Cinzas

"Viver, amar, morrer, acordar, dormir, sonhar, escrever, construir ou, enfim, desconstruir seria com efeito trabalhar no horizonte do impossível." (Evandro Nascimento em Derrida e Literatura)

Estava coberto de cinzas. Cada centímetro de seu corpo estava coberto pelo resto do resto de suas cartas queimadas. Uma pira enorme com mais de duzentas cartas incendiadas. Os sentidos se desfizeram em desfervor. Todas as cartas que enviou eram sobriamente incendiárias, achava que estava conquistando o outro pela conversa, a flama amorosa, mas não. Suas cartas incendiadas eram somente uma pequena centelha que morreu logo. E que ainda morreria mais uma vez.

O telefone havia tocado insistentemente aquela manhã e ele insistentemente se recusava a atendê-lo. Quem em sã consciência ligaria para ele numa manhã de domingo? Não sabia que estaria escrevendo? Criando? Sonhando? Uma ousadia interminável. Normalmente já não recebia ligações. Normalmente não passava seu telefone particular para os amigos ou conhecidos... Quem poderia ser? Resolveu atender. Lembrava da vez que seu irmão fora demitido, recebeu uma ligação chorosa e teve que emprestar alguns mil reais para que ele pudesse voltar para sua cidade natal e ficar debaixo das asas da mãe protetora que nunca abandonaria um filho ao relento. Lembrou-se também de quantas vezes sua mãe não o ajudou a mudar-se de cidades, de quantas vezes ele teve que vagar invariavelmente para poder conseguir abrigo, de quantas vezes se humilhou perante a sociedade para conseguir o sustento que lhe garantiria o tempo inviável necessário para escrever. Lembrou-se de quantas vezes não recebia ligações de seus pais, de quantas vezes já mudou de telefone e sempre deixava o número com a empregada da casa, já que sua mãe não lhe atendia. Lembrou-se e não ficou tocado. Já estava resistente àquele tipo situação. Quantas vezes escutou a mofa de sua família, foi exatamente quantas vezes tentou reconciliar com cada um deles. Resolveu não atender mais. Sentou-se novamente em frente do computador, mas não conseguia se concentrar. O telefone tocava novamente. Levantou-se, iria atender. Sentou-se novamente, decidira escrever uma carta para Heart, iria novamente lamentar-se de sua família. Quando pegou o papel e a caneta e colocou cuidadosamente o local e a data, o som do telefone mais uma vez o desconcentrou. “Alô?”, sua voz não poderia mostrar receptividade depois de mais de dez perturbadoras tentativas de seu interlocutor. Era o advogado da família Kunst, “cuido do espólio do senhor Juliano Kunst, e ele o menciona em seu testamento. Poderia vir a São Paulo tomar posse de sua parte da herança?” Demorou algum tempo para reconhecer nomes tão estranhos aos seus ouvidos.

“Desculpe interromper... Meu nome é Juliano, mas todos me chamam Heart.” Ainda se sentia culpado pela resposta mal humorada que deu à mesa do bar do Hotel Kennedy. Não poderia prever que Heart seria um nome que escutaria todos os dias em que passou em Florianópolis. Lá estava ele em sua palestra, na mesa ao lado nos restaurantes da ilha, no bar. “Maurício, você conhece aquele homem loiro?” É claro que o conhecia, Heart patrocinava o ciclo de palestras em que participava. Sentiu uma ponta de culpa que logo passou, não tinha que puxar o saco de patrocinadores, estava ali porque era exatamente aquele que gostaria que estivessem ali. Tomou mais dois drinks e tocou o braço de Maurício, era o sinal costumeiro para ir. “Heart não falou contigo no hotel? Vocês estão no Kennedy.” Ainda se arrependia de sua resposta. Foi a primeira carta que trocaram. “Em que quarto o Sr. Juliano está hospedado?” Era no fim do corredor de sua suíte. “O senhor não quer entregar pessoalmente esta carta? Ele acabou de chegar... Posso ligar em seu quarto e anunciá-lo!” É claro que não iria entregar nada pessoalmente.

A resposta seca era convidativa: “Posso te esperar para irmos juntos a palestra de hoje? Às 19h30 no hall?” Solicitou que a recepcionista ligasse em seu quarto dizendo que aceitaria o convite. “Deseja falar com ele?” Certamente não.

O jornal da cidade estava de pé, e uma folha se passava quando colocou os pés no hall. Os olhos de Heart não se voltaram para ele, “comentários sobre sua palestra de ontem estão em todos os jornais”. Pela primeira vez demonstrou seu desprezo por toda a publicidade que rondava sua vida pública e Heart sorriu, concluiu que ele era exatamente quem ele gostaria que estivesse ali. No caminho, nenhuma palavra sobre a resposta à primeira tentativa de aproximação de Juliano e também nenhuma palavra sobre o evento que organizara. Os dois falavam sobre os livros que ambos haviam publicado. Cada um em sua área, Juliano nas artes plásticas e ele na literatura. Eram críticos de arte e só tinham palavras de críticas cada um para com seu próprio livro. Dos seus livros para outros livros, críticas e mais críticas. Dos outros livros para a palestra. Um escritor contemporâneo qualquer iria falar sobre qualquer brevidade que sua obra buscava em vão representar. Sim, críticas. Juliano havia se recusado a compor a mesa redonda que este escritor estaria presente, apesar da insistência dos outros organizadores... entretanto, era ele que estava pagando pela aquela orgia cultural, portanto...

Da palestra para o bar, o papo de bar era um tanto ameno: viagens. Das viagens para o hotel, no hotel no quarto de Juliano, uma bela vista para um mar um tanto não saudável. Riram... falaram do romantismo daquela vista. Olharam-se e riram novamente. Nenhum dos dois havia falado em romance, mas haviam pensando e pensado a noite toda. As palavras não representavam vontades, mas os gestos representavam o desejo, acima de qualquer circunstância. O desejo toma o lugar das palavras e a vontade dos pensamentos: a perfeita ordem das coisas.

Juliano deveria permanecer na cidade por mais uma semana para cuidar da pós-produção do evento, porém ele ia naquela mesma noite. Deixou seu endereço sobre o criado-mudo. As cartas vieram e também foram. Várias delas, durante meses e meses.

São Paulo era terreno inóspito, por isso decidiu voltar para sua cidade natal depois de tantos anos. Estar em São Paulo era anunciar a morte de sua própria escrita. O ritmo desenfreado que enfrentava fazia com que se ocupasse mais com outras obrigações do que com escrever. Pisar naquela cidade era lembrar exatamente tudo o que viveu e o que deixou de viver: os desgastes, as desventuras, e a solidão. Recluso em si mesmo, viveu tal qual misantropo numa multidão que passa rapidamente pelas vitrines. Um prédio, um escritório, um advogado como tantos outros que ali existiam lhe deu o endereço da casa de Heart. “Já estava o esperando!” foram as primeiras palavras que escutou da mãe de Juliano. Sentiu-se desconfortável. Um chá no jardim. Não entendia qual espólio seu amigo poderia ter deixado para ele. “Reconciliaste com sua mãe?” Como aquela mulher que nunca havia visto poderia estar perguntando da única mulher que o poderia tirar do sério? “Li as cartas que mandaste para Juliano”, Então, sabe todos os meus segredos!”, “Não, os seus segredos estão estampados em sua face! Não é preciso saber ler, ou perder horas no quarto de um filho assassinado, em busca de um conforto, para poder entender sua razões e motivações de existir.” Disfarçando, sentia-se nu perante aquela potência, Juliano era um intérprete pálido perante sua mãe. Ela imóvel continuou: “Juliano não lhe deixa dinheiro, livros ou quadros... Juliano lhe deixou exatamente o que já era seu: suas cartas. Acredito que ele queria que eu não soubesse de seus segredos, dos segredos de ambos, mas se os teus segredos estão estampados em sua face, os de Juliano estavam espalhados pela casa, nos quadros e nos seus livros”. O silêncio era certamente de vergonha, e por mais que ela tentasse tornar a situação menos embaraçosa para ele, ela jamais conseguiria vesti-lo. “O que vai fazer das cartas?” No quarto de Juliano tudo estava já encaixotado, apontada a caixa de cartas, ambos se ajoelharam e se perderam nas pequenas narrativas que cada uma possuía, e nas narrativas respostas que somente ele conhecia e que a mãe poderia desconfiar. “Vou queimar as cartas!” Ela não se assustou, levantou-se e trouxe os aparatos para queimá-las. Na lógica das cinzas, o excesso são o fogo e a fumaça, sobra de energia, e o essencial é o que resta, as cinzas.

Estava coberto de cinzas. Cada centímetro de seu corpo estava coberto pelo resto do resto de suas cartas queimadas. Uma pira enorme com mais de duzentas cartas incendiadas. Os sentidos se desfizeram em desfervor. Todas as cartas que enviou eram sobriamente incendiárias, achava que estava conquistando o outro pela conversa, a flama amorosa, mas não. Suas cartas incendiadas eram somente uma pequena centelha que morreu logo. A amizade que os ligou era o essencial, o resto era fogo e fumaça. Não eram dois amantes, eram dois amados.

Recolhida as cinzas na caixa, somente o essencial restou. Nada de palavras, folhas ou tinta, somente cinzas. Quando chegou em sua casa, olhou para o telefone, muitas chamadas não atendidas. Haveria recados na secretária eletrônica? Que importa. Pegou todas as cartas de Heart e juntou-as com as cinzas. Mais uma vez tudo deveria ser queimado, até restar cinzas. O fogo no início foi tímido... mas quando entendeu que somente assim se poderia cumprir sua tarefa, destroçou tudo o que viu pela frente... não lhe importava se eram folhas ou sua carne fresca. No final, só restou cinzas, o essencial de cada um.

O gosto do segredo

a Paulo

Ele sempre teve um sonho: ser cego. Incomum, mas viável. Enxergar o mundo, ver a (des)vida era surpreendente, mas e o oposto, num maniqueísmo eficaz? Acreditava que seus sentidos, os outros, se aguçariam a tal maneira que poderia perceber um outro gosto da existência. O sonho se tornou realidade, por um acaso, como tudo é acidental, operava os olhos para poder ver melhor, uma operação simples e segura e nunca mais percebeu a luz. Os médicos lastimaram, ele se felicitou. Seu sorriso radiante ao sair do hospital era de um homem realizado.

Acostumar-se com o outro mundo, um pouco mais escuro, tenebroso e cheio de cheiros, sons e gostos não foi tão difícil, afinal, estava feliz, tinha o único sonho de sua existência realizado. No começo seus parentes e poucos amigos os acompanhavam a todo o momento, julgando-o dependente, mas não, não poder enxergar era a melhor liberdade que poderia viver. Dispensou todos, um por um. Sua rotina se alterou, as novas percepções faziam de tudo um gesto único, especial, inacreditável. A miríade de sensações o deixava extasiado, havia ali sempre um sorriso inviável em seu rosto. Ninguém o vira sorrir tanto, calado sorria, os amigos que o olhavam faziam caras e bocas de desaprovação. Não era assim que a felicidade deveria ser, ele deveria enxergar, conhecer alguém especial, subir em sua carreira profissional, finalmente quitar sua casa, trocar de carro, viajar, conhecer o Oriente e experimentar o cosmopolitismo de algumas cidades distantes. Mas não, ele sorria a mesa de um bar, ao tocar o copo gelado de cerveja, ao passar de um homem perfumado, ao esbarrar em alguém fedendo à cachaça.

Sua felicidade era perturbadora, seus amigos queriam ajustar isso. Celina ficou responsável por arranjar alguém para conhecê-lo, um advogado, um fisioterapeuta ou um médico. Pessoas que não tinham nomes, mas tinham profissões, altura, cor de pele, olhos e cabelos. Classificadas em dois gêneros: bonitos e pegáveis. Celina conhecia o gosto de seu amigo para homens... por isso mesmo ficou responsável por essa questão. Alcides o ajudava no trabalho, três vezes por semana ia a sua casa e lia os livros em voz alta, fazia anotações a seu pedido e o ajudava a digitar os textos para os alunos. Nos saraus Alcides havia sido elogiado por sua dicção, e deveria ajudar o amigo a passar no concurso para professor titular. Samanta levou-o a Paris no ano passado e já planejava uma visitinha rápida a Nova York, os sorrisos dele nas praças parisienses a desassossegavam, porque ele não poderia ver aquelas cidades envelhecidas, cheias de mistérios e histórias? E ele contava que neste ou naquele local um ou outro personagem de tal ou qual livro poderia ter pisado, sofrido sua própria narrativa, da mesma maneira que eles também sofriam com suas histórias e personagens de suas histórias.

“Alcides está bom por hoje, amanhã terminamos este capítulo... Pegue um vinho para nós, está na segunda prateleira da esquerda para a direita no armário sobre a pia.” Alcides estava com a voz cansada e bebeu um copo com água gelada. Ele se ajeitou no sofá, passava sua mão lentamente sobre o forro felpudo do assento. Levantou-se e tateou o outro sofá em busca do livro, quando Alcides chegou com as duas taças de vinho ele estava suavemente sentindo com a palma da mão a aspereza da folha do livro velho de capa dura vermelha. Os olhos de Alcides se encheram d’água. “Não entendo porquê choram, não deveriam ter pena de mim... A pena que sentem não é nada além do quanto cada um de vocês são infelizes. Videntes, mas cegos...” O telefone interrompera o solilóquio. Alcides pegou o gancho e a voz suave de Celina anunciava que iria jantar com eles, estava saindo do escritório e passaria no supermercado para comprar tudo o que fosse necessário e que ia levar um amigo, Marcelo, que tinha acabado de ser promovido e que queria celebrar.

Ele nunca se recusava a nenhum convite surpreendente, ria, abria um sorriso insustentável. Alcides e eles brindaram a maravilha de ser cego vidente e vidente cego. Sua gargalhada foi interrompida pelo despejar do vinho seco em sua garganta, enquanto seu amigo bebia amargamente de olhos bem abertos, mas caídos. “Ligue para Samanta, ela deve estar na cidade.”

Em menos de uma hora os amigos estavam reunidos. Samanta cozinhava inacreditavelmente, preparou tudo com a dedicação de sempre. Celina sentada ao lado dele elogiava Marcelo, descrevia sua beleza física, sua sagacidade e sua determinação em crescer na vida. Logo seria o presidente da empresa. O canapé de aspargo desmanchava em sua boca, o gruyére era o charme da receita. Sorria. “Presidente! Não dou dois anos...” Marcelo perguntava e perguntava sobre seus os gostos e suas predileções, e ele respondia carinhosamente, sem enfado. Celina estava radiante, será que havia conseguido cumprir com sua missão? Ele levantou-se rapidamente, roçando a ponta de seus dedos no guardanapo e ergueu sua mão: “Posso tocar no seu rosto?” Todos surpresos se entreolharam, era mais uma feliz esquisitice. Marcelo corou, mas declinou ao pedido. Samanta encaminhou-o para o sofá em que o futuro presidente da empresa estava sentado e os dois ficaram frente a frente.

Os seus dedos corriam suavemente pelo rosto de Marcelo, a pele era macia, o cheiro de um suave perfume amadeirado suplementava o toque, o nariz pontudo compunha harmonicamente com os olhos grandes, a delicadeza dos traços agora envolvidos pelas palmas das mãos trocavam calor. Os cabelos foram levemente desarrumados com o entrelaçar dos dedos por cada mecha levemente encaracolada. Todos se retiravam, um a um. Restando somente os dois. Marcelo falava ao seu ouvido, suavemente, a voz da conquista, dizia meias-verdades, sorria muito. As mãos continuavam o passeio, agora pelo corpo, cada pelo, cada curva, explorada e inexplorada pelas mãos inábeis dos videntes cegos. Marcelo o elogiava demasiadamente, fazia juras de amor, o conquistava com sua lábia. O gosto da pele o inebriava, era sentir o outro de uma outra maneira não pensada. Marcelo sorria porque via o sorriso estampado em seus lábios.

O tempo era diferente em sua percepção. O dia e a noite não bailavam pelo céu. Era dia noite o tempo todo. Quem o prendia ao espaço eram seus convivas, a amargurarem sua irrisória felicidade. “Você falou com Marcelo hoje?”, “Sim, ele disse que iria ficar em casa, estava cansado do trabalho”. Celina celebrou com um gritinho estridente. Foram para uma casa noturna. Gostava de sentir a música tamborilando em seu corpo e tamborilava com muita força, movendo cada sensibilidade possível.

Alcides já o esperavam quando chegaram. Guiado por Celina entraram e dançaram, celebraram o corpo com movimentos informes. Cada som entravava por sua pele e se distribuía desigualmente... “Não acredito!” Os olhos arregalados de Celina poderiam ser visto até por um cego. “O Marcelo está ali e está beijando outro cara!” E ele não demoveu um músculo, continuou dançando. Celina chocou-se com sua frieza, não se importou com o fato. Continuou a dançar. A música tinha gosto de alegria inebriada pela bebida, os corpos cheiravam a cigarros mentolados. Celina continuou dançando, mas cuidava cada passo de Marcelo, ele ainda não a vira. E o pseudo-namorado do amigo beijava não somente aquele primeiro, mas outros num bailar de não-afinidades, de (des)gostos. Sentiu a mão do amigo passar em seu rosto, era o pedido para que dançassem juntos e ela assentiu. Celebrou e ela meio-celebrou. “Ele não te fez juras de amor?”, é claro que tinha feito, mas a sentença dele quietou Celina: “Todos falam, mas não têm certeza das palavras... É muito difícil alguém manejar os significados com sinceridade, nem eu mesmo manejo muitas vezes com eficácia, apesar de trabalhar com elas”. Celina insistia ao perguntar se eles haviam brigado, não brigaram e não tinham motivo para, no interpretar do amigo.

Ao fim da noite, os amigos, cansados realizados, toparam com Marcelo na saída, os olhos arregalados podem ser visto por cegos, já o disse. Gaguejando Marcelo se aproximou dele, que imediatamente tocou o seu rosto suado e grudento. As faces se encontraram, e ele cheirou profundamente seu pescoço, o perfume já havia esvaído. Beijou timidamente as mãos e abriu um sorriso. Um sorriso amargo do gosto da pele. Continuava gaguejando, entretanto, ele colocou seu dedo indicador nos lábios finos de Marcelo, e fez um “chiu” levemente chiado. “Mas... mas...”, “Não há mas, só silêncio!”, “Estou te decepcionando...”, “Nenhum ser humano me decepciona, não se preocupe!” e sorria um sorriso amarelo no ver de Marcelo. O olhar de Celina fuzilava-o enquanto pegava seu amigo pela mão e o encaminhava para o carro. Sentados no carro, Celina insistia em dizer que não acreditava, enquanto as mãos de seu amigo sentiam o aveludado do tecido de seu vestido. Entretanto, ele sorriu mais uma vez e perguntou: “Sabe qual é o gosto do segredo?”

Celebração

Campo Grande, 25 de julho de 2010

Antigamente ao guardar somente a metade das pessoas acreditava estar me protegendo de uma desilusão. Não as suportava por completo, me irritavam de tal maneira que ou eu as divida pela metade, desterritorializava sua parte desinteressante ou eu me tornaria um certo exilado. Arrancava a parte desgostosa da pessoa à bala de canhão ao fechar meus olhos para o que eu não queria entender/ver/sentir. Mas essa parte sempre retornava, e abriam os meus olhos com uma monstruosidade brutal, mostrava-se mais altiva que a outra, por sua bondade? Não, por sua persistência. As pessoas não podem ser simplesmente humanizadas a minha maneira. Hoje, ao resgatar esse passado cindido percebo que nem suporto mais as metades que escolhi realçar. Se as metades não me serviam, outra coisa deveria servir, uma persistência em viver: surgiu a fragmentação.

Portanto, de todas as pessoas eu somente guardava os fragmentos. Resolvi fragmentar a pessoa em tantas partes quanto fossem necessárias, mesmo assim não adiantou, era óbvio se metades não me serviam, imagine um fragmento. Mas pensei que o fragmento fosse melhor que a metade, guardaria somente uma ínfima parte do que gostaria de ter. Me iludi ao supor ser o fragmento estelar de algo maior, mas era o mesmo de antes, os fragmentos tem a terrível tendência de se reunir inteiro. Um fragmento demanda o outro, que demanda outro, ad nauseam, até a completude do humano. Me iludi, mas com um objetivo: perceber algo que eu achava impossível...

O passado urgente dos meus verbos simplesmente revelam uma única coisa: minha análise final. Não, não escrevo essa carta por desgosto ao seu humano, escrevo por desgosto a mim mesmo. Meu libelo não é contra a humanidade, é contra o humano que há em mim. Achava-me desnaturalizado, mas sou mais humano que poderia perceber. Quando repartia a pessoa pela metade, descobri que havia uma metade de mim não revelada. E quando resolvi fragmentar, percebi me fragmentos inúteis Não suporto o ser humano. Nem no outro muito menos em mim. O que me leva, portanto, a essa celebração final, esse rito de passagem do nada para o vazio, é o homem inteiro que há em mim e meu desgosto em percebê-lo, em ter me iludo mais do que pude ao negá-lo e não enfrentá-lo, não quero dizer entendê-lo, visto que nem entendia as metades, muito menos os fragmentos, só me resta o enfrentamento.

Não quero que essa carta se torne um ensaio, mas não consigo me desvencilhar dos meus afazeres. Mas reflito agora o porquê todo suicida precisa deixar uma carta para os seus. O suicida tem um motivo e todos precisam se culpar desse motivo. Se culpem por serem humanos, e me culpem por descobrir o humano que há em mim. O suicida precisa deixar uma herança para o outro, para que o outro cometa o ato com mais avidez, repita com mais consciência. O fato é que deixo essa carta para delimitar culpas. Na próxima vida, serei um suicida diferente, que cortará os pulsos, que se enforcará, que pulará de um prédio, sem deixar qualquer escrito, somente a indiferença e a dúvida da culpa.

Hoje tomo o pharmakon, que me mata e que me cura ao mesmo tempo num único lance macabro. Deixo de ser humano para me tornar um único, viverei morto da minha inteireza, meus significados passarão a ser somente um: o do corpo morto.


M.V.

O bocejo

Há alguns anos não pronunciava o verbo viver, preferindo existir, e como consequência também trocou o substantivo vida, por existência. Entendia que assim expressaria melhor o estado em que se encontrava. Sua mulher nem havia percebido a falta da palavra vida ou do verbo no seu vocabulário, na verdade ela não havia percebido muitas coisas.

Tudo começou em uma das numerosas discussões que o casal sempre tinha em torno dos gastos familiares. Ele comprava livros demais, edições caras de livros velhos, "que facilmente podem ser encontrados em sebos". Faltavam ainda alguns móveis em casa, outros precisavam ser trocados, e eles ainda não conheciam o sul do país. A discussão terminou com o seguinte édito: não se compraria mais livros, já havia mais de quatrocentos exemplares nas estantes, se ele quisesse, poderia baixá-los na internet. Sem argumentar, ele assentiu e ela extasiada escolheu os novos móveis, enquanto ele escolhia a inexistência. O acordo estava silenciosamente selado: ela viveria e ele simplesmente desexistia.

Desexistir era a sua única maneira de caminhar pelo mundo. No trabalho aceitava tudo o que vinha de cima, inclusive uma arbitrária baixa no salário que o fez trabalhar dobrado e diminuir o tempo em que passava com os livros. Infelizmente, ele tinha que manter o nível da família, que logo aumentaria. Em casa teve que assumir mais algumas tarefas, visto que sua esposa finalmente alcançava seu maior sonho: gerenciar a maior Agência da cidade, agora sim, ela teria tempo suficiente para ter seus filhos, já determinando um novo sonho. Desexistir era a felicidade conjugal, ela nunca esteve tão feliz com o marido que lhe proporcionava tudo o que queria e tão prontamente. Bastava uma palavra, e tudo estava feito.

Mas esta felicidade não fez com que as discussões cessassem, ela só poderia pensar com o embate das palavras, no começo, no embate divergente com o marido que nunca assentia com suas extravagâncias, depois no embate convergente consigo mesmo, visto que as observações dele se limitaram as palavras “perfeito” e “certamente”.

Ela viajou sozinha para o sul, uma oportunidade única adiantou a viagem a ponto de ele não poder ir, visto que não conseguira adiantar suas férias. Além de conhecer falsas pequenas cidades europeias dentro do Brasil, ela fecharia excelentes negócios em nome da Agência. No momento em que ela trancou a porta, foi a primeira vez que ele bocejou, ao ouvir a mala com rodinhas atravessar o largo jardim da casa em que viviam. O bocejo é uma graça que a divindade nos deu. Certamente, antes de assinar a obra humana, ela de gracejo bocejou, e inaugurou a era do tédio. Ele aproveitou a pequena liberdade e bocejou diversas vezes, muitas vezes na cara dos amigos da esposa que o visitavam com frequência, eles estranhamente gostavam de conversar com ele. Eles não poderiam se furtar da sua presença, era casado com a melhor amiga deles. Então, era uma das poucas oportunidades que poderia se expressar com autonomia e gosto perante a ignorância dos outros. Diante dos intermináveis bocejos, todos perguntavam se ele não estava dormindo bem e acabavam concluindo por ele que não dormia por falta da esposa. E ele, ironicamente, dizia um sim em meio a um longo e aberto bocejo.

Cansado de desconversar, resolveu passar o resto de suas noites livres no shopping mais próximo, a livraria se tornou biblioteca. Empreendera a leitura das novas traduções dos escritores alemães. Edições luxuosas, capas duras, tipografia impecável. Lia com cuidado extremo para não deixar as marcas de seus dedos nos livros e torcia levemente para que não fossem vendidos. Os vendedores não entendiam sua presença, um homem que usava roupas caras, que balançava a chave de um carro, não poderia comprar livros? As noites corriam lentamente perante a poesia. Uma noite, porém ficou intrigado ao ver o mais novo best-seller que ocupava quase que inteiramente a entrada da livraria. Abriu o livro, leu as primeiras páginas e bocejou... deveria ser saudades da esposa...

Como esperado, a pequena liberdade acabou. Depois de um mês, ela voltara mais impetuosa, mais exagerada, mais... Era dona do mundo, um pequeno e isolado mundo, mas era senhora de tudo. As discussões recomeçaram e ele um tanto cansado da perfeição do certamente, começou a respondê-la poeticamente, um pequeno luxo que permitiu a si mesmo por inspiração alemã. Como era de se esperar suas respostas não foram entendidas, eram superinterpretadas ao bel prazer, oras, ela era dona do mundo, por que não dos seus signficados? Pelo menos as discussões sobre os novos móveis foram desviadas para os possíveis significados de suas expressões. “Parecer não é ser”, era a frase que mais a irritava. E ele gargalhava internamente ao repeti-la incansavelmente.

O bocejo, entretanto não o abandonara. Bocejava no trabalho, nas conversas amenas com os amigos da esposa, bocejava sozinho. Bocejava da mesma maneira que a divindade. Ela ainda não havia percebidos os bocejos, ainda não os interpretara. Até o dia em que a mais importante discussão foi travada: o primeiro filho. Certamente ele não queria um filho, e isso era exatamente o que faltava para sua nova realização máxima. Nesta discussão ele preferiu começar com os certamentes perfeitos, mas quando ela anunciou a data para parar de tomar seus anticoncepcionais, ele sem perceber, de gracejo, bocejou imaginando seu futuro. Os olhos dela se arregalaram, enquanto sua mão ferozmente voou-lhe no rosto. Não ouve tempo para discutir os sentidos. Ele não reagira pela surpresa do novo nível do relacionamento deles. Era tédio ou sono? Jamais saberemos, o estalido do tapa nos deixa sem sentido.

A literatura, uma ciência francesa

Ele finalmente terminara de organizar e limpar todos os livros de sua biblioteca. Estava tomado de um êxtase fatal: o tédio. Andava de um lado para o outro. Pensava em fazer duas listas de todos os seus livros: uma com livros que ali estavam e outra com todos os que lembrava que estavam emprestados. Não havia nenhuma novidade na sua biblioteca, esperava por quinze volumes que encomendou, seria sua salvação para o próximo período de tédio que se seguiria: trinta dias em casa, dois deles passaria na casa dos pais no interior, os quais leria pelo menos quatro dos grossos volumes com muito sossego, encostado em alguma árvore do quintal onde crescera, deveria ser uma árvore frutífera com uma copa que lhe fornecesse sombra o suficiente para a tarde toda. Exatamente como fazia com os livros que seu pai possuía na biblioteca imunda e desorganizada, que com certeza ainda estava lá do mesmo modo que na sua infância, só que mais inchada de muitos volumes desnecessários. Leu tantas bobeiras paternas na sua infância e adolescência que nem sequer se lembrava dos seus conteúdos, lembrava somente dos títulos e das capas que era exatamente o que mais o agradava, pomposos e bem editados. Ele não lia os livros de seu pai, mas a promessa que eles eram. Foi realmente entender o que era ler quando os títulos se uniram com os textos ali contidos, deixaram de ser pomposos para realmente o atingir direto na consciência. A biblioteca de seu pai fazia menos sentido à medida que lia mais e mais livros da grande literatura. Os livros da casa do interior mataram seu pai. Perseguiu tanto uma ideia única que o levou para um país esfomeado que quando voltou morreu de uma doença qualquer que contraiu na África, a qual os seus livros não o haviam imunizado contra. Sua mãe queria esquecer-se da biblioteca, porém passava o tempo todo na cozinha criticando os livros por acumularem poeira, mas não conseguia se desfazer da única lembrança do marido ausente. Estavam lá pelo que representavam, não pelo que continham, pensava ele.

Só organizara sua própria biblioteca porque terminou de escrever mais um livro: A literatura, uma ciência francesa. Em sua última palestra havia dito que a literatura era uma ciência que só poderia ter sido produzida na França, não o país, mas o valor. Achara a frase tão pitoresca que resolveu elaborar a hipótese como se defendesse seu último suspiro. Não poderia morrer sem deixar aquela frase, que agora intitulava o escrito que acabara de revisar, explicada. Entretanto, revisar era um gesto de sofreguidão. Sabia que depois de terminado, entraria no mais profundo tédio que poderia sentir. Não havia mais nada a ser feito. Demoraria meses para ver o título nas prateleiras, os quais eram seguidos pelas críticas, elogios e teses. Gostava do efeito de suas obras? Nem um pouco... gostava de estar ocupado com suas consequências. Seus amigos, seus inimigos, seus admiradores e seus alunos o ocupavam seriamente com cada parágrafo como se desvendassem mais uma pedra de Roseta. Ele se divertia. Mas o hiato que havia entre o fim de um livro e a diversão era mortal. Não sabia esperar, ansioso por ver o efeito de suas reflexões, sofria por antecipação. Esse hiato era impregnado pelo que tinha acabado de fazer e pelas possibilidades do que iria fazer. Um não momento. Sentia que seria consumido pela sua própria angústia. Por isso se amontoava com tarefas desnecessárias.

Havia três dias que trabalhava em sua biblioteca, começara a organizá-la no exato momento em que mandou seu livro para o editor. Seu livro tinha sido aprovado pelo Conselho Editorial antes mesmo de sua finalização. A capa já estava pronta, era uma fusão do rosto de Flaubert com o de Baudelaire, ao fundo reinava Rimbaud. Ele não gostara da capa, mas estava ocupado demais tentando comprovar sua hipótese. Sabia que seus críticos, seus colegas e seus amigos jamais o entenderiam, era sua preocupação maior.

A literatura é patrimônio cultural humano, não há dúvida. E ao propor a desterritorialização da França, não quero acabar com uma nacionalidade ou mesmo elevar uma nacionalidade como exemplar para a criação literária, quero analisar um valor. O francês é um significado que sustentaria todo o fazer literário, toda a escrita, toda a leitura. O gesto político que proponho não diminui a literatura não francesa, recria todos os valores, pois a nacionalidade não faria mais sentido, a não ser pela ideia que denominei francês, que (in)felizmente é homônimo ao adjetivo pátrio. A literatura não começa na frança, todavia somente tem sentido a partir dela. Minha argumentação começou com os próprios franceses defendendo o valor de sua língua, entretanto percebemos que não defendiam a língua, mas a instituição que o francês representa. Portanto, reformulo a frase que iniciou o parágrafo: a literatura é patrimônio cultural humano francês.
Queria esquecer que não seria entendido, por isso organizava os livros havia três dias. Paradoxalmente, resolveu separar os livros por assunto e os literários por nacionalidade. Colocou os franceses todos juntos. Ocupavam uma única estante. Eram pomposos, em edições bilíngues, ou mesmo em edições francesas da Galimard, comprados em tantas viagens pela França. Sabia que essa estante tinha os parafusos já falseando em seus buracos. Sabia que um movimento brusco poderia fazê-la ceder e que o barulho no apartamento de baixo poderia causar algumas dores de cabeça, visto que eles sempre reclamavam de sua inquietação diante da biblioteca. O interfone mesmo já havia tocado duas ou três vezes nesses três dias. Não atendeu, é claro, tinha uma tarefa a cumprir. Será que o peso daquela estante e todos os seus livros poderia matá-lo? Hesitou. Testou a estante e seu falseamento. Seu sorriso no canto da boca era irônico. Poderia realmente matá-lo ou o levaria para o hospital? A dúvida era perversa. Gargalhou. A estante poderia cair mesmo se não a puxasse. Poderia cair a qualquer momento. Poderia estar no meio de uma palestra sobre a frança, assim mesmo sem letra maiúscula, por não mais representar um país, e ouvir o estrondo, o eco de sua estante caindo e acordando os vizinhos, não só os do andar de baixo, mas toda a vizinhança, da frente, dos fundos, do outro lado do hemisfério. Sorriu mais uma vez. Prostrou-se exatamente no meio daquela estante cambaleante e puxou-a com uma leveza que a fez ceder lentamente por cima dele enquanto os livros se desarticulavam sob o peso desnecessário da gravidade.

O caminhante


O homem é composto de repressões e faltas. Somente. E a ele somente cabe um único e grande título, o caminhante. Ele abre os olhos e a presença se faz. Ele dá o primeiro passo, e o passado lhe sobrevêm, a lhe mostrar tudo o que não foi, tudo o que desejou, tudo o que sentiu e se envergonha, como a qualquer um. Ao primeiro passo, vê o futuro e chora, como todos os dias, numa repetição interminável de nadas.

Narrar um dia é narrar todos, posso contá-lo no tempo presente, no passado ou no futuro que não haveria diferença ou mesmo despropósito. Não haveria erro gramatical, muito menos falta de coerência. Seu trabalho recalcitrante, o mantinha em desvida. Fazê-lo era apagar-se, não fazê-lo era sobrevivê-lo. As poucas horas que passava por lá, corriam lentamente, cada minuto preenchido por um pequeno documento, uma repetida grampeação, um desvirtual clipamento. Chegar e sair, sem ser percebido, era só uma questão de realizá-lo de maneira usual, e era o que fazia, e o fazia muito bem. Todos os documentos em seu devido lugar, grampeados e nos clipes. Seu chefe só precisa assinar e devolver. A única coisa que o desassossegava era de(re)volução que o obrigava a sair de sua sala e passar pela secretária e pedir a chave do arquivo. Muito simpática, muito servil, muito interessada. Feliz, por assim dizer. Porém, sua felicidade não cabia no caminhar, seu bom dia irritante era decretar a morte da vida inteira, e mostrar tudo o que lhe falta. E essa falta é a ignorância para considerar que a felicidade possa existir e ser expressa num simples bom dia. A busca da felicidade era o que mantinham as pessoas vivas, e a existência da felicidade era que o mantinha amargo. Além disso, o arquivo era a lembrança desesperada de que existe um passado e que ele está ali todo documentado, encaixotado e finamente datado. Todos os seus doze anos quatro meses e 22 dias de serviço estavam ali bem exibidos e limpos, por um fantasma qualquer da limpeza. Ele se exigia para não exigirem dele.

Seu almoço solitário se restringia ao que lhe ordenavam comer, regrado pela nutricionista corada e de sorriso fácil, não precisa emagrecer... mas escolher o que comer não lhe tinha serventia, comia porque sabia que tinha que comer. A inanição não poderia lhe matar, outra morte lhe pertence, lhe merece. Com seus dedos ágeis cortava cada porção exata de tudo que lhe alimentava, mastigava carinhosamente cada uma das proteínas, dos carboidratos, sentia a leveza de cada vitamina... uma pequena sensação de preenchimento, que logo se esvazia pelo suco gástrico, pela absorção do organismo, para eliminar tudo aquilo que já não presta, mas que lhe dava uma única oportunidade, mesmo que metafórica, do prazer de expulsar o inválido. O dinheiro sempre estava minuciosamente contado na carteira, não que lhe faltasse, pelo contrário, lhe sobrava, não sabia ao certo quanto tinha em sua conta bancária, só sabia que recebia mais do que precisava, deveria já se amontoar aos milhares, o banco ligava todas as semanas propondo-lhe um investimento, uma conta exclusiva. Exclusividade que não lhe acariciava o ego, visto que ser importante para outrem, mesmo que bancariamente, era o vil e desnecessário modo de existir.

O mesmo ônibus, o mesmo horário, o gesto de puxar a cordinha, os mesmo olhares, os mesmos transeuntes, o mesmo sol, a mesma chuva, o mesmo porteiro, o mesmo bom dia, o mesmo olhar, o mesmo resmungo, o mesmo desprezar. Suas chaves já giravam sozinhas na porta, aprenderam por aprender e abriam-lhe a repressão. Uma, duas ou três correspondências por baixo da porta. Algumas vezes um bilhete, era a vizinha sempre a lhe convidar para algum jantar. Uma vez desculpou-se dizendo que não comia carboidratos depois das 18h. Comia outra coisa. Sua boca se enchia de outro sentido, um sentido advindo de um outro quarto que não era o de dormir. Dos cômodos de sua casa, o que mais lhe pré-ocupava, o que mais lhe oprimia era o outro quarto: estantes, poltrona, milhares de livros e uma luminária. Depois de seu lanche noturno, somente lhe cabia uma única tarefa: ler. Entrar em um mundo que só lhe pertencia quando um livro era aberto e que se desfazia a cada fechar. Do oriente, do ocidente, do meridiano ou do setentrional, em português, em inglês, em espanhol, em alemão, em italiano, não lhe importava, tudo era deglutido com o mesmo gesto, o passar das páginas e a sensualização dos olhos nas letras. Não eram somente mundos narrativos, mas também mundos filosóficos, sociológicos, tanatológicos, legais e medicinais. Não era engolir personagens, era tirar deles todo o proveito. Os únicos que poderiam ser felizes, pois tinham morte certa, era só fechar o livro. E só eram felizes porque inteiros, mesmo que pela metade, preenchiam a filosofia, a sociologia, a tanatologia, o direito e a medicina. Um era suplemento do outro, estavam todos ali ligados por uma tradição não divisível pela metade do globo.

Meia-noite. Respirava duas vezes, profundamente a sorver, provavelmente, seu último oxigênio, e dormia. No outro dia tinha que caminhar novamente. Ao menos, não precisaria ir ao arquivo.

Sonoramente inerte

De sonhos estranhos para a realidade brutal, fui arrancado dos braços da morte para minha cama, como se acordar fosse uma salvação. O relógio piscava três da manhã ao me dizer que de agora em diante não há mais sono. Descansa um, enquanto o outro perece. Levantei e peguei o cachecol. Chaves e um papel. Abri a porta cuidadosamente para não acordar demônios piores que geralmente encontro pelas ruas. O portão sempre rangia, e rangeu tão lenta e furiosamente naquele silêncio que dois olhos de gato se abriram na noite. Era meu acompanhante, não tinha outra opção. Ganhei a esquina de minha casa, não havia mais ninguém, somente os roncos, os gemidos e os poucos prazeres da noite. Desci a rua calmamente, era toda minha e das estrelas que de uma forma fantasmática davam vida as poucas nuvens que ousavam cruzar o céu tão vagarosamente que parecia que eu não estava a andar. Me acompanharam por quadras até a única luz acesa. Um velório pela madrugada, tão comum quanto a vida que só tem sentido pela morte. Passei pelo outro lado da rua, o caixão estava à vista... mas não havia ninguém a chorar pelo defunto. Olhei mais uma vez... nem mesmos os funcionários da funerária estavam lá. Os olhos brilharam. Eu entrei. Um caixão, nenhuma coroa de flores, um violino sobre o morto, ninguém. Era somente o morto, a morte e eu. Serenamente vidrado meus olhos se apossaram da inércia mortificada. Pele lisa, cabelos bem penteados, rosto quadrado, nariz perfeitamente pontudo, lábios finos. Tenho certeza que seus olhos eram profundamente verdes. Uma das mãos delicadas seguravam suavemente o violino e a outra debilmente o arco. Os dedos finos demonstravam habilidade, as unhas perfeitamente aparadas. Um corpo esguio, poderia vê-lo tocando, mas meu acompanhante via mais. Seus olhos, agora em fenda devido à luz, mesmo que fraca da funerária, incomodados, pois estão acostumados com a noite, me convidavam para um mundo passado. Acreditava-o músico de renome, mas não. Tocava violino em funerais como aquele que estava solitariamente presente. Engano meu. Tocava em funerais mortificantes, cheios de intenções e mofa. Todos de preto, muitos ternos, muitas joias, muito brilho fúnebre, muita gente mais interessada na vida que sobrou do que no morto. Heranças, lembranças, novos olhares, novos contatos. “Este é o pai do nosso querido amigo, dono das indústrias que lhe falei...”, “Minhas condolências, este é meu cartão!” Sua música jamais desafinou, nunca faltou ao emprego, viu todos os vereadores, grandes chefões do tráfico, atores globais, escritores de best-sellers serem enterrados ali sob suas notas mais tristes entre risos contidos pela forma aguda de suas cordas. Viu esposas chorarem enquanto procuravam os telefones dos advogados... mas também viu vexames, desconhecidos chorarem sinceramente pelo morto, viu coisas estranhas, viu até mesmo um enterro faraônico onde seu violino era mais um entre trinta. Os olhos fendados gargalharam, olhou ao redor e só viu a mim e não escutou nenhum violino, nem música triste ou acordes fúnebres. Só havia minha respiração oscilante e o chiado da lâmpada quase por se esgotar. Toquei sua mão, sua morte deve ter sido muito tranquila feita de nadas sobre o vazio, os olhos a me reprovar... Tocaria violino se eu soubesse, mas disse palavras desconexas rapidamente rabiscadas no papel, nem para me condoer pelo distante eu era capaz. Tudo era fingimento, falsidade. Morre-se todos os dias, todas as horas, todos os segundos, entrega-se a terra nada mais que o velho gasto corpo perecível para que seja reaproveitado para reanimar a grama que irá esverdear sua lápide. Os olhos se fecharam, eu subi a rua solitário, nem as estrelas a me acompanhar, já amanhecia e as primeiras lutas já se desdobravam, o carro da funerária subiu lentamente passando por mim. Seguia em direção ao cemitério municipal. Não era indigente, eu sabia seu nome, Frederico Andrade (1985-2010), enterrado em vida por animar a morte. Invisível como qualquer outro fantasma. Silencioso porque não tocou nenhum coração com suas vibrações musicais. Sonoramente inerte. Mais um belo instrumento musical desperdiçado.

Dos poetas natimortos

Mais uma incursão nos mundos dos mortos ao qual ainda estou me habituando. Uma pequena cosmologia do mundo dos espectros, um treinamento para algo maior que ainda deverá devir. Desta vez fui incumbido de cuidar de um muro que tem crescido vertiginosamente desde a minha última morte. Nele coloco um tipo muito específico de fantasma, que habilmente aprendi a identificar no mundo... Alguns poetas já nascem mortos. Natimortos antivivos, falo com segurança deles, pois do lado de cá da sensibilidade não há necessidade de sinceridade ou falsidade, tudo o é, simplesmente . Eles se empilham formando um muro, um muro inconsciente... E hoje, falo em nome deles, porque (in)felizmente, devo viver de seu fracasso, tudo é um grande mercado no mundo dos mortos, eu cuido deles e eles me oferecem o que eu mais preciso. Cuido de um muro de desalento desverdadeiro invisível para sobreviver. Lá, eles bradam más rimas... não é um muro muito silencioso, é feito de fala, e não de escrita. Cada um deles quer atingir violentamente os sentidos, mas, sem o perceber, só violentam a sua própria imagem, se esquecem que se escreve do mal para o choque da ansiedade e da desvirtude. Falam com ódio e esquecem que só se escreve com a performance do ódio, da ilusão de sentir... Toda literatura mente e eles só falam verdades. A literatura pulsa falsidade e somente desnecessidade. E ontem ao caminhar pela província dos vivos, recolhi um caso interessante, vou retirá-lo do muro e comprovar o que falo. Não posso citar o seu nome... não faria sentido algum,não é um nome próprio, é um despropósito. Aos 21 anos ousou dizer-se poeta sem mesmo publicar, olhei-o de soslaio, mesmo assim insistiu. Deixei-o seguir para ver onde pretendia chegar, seu destino era certo, um muro invisível e audível, mas felizmente ele não o sabia. Passou a insistentemente a falar de um livro, a bradar uma ideia aos quatros ventos. Porém os ventos não carregam verdades bradadas, não sem a minha autorização. Falou tanto desse livro que se esqueceu de sentar e escrevê-lo. Todos os adoravam pela sua magnífica ideia. Foi por vezes quase premiado, sentiu o gosto da vitória. Gargalhei ao recolhê-lo, nunca animei poeta que procurasse vitória. Errou no que lhe faria conjunto, errou no que eu o animaria. Sua ideia já foi esquecida, não se tornou mentira, tornou-se verdade, senso-comum. De palavras e não de ideias é feito o escrito, já dizia o poeta ao pintor. Porém ao olhar este moribundo gritador de verdades, percebo que hoje já não é assim, é-se poeta somente pelas ideias, um público assim o determina. Espero que tenham entendido porque não mais animo ninguém. Poderia tirar dezenas desses poetas do muro. Um igual ao outro, um inspirado no outro, sem nenhum trabalho, sem nenhuma palavra deitada sobre a folha virgem, sem nenhuma corrupção. O poeta está por nascer, e pacientemente o espero. Não há desejo nesta espera. Morto o desejo nasce o poeta. Assim o era, visto que fui Rimbaud, já fui tantos outros, mas não importa o escrito, suas consequências, ou mesmo os nomes. O que importa é que esses natimortos ainda se proliferem, hoje vivo de seu fracasso. E que fracassem mais e mais. O poeta que nasce do desejo morto, ele não tem nada que me alimente. Aqui, do lado de cá dos sentidos, eles não fazem sentido, já se fez e se autoconsumiu, tenho que animá-los antes de se acabarem. Sorte dos que ainda estão aí ao seu lado... Eles podem se alimentar do sentido inacabável. Da obra e da energia sem desejo do criador. Ao olhar mais uma vez para esse poeta que recoloco no muro me lembro de quando o recolhi... era tão fixado nessa única ideia que nem gosto tinha, estava autoconsumido sem glória. Deveria ter escolhido outro fracasso, pelo menos um mais apetitoso.

Uivo voraz

Doze uivos vorazes
Todos encantadoramente horrendos
Performam o medo nos indolentes
Farejam o mal dos tempos
Em campos ineficazes
Fadados a uma busca incessante
Desejam liberdade da demanda

Perderam o mais precioso
O mais belo
O mais incerto
Procuram por procurar

Onze uivos vorazes
Somente um pode terminar
O que mil começaram
Terminam por se destruírem
Ou destroem para terminar
Este um, tutano de mil
Saberá onde a demanda termina
Saberá onde cavar
Saberá onde meter o seu focinho
E encontrará
O que todos juntos não puderam achar

Não falo de lobos
Nem de homens animalizados
Falo do improvável
De indestrutível
Do escamoteado

Cinco uivos vorazes
Está perto do fim
Não há culpa
Nem prazer
Deglutir é necessário
Indivisível
Vasto

Não há filosofia
Nem criação artística
É ato de desespero total

Um uivo voraz
A demanda não terminou
Nem tudo tem começo, meio ou fim
Tudo tem caminho
E caminhar
Nada além de uivos demandados
Nada além de desejos (i)realizáveis
O último uivar é amedrontador
É faminto
A demanda o consumiu
Como se o consumir não fosse um fim

Só resta a origem
E o ato
Ou resto de atos originários
Purgaram a si mesmos
Da forma como se purga a fome
E a fome nos consome

Monstros noturnos

Acordo. É um péssimo começo. Coço os olhos, é um primeiro ato vazio. Viro-me, é o estar lá mesmo sem o querer. É como se eu pudesse ver o futuro sem o sabê-lo. Por enquanto, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Acordar todos os dias com um monstro diferente é algo inverossímil, mas necessário. Todos os dias durmo com uma dúvida, todos os dias durmo com a incerteza. Todas as noites me consomem como se fosse a última. Não tenho esperanças de voltar a viver no outro dia. Tenho certeza que morrerei dormindo. É um monstro noturno que vai me sufocar e vai me livrar de todos os outros monstros e vai me consumir até eu não ter mais força espectral para seguir em frente e simplesmente deixar de existir, como sempre desejei.

Um deles, me perturba em especial, digo o nome porque seu nome é que o fará com que eu seja mais forte para vencê-lo. Avah-má, ele sussurra seu nome ao soprar a fricativa no meu ouvido e por mais que meus olhos estivessem abertos, a noite é obscura, não havia conseguido ver sua face. Meu corpo estremecia, mas confesso, não era medo. Não tenho medo de monstros noturnos, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Sua voz rouca, sua textura sonsual me consome os sentidos, me arrepia os pelos do corpo, me fazem estremecer de um prazer monstruoso. Sua voz é a primeira coisa que sinto, seus dedos de unhas compridas a segunda, elas correm por minhas costas, seu corpo sonoro começa a se perfazer sobre o meu, o meu arrepio já não está mais lá. Há outra coisa, outro sentido.

Ontem resolvi enfrentá-lo. Não... não quero exorcizá-lo... não agora, por que não aproveitar esse monstro que me perturba de uma forma tão especial? Deixo existir, uma permissão permissiva. Senti o som de sua voz no meu ouvido. Sussurrou, tocou. Abri os olhos e me virei. Ele já estava sobre meu corpo arrepiado. Segurei-o pelo braço, e finalmente pude ver seu rosto, sentir as propriedades de sua pele, a sonoridade de seu coração pulsando sangue pelo corpo. Ele foi pego de surpresa, apesar de conhecer minha fama de exorcista noturno de incertezas relevantes. Arregalou seus olhos verdes, seus traços finos me assombraram. A pele não era pálida como dos outros espectros que tinham o costume de me visitar, era morena, de um teor, de um matiz, de uma sonoridade estridente.

Não tentou fugir, era audaz também, passado o primeiro susto, o primeiro arrepio, nos sentimos confortáveis a ponto de sorrirmos um para o outro e ver dentro dos olhos de cada um o desejo classificável, ele queria minhas forças, eu queria sua vontade. Pousando sobre mim, ele me permitiu sentir outras pulsações, outras texturas, outras virtudes. Sorri sem graça, há ainda alguns recalques sobre mim.

Ele me mostrou sua mão, colocou entre nossos rostos, girou-a no eixo como a me mostrar a palma e as costas do seu objetivo. Olhei sinceramente para seus dedos, suas articulações, sua maestria manual. Colocou a palma de sua mão sobre meu peito. Coloquei minha mão nas costas das suas. Palma e costas unidas. Avah-má era mais esperto que eu. Era o desejo por sua pessoa que o fazia especial, e ele sabia disso. Deslizou sua mão sobre meu peito, e no amontoado de pelos do lado esquerdo, cravou suas unhas grossas, metalizadas. Não senti dor, somente um prazer inenarrável, estava enredado em seu objetivo, e gostava disso. Quanto mais encrava suas garras em meu peito, mais eu sentia meu coração pulsar. O sangue quente escorria pelo meu peito, a me reconfortar, caia em meus lençóis, encharcando meu ninho. Não reagi, mas mesmo assim, entrelaçou minhas pernas com as suas, novas texturas, novas pulsações, velhas virtudes. Seu abraço violento, me tirou o ar do peito. O sorriso em sua face era de satisfação. No cume de sua aniquilação ele não pode perceber meus dedos permeando sua barriga, a procurar seu umbigo. Meu dedo ali penetrou, e ele não sentiu o meu domínio sobre seu prazer. Só percebeu que já não possuía vontade, quando sua mão não conseguiu se fechar sobre meu coração. Piscou duas vezes a se aperceber do ocorrido, seu sorriso malicioso se desfez em espanto. Não há mostro noturnos que eu não consiga exorcizar, por enquanto. Meu domínio é ser dominado, e ao ser dominado, dou a falsa impressão de domínio. Sua vontade escorria por entre meus dedos. Ele muito sério, tentou soltar meu coração, mas minha pulsividade segurava cada dedo, cada articulação, cada sentido. Sorri, não de prazer, mas de domínio dominado.

Avah-má merecia outra noite comigo, retirei meu dedo de seu umbigo, de seu centro, e cordis larguei sua mão. A expressão de alívio foi sonora ao falar meu nome de forma cansada. Marcus. (In)felizmente não se exorciza os vivos, e enquanto eu permanecer aqui, com o mínimo de sangue sendo bombeado por meu coração amassado, eu ouvirei meu nome sendo pronunciado de muitas formas, desejosas ou não. Joguei Avah-má da cama, caiu no chão e pronunciei o velho encantamento, ele correu de volta para as sombras de onde saiu. Monstros noturnos me servem de mote vital. Viral. Sempre durmo com uma incerteza, e acordo como um péssimo começo, porque só gosto da noite, só gozo no exorcismo total. Me espere.