Celebração

Campo Grande, 25 de julho de 2010

Antigamente ao guardar somente a metade das pessoas acreditava estar me protegendo de uma desilusão. Não as suportava por completo, me irritavam de tal maneira que ou eu as divida pela metade, desterritorializava sua parte desinteressante ou eu me tornaria um certo exilado. Arrancava a parte desgostosa da pessoa à bala de canhão ao fechar meus olhos para o que eu não queria entender/ver/sentir. Mas essa parte sempre retornava, e abriam os meus olhos com uma monstruosidade brutal, mostrava-se mais altiva que a outra, por sua bondade? Não, por sua persistência. As pessoas não podem ser simplesmente humanizadas a minha maneira. Hoje, ao resgatar esse passado cindido percebo que nem suporto mais as metades que escolhi realçar. Se as metades não me serviam, outra coisa deveria servir, uma persistência em viver: surgiu a fragmentação.

Portanto, de todas as pessoas eu somente guardava os fragmentos. Resolvi fragmentar a pessoa em tantas partes quanto fossem necessárias, mesmo assim não adiantou, era óbvio se metades não me serviam, imagine um fragmento. Mas pensei que o fragmento fosse melhor que a metade, guardaria somente uma ínfima parte do que gostaria de ter. Me iludi ao supor ser o fragmento estelar de algo maior, mas era o mesmo de antes, os fragmentos tem a terrível tendência de se reunir inteiro. Um fragmento demanda o outro, que demanda outro, ad nauseam, até a completude do humano. Me iludi, mas com um objetivo: perceber algo que eu achava impossível...

O passado urgente dos meus verbos simplesmente revelam uma única coisa: minha análise final. Não, não escrevo essa carta por desgosto ao seu humano, escrevo por desgosto a mim mesmo. Meu libelo não é contra a humanidade, é contra o humano que há em mim. Achava-me desnaturalizado, mas sou mais humano que poderia perceber. Quando repartia a pessoa pela metade, descobri que havia uma metade de mim não revelada. E quando resolvi fragmentar, percebi me fragmentos inúteis Não suporto o ser humano. Nem no outro muito menos em mim. O que me leva, portanto, a essa celebração final, esse rito de passagem do nada para o vazio, é o homem inteiro que há em mim e meu desgosto em percebê-lo, em ter me iludo mais do que pude ao negá-lo e não enfrentá-lo, não quero dizer entendê-lo, visto que nem entendia as metades, muito menos os fragmentos, só me resta o enfrentamento.

Não quero que essa carta se torne um ensaio, mas não consigo me desvencilhar dos meus afazeres. Mas reflito agora o porquê todo suicida precisa deixar uma carta para os seus. O suicida tem um motivo e todos precisam se culpar desse motivo. Se culpem por serem humanos, e me culpem por descobrir o humano que há em mim. O suicida precisa deixar uma herança para o outro, para que o outro cometa o ato com mais avidez, repita com mais consciência. O fato é que deixo essa carta para delimitar culpas. Na próxima vida, serei um suicida diferente, que cortará os pulsos, que se enforcará, que pulará de um prédio, sem deixar qualquer escrito, somente a indiferença e a dúvida da culpa.

Hoje tomo o pharmakon, que me mata e que me cura ao mesmo tempo num único lance macabro. Deixo de ser humano para me tornar um único, viverei morto da minha inteireza, meus significados passarão a ser somente um: o do corpo morto.


M.V.

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