorrindo às suas mulheres: que brincalhão [...]", ela também voltaria, os diversos tiros que leva não a matam por completo, caída no chão move o braço, o que faz o capitão atirar mais uma vez e outra e outra e outra. Homens e bandeiras caem de todos os lados: morre a jovem comunista, morre metaforicamente o carabineiro em sua violência. Morremos todos nós diante do horror de qualquer guerra. E as conquistas, ou a vitória, são todas ilusórias. Postais e mais postais se acumulam, à guisa de títulos de propriedade. Ulisses e Miguel Ângelo levam para casa os monumentos, os meios de transporte, as mulheres, dentre outras coisas. Fotografias e postais de tudo o que viram e que inocentemente não sabiam que já eram de cada um deles: tudo estava ali, eles não se reconhecem herdeiros dos bens da humanidade. Cleópatra até diz que dará o Pharteton para um familiar qualquer, visto que está velho e precisava de uma reforma.
Por fim, depois de uma longa cena enumerando cada um dos bens que logo entrarão em posse real, assim que a guerra acabar, há a divisão de tudo entre os quatro personagens, eles se encantam com cada uma de suas conquistas, escolhem, brigam, soam inocentes, mas não, o sorriso de mofa no rosto de cada um deles só nos mostra a genialidade de Jean-Luc Godard, eles são irônicos: não há vitória, só quedas. E sentimo-nos quedar diante da nossa inocência perante o mundo. E a lição permanece: por que não sermos igualmente inocentes irônicos também?
b - iamamiwhoami (tradução)
E ali ele estava, sozinho...
Poderiamos ter recolhido todas as nossas coisas e ido
morar na areia movediça,
lado a lado, de mãos dadas.
Afundando aos poucos e voando,
Permitindo o silêncio cobrir a luz cega.
Respire fundo enquanto descemos e descemos...
Voar alto,
cada vez mais alto.
Até a lua nos forçar a escalar até o chão.
E eu desejando afundar na areia...
Voar alto,
cada vez mais alto.
Com ódio e desprazerosas saudações
A paranoia me eu ensinou a viver com.
Mesmo que eu nunca vá esquecer o que ficou para trás.
As suas músicas ainda ressoam em minha mente.
E todo o branco azula,
me procurando procurando você.
Respire fundo enquanto descemos e descemos...
Exumação [conto de aniversário]
É muito diáfana a linha divisória entre a sanidade e o desequilíbrio mental.
(Manoel Philomeno de Miranda em Nas fronteiras da Loucura)
Acordou determinado. Sabia a demanda que deveria cumprir naquele dia. Pegou seu carro e seguiu o caminho da memória, faria duas homenagens, uma para o passado e outra para o futuro. Percorreu um caminho que não conhecia, somente lembrava-se. Foi guiado pelo desejo, não havia nada marcado no mapa, não havia um X nesta exploração, era necessário farejar o sentido da lembrança. Quinze anos separavam os dois acontecimentos. Depois de muito correr pela cidade, um cheiro tornou-se a bússola ... Finalmente, saíra da cidade e pegara a BR. Era aquele o caminho. A certeza era a certeza da memória.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os super-heróis que enchiam sua caixa de brinquedos tornavam-se dessa forma sua liberdade criadora na infância, não podia sair do quintal mas não estava preso, tinha os bonecos-de-ação de todos os tipos, gêneros, articulados ou imóveis. Eles se aventuravam muitas vezes em histórias mais que reais, dramas pessoais não vividos nas séries televisivas que apreciava com um gosto peculiar entre uma ópera ou outra que assistia pela madrugada, seus personagens discutiam a política de seus mundos, queriam provocar mudanças, eram, descobriu depois, heróis trágicos, pais das pátrias e dos povos, sofriam por todos porque este era o seu destino, todos aqueles heróis de plástico estavam predestinados a sofrer a pena pelo sofrimento alheio em diálogos um tanto complexos para a pequena narrativa do super-herói que mesmo salvando a humanidade inteira tinha tempo ao final de cada episódio para viver cenas domésticas de pura futilidade da indústria cultural. Um deles, provavelmente o Batman, estava com um problema com seus ministros, estava tramando um golpe de estado para poder tornar-se o único senhor soberano do local... nunca saberemos se aquele herói teria superado tal questão, sua avó havia interrompido um momento muito importante na sua pequena mitologia monológica pessoal. Uma amiga estava vindo buscá-los para conhecer sua fazenda, não longe da cidade. Sair de casa? "A senhora ligou para minha mãe?", era só o que se passava em sua cabeça. Não importava se tivesse ligado ou não, iriam de qualquer maneira. Ela também era uma mãe...
Um Fusca veio e seguiram pelas ruas, e não importava o carro, ele sempre sentava-se no banco de trás, de joelhos no banco a olhar para trás, não gostava de ver o caminho vindo até ele, gostava de vê-lo abandonando-o lentamente. Da rua para a estrada, da estrada para o estreito caminho de terra batida, salpicado de cascalho, uma porteira, uma ponte e mais uma porteira. O mato não era um local desconhecido, conhecia-o bem, sempre estava indo e voltando das fazendas dos tios-avós, mas aquela situação era completamente diferente, era um local desconhecido, sem todos os familiares ao redor, somente o atento e severo olhar de sua avó. Entraram na casa, a água já estava fervendo e a guampa pronta para o mate, era audácia pura para uma criança beber algo tão quente, nenhum outro primo ou prima o fazia. Sentia-se parte deles, pronto para discutir um golpe de estado em um mundo qualquer, mas preferia ouvir, foi ouvindo que aprendeu as pequenas e certeiras lições de sua avó, seu juízo sobre as coisas nunca forma estreitos, tinha a mente mais ampla que conheceu, fraquejava as vezes como qualquer ser humano, mas era íntegro a qualquer momento.
A palavra cachoeira ressoou entre muitos nomes de velhos conhecidos que ele nunca vira ou nunca iria ver. Seus olhos brilharam, a água é o único dono da natureza, ocupa qualquer espaço e de tanto ocupá-lo segue seu caminho sorrateiramente para seu destino, qualquer que fosse. Era um pequeno símbolo a ser absorvido e que certamente o absorveria. Foi levado até a queda d'água, era raso, diziam, e sua tromba d'água caia exatamente em cima de uma pedra, um presente de Deus, segundo a dona do local. Suas roupas simplesmente desgrudaram do corpo, não pensou muito e já estava dentro da água gelada, seguiu cuidadosamente até a cachoeira, tateando o desconhecido com os pés, areia, pedra, folhas secas, troncos. Sentia o beliscar de pequenos peixes em suas pernas de penugem clara que provavelmente os atraíam. Finalmente, a queda d'água, a pedra em que caia em cima era enorme, não muito mais elevada do que o nível da areia, levou sua mão até o seu fluxo que de tão forte faziam-nas cederem rapidamente. As explorações com os pés não pararam, a textura da pedra era algo novo, liso e escorregadio, algo que entrou para dentro do seu imaginário, uma sensação nova que ficou registrada na memória, como muitos dos acontecimentos daquele dia.
Seus pés agora queriam testar a força do líquido que caia e enchia aquele pequeno lugar de água não muito cristalina. Aos poucos foi sentindo a força da água juntamente com a textura da pedra, e sua combinação faziam-no vibrar. Entretanto, ao chegar ao ponto central da queda d'água os pés perceberam uma reentrância, a água caia dentro de um buraco na pedra, era sua leitura infantil da força da água, não se lembrava do provérbio popular. Seus olhos se arregalaram com o choque. Quão profundo deveria ser aquele buraco? Foi vagarosamente afundando seu pé direito naquele assombro, sua perna não alcançou um fundo... Deveria ser um buraco infinito. Olhou para trás, e sua avó e sua amiga já não estavam lá, havia se arriscado sozinho. Sorriu de pura liberdade, resolvendo testar mais uma vez a profundidade.
Estava com quase todo seu corpo dentro da água e seu peso agora era suportado por sua cabeça e forçava seus cabelos fazendo cócegas no couro cabeludo, assim poderia penetrar melhor naquele infinito. Não pode com a força da água, ela o afundou e escorregando na textura da pedra, não uma perna, mas as duas e depois o corpo todo entrou no buraco. A água barrenta o cegou, não havia ali um peixe sequer, um turbilhão de nadas passava em sua cabeça, não sabia o que era a morte ou qualquer coisa parecida, nunca esteve em um hospital ou mesmo lido livros versando sobre o assunto, os heróis não morrem e não matam, eram justos e faziam sofrer uma pena para dirimir as culpas, era assim que o Batman puniria seu traidor, se essa narrativa tivesse tido um fim. São visões de um inocente sonhador. De um pequeno sonhador que deixou a vida ali mesmo. Naquele buraco infinito seu corpo entrou e de lá nunca mais saiu, perdera naquele momento tudo o que o ligava a realidade, seu pesado corpo fora dragado pela água e seu fluxo, mas algo fora regurgitado de volta pela mesma força que o colocou lá dentro.
Sua avó não havia percebido a diferença entre seu espectro e seu corpo, ou se houvesse percebido nada havia comentado, ele estava lívido por todo o conhecimento adquirido pela morte prematura, pela primeira vez tinha um olho fechado e o outro aberto, ouvia as perguntas que os outros faziam e um olho respondia o que eles exatamente queriam ouvir, o outro pensava profundamente sobre aquele momento, nunca optando por uma resposta contudente, era a múltipla possibilidade de respostas que animavam seu espectro. Nunca ninguém sentiu falta de seu corpo, seu espectro fora tomado como a chegada da adolescência que muda radicalmente o pensamento de qualquer um, mas não era isso, havia adquirido toda uma consciência num único lance. Vivia metade no mundo dos mortos, metade no mundo dos vivos, poderia compartilhar das duas partes e das duas partes se nutriu. Os super-heróis de plásticos foram esquecidos, trocados por livros, devorados um atrás do outro, estava a procura de algo que ainda não havia encontrado, permanecia lendo e lembrando-se do seu corpo que ainda deveria estar caindo com a força da água para dentro do infinito.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.
Siderações [desengavetando textos velhos, provavelmente de 2005 ou 2006]
A Cruz e Sousa
Ela olhou as estrelas e sentiu no fundo de seu coração o aperto. Era o combinado. As estrelas estão em todos os lugares. E representam muito mais do que telefonemas ou cartas escritas sem pretensão. A saudade daquele homem vem sempre sorrateira durante a noite, por isso as estrelas. Durante o dia o quarto está iluminado e as fotos de seu irmão estão todas sob seus olhos, mas na calada da noite, não é possível ver com a nitidez do dia. Fotos e estrelas as únicas coisas que podiam acalmar aquele coração aflito. Ela pediu que ele fosse trabalhar na Argentina, mas não, ele queria emoções fortes para suas fotos e textos. "Por que, meu irmão, você foi para a guerra?", ela gritava da sacada de seu apartamento, silenciosamente, sem palavras, mas muito alto dentro do coração de seu irmão.
Um telefonema com uma única pretensão. As estrelas aproximam corações e mentes, mas não os ouvidos. Como a palavra pode ser destruidora. Cinco fonemas, cinco letras e um sentido, o sentido final. Ela gostaria que essa palavra tivesse outro significado. "É preciso buscar novamente no dicionário, deve haver outras entradas com outros sentidos, às vezes figurados...", mas não, esse sentido é fatal.
Ela caiu de joelhos, suas pernas não mais a sustentavam. O peso das palavras?
"Por que ele foi para o Iraque? Ele poderia ter ido para a beira de vulcões, mais previsíveis quem sabe, mas uma guerra... Poderia ser uma guerra contra robôs, contra palavras, contra conceitos velhos e ultrapassados, mas contra homens? Não... Pior, homens sob o calor de Marte." Astros e estrelas malditos. Ela vomitou, não se sentia bem, pôs para fora seu escatológico almoço. Vômito de ira?
Ela flagelou-se, sem cilício ou chicote, apenas pensamentos desconexos. Palavras quintessenciadas? Horas de destruição silenciosa. Hiroshima com apenas uma vítima. Nenhum outro telefonema, nem visita. Sim, ela era sozinha. Seu irmão era tudo e todos. Tão longe e presente.
Se não há consolo caloroso, há o consolo frio e vil. Três círculos sagrados onde os homens construíram a paz verdadeira, brancos e pequenos, sólidos para se desfazerem dentro do suco digestivo. Irônico, não?
Paz... Absoluta paz. Ela jogada no centro de sua sala num tapete felpudo negro, que combinava com vários objetos naquele lugar, visíveis e até invisíveis. Paz... O efeito de sua calma embalada já era quase total. Ela queria ver as estrelas mais uma vez. Abriu a porta-balcão, afastou duas cadeiras e atingiu o parapeito da sacada, olhou para o céu e blasfemou, desta vez em alto e bom som. Queria tirar satisfação com as estrelas. Por que não? Subiu no parapeito. Iria andando até elas, a decisão já estava tomada. Pôs seu pé sobre o ar sólido que aceitou sua pisada raivosa e ela caminhou até o céu. Não, o nome dela não era Ismália. Está mais para Alda.
"Por quê? Me digam!" As estrelas somente a olhavam. Sentiram penas as estrelas? Elas já viram muitas dessas coisas acontecerem....
Finas flores de pérolas e prata,
das estrelas serenas se desata
toda a caudal das ilusões insanas.
Quem sabe, pelos tempo esquecidos,
se as estrelas não são os ais perdidos
das primitivas legiões humanas?!
O olhar das estrelas era desgastante, impassível e sincero. Ela viu que não obteria sua resposta. Sua demanda apenas começara. Pelo véu negro da noite flutuou encarando todas as flores de pérolas e prata, mas nada. Nenhuma delas cederia à dor de sua visitante.
Quando ela desistiu de inquirir as estrelas um ponto brilhante se fez na Terra envolvido pela escuridão da noite. O que seria? "O brilho só pode vir do céu..." Não. Pequeno engano, ilusões criadas por mentes mesquinhas e impuras.
Ela se ateve ao brilho incomum e numa visão aproximou-se. Lá estava a terra onde tudo começara. A terra ignóbil e desnecessária. Quantas cidades não estariam ali enterradas embaixo daquelas estruturas? Quantos milênios de guerra essa cidade já não viu?
O brilho estava atrás de uma trincheira e ela se aproximou levemente, flutuava naquele ar quase sólido de sangue evaporado. Ali estava a estrela que procurava. Um homem, sua máquina fotográfica, seu cartão de autorização e um bloco de anotações jogado ao lado. O tiro foi certeiro, no meio da testa, feito por um especialista. Mas mesmo assim brilhava. A barba espessa fez com que o reconhecimento demorasse um pouco, mas sim, aquele era seu irmão.
A sua calma em pílulas não permitiu que ela tivesse um ataque naquele momento. Somente aquela tristeza e uma lágrima sincera. "Meu irmão... Acorde!" Isso não é um conto fantástico. Ele não vai acordar como num passe de mágica. Morto, ele está morto. E, exceto em sonhos, que não é este o caso, o impossível não pode acontecer.
Ela velou o irmão. O efeito calmante era tão potente que ela não se desesperou. O brilho daquele homem bem afeiçoado, pele morena e rosto quadrado, muito bem feito só disputando com Narciso, foi se tornando cada vez mais forte. Uma estrela em crescimento. Das estrelas serenas se desata toda a caudal das ilusões insanas. Uma estrela sempre está no céu, e foi para lá que se foi o que se foi.
Ela acompanhou a evolução daquela estrela até o céu, de onde acabara de chegar e toda a luz a sua volta foi se desfazendo, e um silêncio incômodo a assustou. Olhou a sua volta. A vista estava rubra de tanto sangue em derredor. Decidiu voltar, mas escutou o choro de um bebê. "Uma criança, aqui?" Quem sabe... Ela procurou em todos os lugares próximos, mas o som daquele pedido ainda sem palavras articuladas não se fez mais alto ou baixo. Até que ela percebeu que o choro vinha de dentro dela.
De seu ventre uma dor inconcebível. Mas aquele bebê não estava pronto para nascer. Mas era seu ventre que queimava. E sua dor foi tão atroz que a acordou de sua busca insana por motivos.
O telefone tocava. "Alô?" sua voz estava rouca, sua boca estava seca. "Aqui é Dorneles, o seu chefe, estou ligando para saber se vou ter que arrumar mais uma mesa para colocar os processos que estão atrasados? Pois o luto do seu irmão já passou já faz mais de uma semana!" Insensível? Não. Prático. Para ele a dor também já passou. Quando ela desligou o telefone percebeu que sua calça estava encharcada de sangue. Quanto tempo ela passou ali, jogada na própria dor? Não importa quanto tempo. O que mais importa agora é que ela finalmente pode se considerar sozinha. Sinto muito Cruz e Souza, o Mistério para os homens já acabou.
Profundidade verde
Caminhava sem muita pressa pela rua. Atravessava uma rua ou outra, sempre a observar cada vitrine, roupas das últimas tendências não eram exatamente o que lhe interessavam. Parava por vezes longos minutos em frente de uma vitrine, lá dentro diversas roupas dependuradas em manequins que imitavam poses humanas monumentais para mostrar definitivamente o bom caimento de cada roupa num corpo ilusório, mais ao fundo as vendedores ávidas por mais uma venda naquele fim de ano sem muito movimento, resultado de crises sobre crises, esperavam ansiosamente por sua entrada, vestia-se bem, portava uma bolsa de marca, usava uns óculos com design aclamado, seria uma venda garantida. Porém, seu olhar não estava direcionado nem para os manequins, nem para as roupas, muito menos para as vendedoras. O seu olhar parava antes, antes de penetrar a mágica insustentável da loja, parava na própria vitrine que se tornava espelho em sua visão. Olhou concentradamente por longos minutos para seus próprios olhos verdes refletidos que se destacam sob certa iluminação daquele dia ensolarado. Sua forma se tornava vaga na vitrine com tanta luz, mas seus olhos não, eram certeiros e exatamente refletidos mostravam exatamente aquilo que estava procurando. Geralmente quando a visão de sua própria imagem numa forma de autoaprovação sorri-se, e ele não. Seu rosto alvo quadrado tornava-se mais sisudo, mais petrificado, parecia um monumento da Ilha de Páscoa, como a esperar pelo grande acontecimento.
Sua atenção somente se desviou a passagem de um homem que o olhava, o olhar do outro o atraia e de uma forma misteriosa, ele sabia que estava sendo observado e sempre retribuia insistentemente a observação. Da mesma forma que olhou-se por minutos diante da vitrine, vislumbrou todo o caminhar daquele homem que seguia em sua direção e certamente passaria por ele seguindo o curso natural do caminhar pelo centro da cidade. Não foi exatamente o que aconteceu. O homem parou ao seu lado e começou a olhar as roupas, as vendedoras vibraram com gritinhos surdos. Ele não voltou a olhar a vitrine continuou insistentemente a olhar para o homem até que o outro se volta para ele, aproxima-se de seu ouvido e diz qualquer palavra convidativa. Ambos sorriam de canto de boca e partiram juntos no caminhar natural das vidas. As vendedoras se dispersaram suspirando.
Naturalmente conversaram sobre tudo, ou seja, sobre coisa alguma. Se olharam e se desejaram nitidamente, corpos pulsantes e colidindo um para o outro. Mentes que se atrem por uma beleza única que só há no outro ser humano, uma beleza que suplementa a sua interminávelmente. Sua casa era um primor da arquitetura contemporânea, suas linhas retas, o concreto, o sábio uso do vidro. O amplo quarto era preenchido somente por uma cama com seus lençóis brancos, sua única desordem, era a desordem do dia: roupas salpicando o chão amadeirado. Os corpos se moviam numa entrega total, suspiravam e cediam ao desejo alheio enquanto seu próprio desejo era preenchido de uma nova forma muitas vezes não experimentada. O desejo só possui um fim, e com o seu fim, os corpos tornam-se novamente humanos, severamente humanos. Olharam-se e sorriram, como se a satisfação de si pudesse estar num único ato. O observador de vitrines não deixou de fazê-lo, observava silenciosamente o outro enquanto contava historietas para depois do sexo, quando questionava dava respostas vagas. A única coisa que lhe interessava era os olhos que misteriosamente eram vislumbrados, agora sem sorriso algum, estava novamente a contemplar sua própria imagem na profundidade azul do outro, sua busca não havia terrminado.
Levantaram para um banho. Num gesto de último carinho permiriam-se ensaboar-se, enxaguar-se e mais uma vez beijaram um ao outro. Não vestiram roupa alguma, seguiram direto para um outro cômodo que possuia um espelho que ocupava toda a parede, parecia a sala de ensaio de um ballet qualquer. O espelho ali serve para observar com detalhes impensáveis o movimento do corpo, é possivel estudar o detalhe de cada músculo, sua curvatura, sua grandiosidade ou flacidez. Ele sentou o outro no chão sobre um leve acolchoado que se olhou envergonhado para o espelho a sua frente. Ele permanecia sério, como a preparar um leve ritual, trouxe dois copos preenchidos com qualquer vapor em homenagem a Baco e entregou sem olhar o copo que tocava uma música glacial desconexa . Tomou um pequeno e tímido gole, suspirou fundo com o álcool rasgando sua garganta enquanto ele se sentava por trás do outro envolvendo-o com suas pernas, os dois agora poderiam se olhar o próprio reflexo. A seriedade pertubava o outro que muitas vezes desviava o olhar do espelho. Levemente o copo foi colocado no chão vitreo da sala, as mãos percorreram lentamente o corpo alheio, sua mão, agora severa, segurou o queixo do outro forçando-o olhar diretamente para o espelho. O silêncio da cena tornava o ritual macabro. Ele analisava cada detalhe do corpo de seu convidado, perscrutava pacientemente cada milímetro da alteridade. Minutos tensos que só se encerraram com sua voz um tanto rouca sentenciando: "Não é você!" De olhos arregalados o outro levantou-se apressadamente chutando sem querer o copo, o líquido naturalmente se espalhou formando uma poça desordenada, o gelo rolou enquanto começava seu processo de liquefação perante o leve calor que se fazia. Os dois se olharam, um de pé com os musculos retesados por tal insulto, o outro levemente deitado apoiando as mãos para trás. Nenhuma palavra foi dita, o outro simplesmente saiu em direção ao quarto para resgatar suas roupas e provavelmente sair o mais depressa possível. Ele permaneceu ali quase deitado, somente observando a si mesmo, seu único movimento foi pegar o gelo mais próximo e passar pelas curvas de seu corpo, aquele toque insano do gelo o fez voltar a infância. Viu a si mesmo nu deitado na cama, sua mãe se aproximou e o pegava no colo. Deveria ter cinco anos ou menos. Ela sempre o levava para a frente do espelho e ambos ficavam observando a si e ao outro, enquanto a mãe dispensava carinhos por sobre o corpo branco do filho, ele nunca sorria na frente do espelho enquanto a mãe gargalhava pelas brincadeiras carinhosas, ele sempre olhava para ela com tal profundidade que sem sombra de dúvida poderia até mesmo estar se observando no reflexo da profundidade verde de sua mãe.
A educação de quem?
FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1963

Mas estava resolvido (e a todo custo) a mudar de existência, isto é, não perder o coração em paixões infrutíferas, e até hesitava em desempenhar-se da comissão de que Luísa o havia encarregado: comprar para ela, em casa de Jacques Arnoux, duas grandes estatuetas policromas representando pretos, como os que estavam na prefeitura de Troyes. Conhecia a marca do fabricante e não as queria de outro. Frederico tinha medo, se voltasse a casa deles [dos Arnoux], de tornar a cair nos seus antigos amores." (261, reparem que o grifo é do autor)
A necessidade de não vê-la mais criou em si um desejo de volta à província: "odiando o meio fictício onde tanto tinha sofrido, [Frederico] desejou a frescura do manto, o repouso da província, uma vida sonolenta passada à sombra do teto natal, com corações ingênuos." (427) E foi-se novamente pisar no chão menos fictício (?) que sua terra natal insistia em representar... Porém o fogo desse desejo, que move a muitos de nós, acaba nos levando de uma forma indefinida a diversos lugares ou situações. Sua volta a Paris é marcada por diversas mudanças em seu comportamentos, mudanças naturais que sempre vão se processando no intelecto e no sensível de cada um de nós, lições que aprendemos de ouvido ou na pele, lições que assinamos com a nossa orelha ou com sangue mesmo. E eis uma lição no meio de tantas: "há homens que apenas têm por missão servirem de intermediários entre os outros: passam-se como pontes e segue-se adiante." (p. 248) E muitas pontes se fizeram entre Fred e seus objetivos que mudaram tanto e tantas vezes que não há necessidade de mapeá-los, seria mapear a própria lógica da existência. Porém, há uma reviravolta na história de todos, uma revolução, uma revolução qualquer que acontece a todos os momentos, sejam mais ou menos sangrentas, mais ou menos politizadas, mais ou menos circunstanciais, porém, Frederico estava tão dentro de si que não se lembrou de perceber os fatos que aconteciam fora de sua janela e se chegou a percebê-los fez de forma inconsciente: "Ah! lá estão liquidando algum burguês! - disse Frederico [junto a janela] com tranquilidade, porque há situações em que o homem menos cruel está tão desligado dos outros que é capaz de ver morrer o gênero humano sem um abalo do coração" (p. 292) Com a morte do gênero humano inteiro Frederico poderia, sim, ser exatamente aquilo que desejava, os outros e seus interesses de alguma forma não tão obscura atrapalhavam seu objetivo, sem eles, sem burgueses, numa outra e nova(-velha) situação política ele poderia ter tudo o que desejou. Não só ele, mas esse clima de anti-percepção do outro estava dominando a cidade do desejo, um guarda: "carregava a arma e atirava, sempre a falar com Frederico, tão sossegado no meio da revolta como um horticultor no seu jardim." (p. 294) Estavam todos recolhendo os seus tubérculos para o jantar, a ceia em que se farta de satisfação de si mesmo. Mas a terra não é boa, não tem nutrientes suficientes, precisa de revoluções para que novos modos possam ser cultivados. E da terra revirada novos insetos sempre surgem. Desculpem, não são insetos, vamos continuar explorando a primeira metáfora, são pontes, pontes que precisam ser cultivadas, algumas precisando de maior ou menor atenção nos reparos. Frederico inocente sempre cuidara de todas as pontes com a mesma atenção, na província não deveria haver muitas pontes, mas em Paris há pontes demasiadas e tratar de todas desgasta a própria existência, "Frederico teve vontade de lhe responder: "Não te inquietes! eu pagarei!" Mas a mulher podia mentir. A experiência já o havia ensinado. Limitou-se apenas a consolações." (p. 321) O pequeno ensinamento sobre as pontes tornou a sua vida mais interessante, seu romantismo, sua idealização foram minguando, as mulheres foram tornando-se mais vivas e também menos reais.
"[...] Rosanette não confessava todos os amantes, para que ele a estimasse mais; porque, no meio das confidências mais íntimas há sempre restrições, por falsa vergonha, delicadeza, piedade. Descobrem-se nos outros ou em nós precipícios ou lodos que impedem prosseguir; sentimos, aliás, que não seriamos compreendidos; é difícil exprimir com exatidão seja o que for eis porque as uniões completas são raras." (340-1)
A mentira estava a sua volta por falsa vergonha, delicadeza e piedade, as uniões completas além de raras eram invisíveis, cheias de mistérios, a fim de esconder muitas vezes somente o vazio de sua própria existência oca: "O coração das mulheres [e acrescento, do homem] é como certos moveizinhos de segredos, cheios de gavetas encaixadas umas nas outras; a gente incomoda-se, quebra as unhas, e no fundo apenas encontra alguma flor seca [quantos homens não tem flores tão secas em suas gavetas?], alguma poeira - ou então nada! E, afinal, receava vir a saber demais." (p. 399) Quanto mais sabia, mais se tornava vivo, mais tornava os outros vivos. Conhecer é humanizar o outro e a si mesmo, num lance paradoxal e ceticista. É uma espécie de colonização, onde muitos outros-iguais precisam por vezes até serem extintos para que a Metrópole do Desejo se estabeleça, as faces de Deus possam estar entre os homens, ou para que pontes sejam construídas ou destruídas. Há fatos mais traumáticos que outros, e há fatos traumáticos que não só resignificam a existência por-vir, mas resignificam a existência anterior, dando sentido e consistência a experiência já vivida, e a morte de seu filho, torna-se para ele o começo de todas as desgraças, como se nenhuma delas já houvesse se processado em sua vida, o que é impensável, visto que já estamos no fim do volume e que seu modo de vida já mudara muito da mesma e estranha forma que continuava o mesmo. Surge nele, como surge em muitos de nós, a vontade de conservar o trauma pela arte, queria eternizar a figura do filho que nascera morto, escolheu a pintura, poderia ter escolhido qualquer outro monumento que só tem por fim lembrar o que mais queremos esquecer. A lição monumental não estava numa pintura sob encomenda, estava em processo em seus atos e suas ideias:
"Frequentou a sociedade, e teve ainda outros amores. Mas a recordação permanente do primeiro [o de Madame Arnoux] tornava-os insípidos; e, depois, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, perdera-se. As suas ambições de espírito tinham igualmente diminuído. Passaram anos; ia suportando a ociosidade da inteligência e a inércia do coração." (429)
A recordação permanente do primeiro amor, monumento que só existe para ser esquecido, fez com que o desejo, as ambições do espírito, diminuíssem. Diminuíssem por serem inalcançáveis? Não, por serem demais para qualquer espírito, sonha-se muito alto, romantiza-se todas as ações, quer-se que grandes narrativas, narrativas heróicas, possam ser lembradas, mas a lembrança monumental, lembre-se, nasceu para ser esquecida. É aquele fato mínimo, minúsculo, ínfimo que por vezes relembramos todos os dias, não em forma de monumento, mas de processo. O processo que se elabora pela lembrança dos atos menores torna possível que possamos sentar no fim da existência, e tomar um chá com Deus (nestes momentos serve mesmo um amigo, ou mesmo um inimigo) e assistir ao crepúsculo do mundo e ainda poder conversar para de forma estranha e desnecessária resumir a vida:
"E [Frederico e Deslauriers, não único, mas insistente amigo de infância,] resumiram a vida de ambos.Os dois tinham falhado: [Frederico] que sonhara o amor , [Deslauriers] que sonhara o poder . Qual fora a razão?
- Foi talvez por não termos seguido a linha reta, - disse Frederico.
- Para ti, talvez. Eu, pelo contrário, pequei por excesso de retidão, sem levar em conta mil coisas secundárias, que são superiores a tudo. Eu, por excesso de lógica, tu, por excesso de sentimento." (436)Seguindo em linha reta ou não, preferindo o amor ou o poder, ou um misto de tudo, ambos puderam concluir mesmo de que forma vacilante que:
"- Foi afinal o que nós tivemos de melhor - disse Frederico.
- Sim, talvez. Foi o que nós tivemos de melhor - disse Deslauriers." (437)
O julgamento de Capitu ou "ler com" e "ler para"
Ezra Pound em seu ABC of reading me ensinou duas lições preciosas: ler com e ler para. Ele me convidou a assumir essa tarefa como professor de Língua Portuguesa, ou como professor simplesmente. Ler com os alunos é uma atitude encantatória: cria-se um momento propício para a leitura e neste momento os alunos ao me verem lendo ficam curiosos, querem saber, querem entender, quem imitar aquele ato. Levo grossos volumes para a sala de aula, e aqueles mais audaciosos que me veem arrancar o livro da mão para lerem o título do livro e o nome do autor, nomes aos quais muitas vezes não conseguem nem pronunciar, ficam com os olhos arregalados e tentados a quererem mais, dias desses Pride and Prejudice de Jane Austen estava circulando pela sala. E a lição mais preciosa: ler para os alunos. Sempre que estou a ler faço questão de iniciar a aula com o trecho ensaístico de algum romance ou uma poesia chocante ou sensual, quero mostrar-lhes o gozo que há na leitura. E sempre discutimos... questões relacionadas à gramática? Não, questões relacionadas ao existir. A literatura tem um pacto com a vida e não com a gramática. Propus-me, então um desafio: ler Dom Casmurro de Machado de Assis com os meus alunos no 9º Ano. "Este livro é chato", "tem palavras difíceis", "você não vai conseguir" foram alguns dos muitos argumentos (diria preconceitos) que tive que ouvir. Entretanto, não dei ouvidos, só somos uma grande orelha quando o que temos que escutar realmente tem sentido. Procedi a leitura lentamente, lendo performaticamente para cada um deles e ouvindo-os ler, tropeçando em palavras fora de uso (ou que foram esquecidas pelo uso demasiado prático da língua), esquecendo vírgulas, acentos, enfrentando a vergonha de ler para os colegas ou de ler sem fluência, mas também vi leitores vorazes que queriam ler a descrição de Escobar para poder apreciar em sua imaginação a singular beleza da personagem, ou mesmo rapazes que secretamente se apaixonaram por Capitu, por seus olhos, por sua sagacidade, alunos que escondiam os livros dentro da mochila para terminar aquela parte em casa ou saber o que viria a acontecer, que se impacientaram esperando o tão necessário beijo entre um penteado e outro, ou esperam o momento da duvidosa traição. Foram meses de trabalho, os alunos leram o livro sob os meus olhos, os que faltavam queriam saber o que perderam, exigiam-me um relatório dos últimos acontecimentos. Os preconceitos? Não sei onde foram parar, as palavras difíceis foram vencidas com perguntas ou com o dicionário, a chatice do livro é própria de um casmurro a tornar vivas as suas memórias. Lido o livro, convidei os alunos para o mais óbvia de todas as atividades: julgar Capitu. Seria ela inocente ou culpada das acusações? Não me importa, julgar Capitu era uma expressão que tinha o sentido deslocado em minha cabeça, significava: como este livro marcou aqueles muitos momentos em que estivemos lendo juntos, quais significados foram explorados, o que eles absorveram para si da experiência do outro. Não tinha necessidade de revelar meus segredos, minhas segundas intenções para os alunos ao propor a atividade. Por duas semanas a sala se dividiu como em uma guerra: os acusadores e os defensores. Folheavam o livro, procurando aquele trecho que construiria sua argumentação para o grande dia. Fizeram pesquisas na internet. Esconderam um dos outros o que estavam construindo. Para finalmente realizar uma acusação totalmente baseada no texto com seus argumentos mais contundentes ou uma defesa emocional apelando para os sentimentos mais íntimos dos jurados. Jamais esquecerei, ou não quero esquecer: os trechos lidos pela acusação ou as perguntas certeiras da defesa. Desta feita, a emoção ganhou da razão e Capitu foi inocentada. Desta feita, o "você não vai conseguir" se desfez como um castelo sobre a areia. Consegui conquistar todos os para a leitura? Não! a multiplicidade dos gostos não pode ser satisfeita, mas dos muitos que consegui agradar certamente marquei sua história de leitura. Não, minto. Machado de Assis conseguiu marcar sua história de leitura, da mesma forma que marcou a minha com Memórias Póstumas de Brás Cubas.
(des)esperar
Desesperou. Já havia revirado todas as gavetas do quarto do tio. Uma por uma. Cuecas, meias e pequenos objetos foram jogados para cima e caíram sem destino, espalhados formavam um mosaico de uma pequena angústia. Procurava e se perguntava onde poderia estar... Resolveu olhar os bolsos das calças, paletós e não achou absolutamente nada do seu interessante, somente dinheiro, telefones anotados em pequenas folhas de papel e outros segredos que os homens guardam em seus armários. Passou para o maleiro, dezenas de caixas e objetos inúteis. Bufou enquanto tirava cada uma das caixas as quais destampava e virava sem dó, alguns dos objetos frágeis quebravam-se facilmente em contato com o chão, dando um ar mais agressivo ao mosaico angustiante. Destampou uma por uma até encontrar uma pequena caixa metálica, trancada por um cadeado miúdo. Torceu o cadeado, era deveras resistente, certamente estaria ali seu objeto de desejo. Chacoalhou-a ouviu secos ruídos metálicos se chocando. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. A chave provavelmente estaria no chaveiro do dono da caixa, pensou enquanto descia os dois lances da escadaria que separava os quartos da parte comum da casa. Não havia razão para seu tio levar o molho de chaves para pescar, seu pai o acompanhava e ele como dono da casa abriria e fecharia cada uma de suas portas. Na mesinha de centro ao lado do controle remoto estava o molho e as chaves da porta de seu escritório, da casa do amante, do armário da academia e algumas outras chaves que perderam sua função ao enfrentar o tempo e as intempéries da existência. Entretanto, por mais que o tempo enegrecesse as chaves sem função aparente, foi exatamente uma delas, a menor de todas que abriu a caixa metálica. Precisou utilizar as duas mãos para erguer a tampa como a criar um momento de suspense. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. Retirou com cuidado o frágil tesouro: uma pequena pistola .38. Abriu e rodou o tambor do mesmo modo que seu tio fazia quando queria se exibir. Preencheu lentamente cada espaço vazio com uma bala, agia a maneira de um ritual. Um ritual que encerraria de uma vez por todas com seu desespero.
Esperou. Com a arma carregada sentou-se no centro do tapete persa branco que dava para a porta principal da casa. Estava a espreita de sua vítima. Olhou o relógio pendurado em cima da porta. Era exatamente três horas da tarde. Não tardaria a chegar, podia até ouvir os ruídos que ele geralmente produzia. Pensou em quantas desilusões teve que enfrentar, quantas vezes desistiu de se formar, quantas vezes bebeu e arrependeu -se por não lembrar o que falou, quem beijou, o que dançou, quantas vezes teve que ouvir calado impropérios de seus familiares que só sabiam julgá-lo por cada passo, cada levantar de dedos, cada tossir, cada sorriso. O ruído ainda não era suficiente. A espera já estava deixando-o irritado. Sua mão tremia, já sentia que ele estava se aproximando. Lembrou-se de cada amor que teve ou que achou que teve, cada nome, cada rosto, cada sorriso, cada frase estúpida que teve que ouvir, cada submissão que teve que suportar por carência para não se ver sozinho novamente. Eram seus passos, seu trotar tamborilava em sua mente, era uma tortura. Sentiu-se uma bruxa na Inquisição, seus pés e mãos atados numa cadeira ornamentada, seu inquisidor abria o mecanismo que dispensaria em sua testa uma gota d'água a cada poucos segundos, no começo sentiria-se molhar, mas em poucos minutos a queda de cada gota pareceria uma martelada em sua cabeça. Mas ele não confessaria nada, suas memórias para si já eram recalcitrante o suficiente. Eram elas que precisavam ser caladas.
(Des)esperou. A vítima estava ali. Presente naquele mesmo tapete persa, sentado. Já falava alto, gesticulava para si mesmo, a arma balançava de um lado para o outro, os olhos seguiam cada movimento com medo. A espera valeu a pena, tudo para matar aquele que causava o desespero e calar aquelas vozes da memória. Apontou a arma para sua cabeça, destravou e sentiu o frio do gatilho. Ainda pode ouvir um último lampejo: o quanto se dedicara aos outros e esquecera de si mesmo. O estampido da bala brilhou. Nenhuma memória era ouvida naquele momento, seu corpo caiu e o buraco em sua cabeça jorrava sangue, matéria da memória que manchava o tapete. Finalmente, sua vítima não existia mais, seus memórias não o perturbariam mais. Seu tio nem se importaria com a bagunça do quarto, os objetos quebrados, os segredos revelados. O sobrinho estava morto, (des)esperou muito tempo, e finalmente ele estava morto e toda a memória estava silenciada.
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