Monstros noturnos

Acordo. É um péssimo começo. Coço os olhos, é um primeiro ato vazio. Viro-me, é o estar lá mesmo sem o querer. É como se eu pudesse ver o futuro sem o sabê-lo. Por enquanto, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Acordar todos os dias com um monstro diferente é algo inverossímil, mas necessário. Todos os dias durmo com uma dúvida, todos os dias durmo com a incerteza. Todas as noites me consomem como se fosse a última. Não tenho esperanças de voltar a viver no outro dia. Tenho certeza que morrerei dormindo. É um monstro noturno que vai me sufocar e vai me livrar de todos os outros monstros e vai me consumir até eu não ter mais força espectral para seguir em frente e simplesmente deixar de existir, como sempre desejei.

Um deles, me perturba em especial, digo o nome porque seu nome é que o fará com que eu seja mais forte para vencê-lo. Avah-má, ele sussurra seu nome ao soprar a fricativa no meu ouvido e por mais que meus olhos estivessem abertos, a noite é obscura, não havia conseguido ver sua face. Meu corpo estremecia, mas confesso, não era medo. Não tenho medo de monstros noturnos, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Sua voz rouca, sua textura sonsual me consome os sentidos, me arrepia os pelos do corpo, me fazem estremecer de um prazer monstruoso. Sua voz é a primeira coisa que sinto, seus dedos de unhas compridas a segunda, elas correm por minhas costas, seu corpo sonoro começa a se perfazer sobre o meu, o meu arrepio já não está mais lá. Há outra coisa, outro sentido.

Ontem resolvi enfrentá-lo. Não... não quero exorcizá-lo... não agora, por que não aproveitar esse monstro que me perturba de uma forma tão especial? Deixo existir, uma permissão permissiva. Senti o som de sua voz no meu ouvido. Sussurrou, tocou. Abri os olhos e me virei. Ele já estava sobre meu corpo arrepiado. Segurei-o pelo braço, e finalmente pude ver seu rosto, sentir as propriedades de sua pele, a sonoridade de seu coração pulsando sangue pelo corpo. Ele foi pego de surpresa, apesar de conhecer minha fama de exorcista noturno de incertezas relevantes. Arregalou seus olhos verdes, seus traços finos me assombraram. A pele não era pálida como dos outros espectros que tinham o costume de me visitar, era morena, de um teor, de um matiz, de uma sonoridade estridente.

Não tentou fugir, era audaz também, passado o primeiro susto, o primeiro arrepio, nos sentimos confortáveis a ponto de sorrirmos um para o outro e ver dentro dos olhos de cada um o desejo classificável, ele queria minhas forças, eu queria sua vontade. Pousando sobre mim, ele me permitiu sentir outras pulsações, outras texturas, outras virtudes. Sorri sem graça, há ainda alguns recalques sobre mim.

Ele me mostrou sua mão, colocou entre nossos rostos, girou-a no eixo como a me mostrar a palma e as costas do seu objetivo. Olhei sinceramente para seus dedos, suas articulações, sua maestria manual. Colocou a palma de sua mão sobre meu peito. Coloquei minha mão nas costas das suas. Palma e costas unidas. Avah-má era mais esperto que eu. Era o desejo por sua pessoa que o fazia especial, e ele sabia disso. Deslizou sua mão sobre meu peito, e no amontoado de pelos do lado esquerdo, cravou suas unhas grossas, metalizadas. Não senti dor, somente um prazer inenarrável, estava enredado em seu objetivo, e gostava disso. Quanto mais encrava suas garras em meu peito, mais eu sentia meu coração pulsar. O sangue quente escorria pelo meu peito, a me reconfortar, caia em meus lençóis, encharcando meu ninho. Não reagi, mas mesmo assim, entrelaçou minhas pernas com as suas, novas texturas, novas pulsações, velhas virtudes. Seu abraço violento, me tirou o ar do peito. O sorriso em sua face era de satisfação. No cume de sua aniquilação ele não pode perceber meus dedos permeando sua barriga, a procurar seu umbigo. Meu dedo ali penetrou, e ele não sentiu o meu domínio sobre seu prazer. Só percebeu que já não possuía vontade, quando sua mão não conseguiu se fechar sobre meu coração. Piscou duas vezes a se aperceber do ocorrido, seu sorriso malicioso se desfez em espanto. Não há mostro noturnos que eu não consiga exorcizar, por enquanto. Meu domínio é ser dominado, e ao ser dominado, dou a falsa impressão de domínio. Sua vontade escorria por entre meus dedos. Ele muito sério, tentou soltar meu coração, mas minha pulsividade segurava cada dedo, cada articulação, cada sentido. Sorri, não de prazer, mas de domínio dominado.

Avah-má merecia outra noite comigo, retirei meu dedo de seu umbigo, de seu centro, e cordis larguei sua mão. A expressão de alívio foi sonora ao falar meu nome de forma cansada. Marcus. (In)felizmente não se exorciza os vivos, e enquanto eu permanecer aqui, com o mínimo de sangue sendo bombeado por meu coração amassado, eu ouvirei meu nome sendo pronunciado de muitas formas, desejosas ou não. Joguei Avah-má da cama, caiu no chão e pronunciei o velho encantamento, ele correu de volta para as sombras de onde saiu. Monstros noturnos me servem de mote vital. Viral. Sempre durmo com uma incerteza, e acordo como um péssimo começo, porque só gosto da noite, só gozo no exorcismo total. Me espere.





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