Rosa branca (conto de aniversário)


a Izolina Moura de Souza, minha avó e Doutora em Formigas

Ela mandou-me pegar uma tesoura no pote de barro em cima da estante. Corri, como sempre corri pela casa em que cresci, abandonei e agora retornei. Posso ver-me correndo por todos os cantos, pulando, dando um salto e cortando o joelho. Olhe a cicatriz. Voltei com a tesoura. Fomos ao quintal, bem ali estava a roseira branca. Apreciava o modo como ela se curvava perante as rosas brancas, enormes a desabrochar e as cheirava. Não a imitava. Achava o ato ridículo. Ela pegou a tesoura da minha mão e me ensinou onde cortar os talos das rosas brancas que já se despetalaram pelo vento, pelos animais roçando, pela própria brevidade da vida. Só lhes restavam o miolo, envelhecido, sinal da morte. Cortou dois talos e entregou-me a tesoura. A me observar, cortei todos os outros. Me indicava onde estava aqueles escondidos os quais minha desatenção costumeira nunca iria encontrar. Nos próximos dias, cuidei de todas as roseiras de casa, a tesoura havia se mudado de sua casa para a minha. Era o artefato mágico, com o qual daria mais vida a todas aquelas roseiras pelo corte mortal que procedia. Até o dia em que já não alcançava as rosas de cima. Estavam altas para uma pequena criança que só veio a ter a altura que tenho depois da adolescência.

Um dia, quando ela mesma percebeu que já não as alcançavam, tomou o facão e decepou todas as roseiras, deixando só uma parte de seus galhos verdes. Pensei que ela não as queira mais. Havia tratado mal as roseiras e a punição foi a morte de todas. Era a morte total. A morte que não tinha mais volta. Senti-me totalmente culpado. Porém, era mais uma lição que me mostrava. Não perguntei absolutamente nada, ela apareceu como pela própria experiência que só muito depois vim a entender. Dos galhos verdes nasceram outros galhos menores e em pouco tempo mais rosas e mais saudáveis. Continuei a podá-las até entender o dia em que deveria novamente decepá-las até não sobrar flor ou folha.

Ela tinha Doutorado em Formigas cuja base na filosofia alemã era tão íntima e profunda que não tivera necessidade de abrir um livro de Heidegger sequer. Nietzsche? Nenhuma linha. Nestes pequenos gestos de um doutorado bem feito, aprendi todas as lições. Mas como em todo e qualquer estudo em Formigas, não dei valor a lição no momento do aprendizado. Todo o entendimento é a posteriori. As lições somente tornam-se vivas pela memória.

Ela morreu. E todas as roseiras foram com ela. Não dei o valor necessário as suas palavras sobre rosas ou formigas. Não chorei sua morte. Porém, como a roseira decepada, sem folhas ou rosas, ela nasceu em galho e perguntou: “Você acha que eu não te amo?” O que fazer a não ser chorar? Pela primeira vez na minha vida, já com mais de duas décadas de vida, chorei. O interdito se desfez e pela primeira vez, também, entendi o que era o sentimento. Não me doutorei em formigas. Não poderia. Somente guardo suas lições, para rememorá-las e flagelar-me com a minha cega desatenção costumeira. Hoje me curvo perante rosas brancas e as cheiro, no gesto mais ridículo de todos os tempos.


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