n - iamamiwhoami (tradução)



Vista-se para a festa!
É o tempo das histórias.

Afiem suas facas
com a boca salivando.
Limpem os pratos para algo tão macio quanto a mim.

Diga-me: como esta história termina?

Venha para casa, venha ver o nosso abrigo,
esse labirinto que nos mantém escondidos.
Alargamos nossos limites.
As regras são mutáveis,
Ainda em tempo.

Venha chafurdar na minha solidão.
Expire seu ar dentro dos meus pulmões...
O que se esconde na minha sombra?
Meu pior medo é a vida real.

Diga-me agora: como esta história termina?

u-2 - iamamiwhoami (tradução)


E ele não pode negar!

u-1 - iamamiwhoami (tradução)



para quem se importar

Você me deu a vida!
E em retorno, eu somente fingirei.
Você vê a vida queimando
nas árvores de outono,
nos muros da velha vila.
Desejamos reconstruí-la, trazê-la de volta...

Você me deu a vida
e desejamos reconstruí-la, trazê-la de volta,
nas árvores de outono,
nos muros da velha vila.
Só desejamos reconstruí-la e trazê-la de volta.

o - iamamiwhoami (tradução)




Senti a centelha!
Vi a chama! E era tudo falso.
Quando foi que você mudou?
De quem é a culpa?

Contra todas as tolices eu estava preparado.
Assim me tornei uma fortaleza
em seu coração.

Mas é o amor!
O amor
que mata e deixa marcas,
que faz cair de joelhos e rastejar
ao inferno e de volta.

São as palavras que engasgam na garganta
e que te faz pensar no amor
como uma nova moda,
como o que falta.

Ao som da despedida...
Uma visão de si.
Que todos abandonamos
quando o mundo era novo.

A lua cheia me cobre
sob uma chuva interminável.
Algo não está mais no seu coração.

E é o amor!
O amor
que mata e deixa marcas,
que faz cair de joelhos e rastejar
ao inferno e de volta.

E são as palavras que engasgam na garganta
e que te faz pensar no amor
como uma nova moda,
como o que falta.

Paris está em chamas - St. Vicent (tradução)


Escrevo para dizer que a guerra acabou.
Envie minhas cinzas para mamãe.
Deram-me até uma medalha pelo meu valor.
Os trompetes cansados cospem os tiros do poder
enquanto dizem:
"Estou ao teu lado quando ninguém está, porque ninguém nunca está!
Sente-se aqui ao meu lado e durma enquanto eu pingo o veneno em sua orelha".

E esperamos um telegrama com as notícias da queda...
Desculpem-me, mas a querida Paris está em chamas.
Fomos levados às ruas:
Alegrem-se!
Revoltem-se!
Dançamos a valsa negra e justa, pois apesar de tudo, Paris ainda está em chamas.

Não!
Não.

Junto a esta carta há um retrato.
Preto e branco para a sua geladeira.
Paus e pedras me tornaram um tanto esperto
São as palavras, na verdade, que cortam sob a minha armadura.

E eles insistem:
"Estou ao teu lado quando ninguém está, porque ninguém nunca está...
Sente-se aqui ao meu lado e durma enquanto eu pingo o veneno em sua orelha".

E esperamos um telegrama com as notícias da queda...
Desculpem-me, mas a querida Paris está em chamas.
Fomos levados às ruas:
Alegrem-se!
Revoltem-se!
Dançamos a valsa negra e justa, pois apesar de tudo, Paris ainda está em chamas.

Não.
Não!

Dancem, meus pobres amigos, dancem e afundem.
Dance, minha justa Paris, desmoronando.
Dance, meu povo, dance e afunde.
Dance, querida Paris, até as cinzas.

A voz e o toque


O curta Eu não quero voltar sozinho (2010) (link) de Daniel Ribeiro é de uma delicadeza comparável a do livro póstumo de Edward Morgan Forster, Maurice (1971, mas escrito entre 1913-14) . A naturalidade com que um homem pode amar outro presente no livro é explorada delicada e diferentemente pelo curta-metragem de Ribeiro. Maurice apaixona-se naturalmente por Clive, apesar dele ter de assumir seus compromissos sociais como nobre, e depois este amor será finalmente vivido e explorado por Scudder com seus encontros e desencontros naturais a qualquer espécie de amor, e do amor de pessoas de diferentes classes sociais. Leonardo apaixona-se naturalmente por Gabriel da mesma maneira. Pórem, o curta não deve nada ao livro, visto que explora outras questões estéticas que envolvem a relação homoafetiva. Leonardo não pertence a uma classe social diferente de Gabriel, os jovens possuem um outro entrave: a deficiência visual de Leonardo. Por ser cego, sua percepção do mundo é diferenciada, baseada na voz e no toque. E é exatamente a voz de Gabriel que lhe desperta a atenção na sala de aula, onde ocorre grande parte das cenas, é o toque de Leonardo ao tentar ensinar o colega de classe a ler o braille em sua casa, o outro grande cenário do curta, que aproxima os dois olhares, as duas percepções diferentes do mundo.
Tanto o curta quanto o livro nos mostram uma única questão: a naturalidade com que os iguais em gênero podem se amar. A questão era tabu no início do século XX, Forster nunca publicou seu livro em vida, da mesma maneira que Andre Gidé vai demorar anos e procurar a aprovação dos amigos para publicar Córidon, inigualável defesa via um diálogo socrático da naturalidade do amor homoafetivo: 

[...] Compreenda-me: a homossexualidade, tanto como a heterossexualidade, comporta todos os graus, todos os matizes: do platonismo à salacidade, da abnegação ao sadismo, da saúde jovial à tristeza acabrunhada, da simples expansão a todos os refinamentos do vício. A inversão é apenas um anexo. Ademais, existem todos os estados intermediários entre a homossexualidade exclusiva e a heterossexualidade exclusiva. Mas, de ordinário, trata-se apenas de opor ao amor normal um amor reputado contra a natureza - e, para mais comodidade, coloca-se toda a alegria, toda a paixão nobre ou trágica, toda a beleza do gesto e do espírito de um lado; do outro, não sei que refúgio enlameado do amor... (GIDE, Andre. Córidon (trad. Hamilcar de Garcia). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 29)

Qual a diferença entre o início do século XX e o início do nosso século? O entendimento da diferença. Da diferença que existe entre gêneros, as raças, as condições sociais, intelectuais e religiosas. Entretanto, entendimento não significa aceitação. As minorias forçaram a sua voz durante todo o pós-guerra e o que foi silenciado agora é audível, novos e diferentes discursos constroem a história da humanidade. A presença da mulher, do negro, do homossexual, do migrante é entendida, mas o sexismo, o racismo, a homofobia e a xenofobia não acabaram. São entendidos, ouvidos, mas não são aceitos. A falta de entendimento não permitiu a publicação dos livros de Foster e Gidé, mas é o entendimento que permitiu a reprodução imediata do curta de Ribeiro. O diferente ganhou voz, mas ainda não é tocado. É a virtude de Leonardo, cego, somente percebe a voz e o toque, toque que realiza não somente em Gabriel, mas em todos os objetos que estão a sua volta, delicada e sensivelmente. Toque que deve-se aprender, deve-se aceitar.
O que não é natural é a maneira como os discursos das minorias foram inseridos nas discussões. Eles foram enfiados ouvido adentro naqueles que se queriam surdos para a diferença, sendo que a virtude é ser cego, sensível à voz e ao toque. Violentamente as mulheres ganharam seu espaço, mas não o respeito, a diferença entre homens e mulheres ainda existem; os negros entraram na discussão escolar e na história do Brasil, mas a dívida histórica continua; o homossexual ganhou um novo significado, por muitas vezes chistoso, veja-se as novelas televisivas brasieliras. Entretanto, depois de anos discursivos violentos temos em nossas mãos, disponível ao toque, este curta, onde a delicadeza e a leveza do tratamento do tema faz com que seja possível que se desmanche entre nossos dedos se não for apreciado com o cuidado que merece.
A naturalidade que estou defendendo não é a naturalização das relações das minorias. Pelo contrário, é na diferença, no embate da diferença que novos e produtivos significados surgem, a aceitação não é processo fácil, nem mesmo o entendimento ainda foi processado de maneira completa. Se um dia a minoria for naturalizada, teremos um novo problema: o fim da diferença. Sendo que o processo que se iniciou no pós-guerra (e anteriormente, é claro que esta discussão não aconteceu somente neste momento, mas se tornou algo relevante ali, pelo menos para esta elaboração) do embate das diferenças não tem por fim a naturalização dos significados, e sim que os significados permaneçam múltiplos. Uma sociedade que tende a simplificar os significados só fazem riscá-los dos dicionários, sendo que o necessário é suplementar mais e mais, que seja preciso uma página inteira para explicar uma única entrada de uma palavra no dicionário, mas que exista entendimento e aceitação da diferença.

As máquinas da felicidade

Ora a linguagem encrática (aquela que se produz e se difunde sob a proteção do poder) é por estatuto uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o desporto, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, muitas vezes a mesmas palavras - o estereótipo é um facto político, a figura maior da ideologia. (Roland Bartes em O prazer do texto)
A sociedade cria dentro de seu próprio corpo mecanismos geradores de bem estar, como forma de controle social, o qual quero chamar de máquinas da felicidade.A discussão do que vem a ser felicidade está em pauta em diversos países como bem mostra o Le monde diplomatique Brasil numa reportagem de Mariana Fonseca intitulada "Por um mundo mais feliz" na edição de janeiro de 2011. Segundo a repórter o Brasil está aprovando a inclusão de mais um direito à constituição brasileira: o da busca da felicidade. O Espírito Positivo que tanto influenciou as nascentes sociedades organizadas indo contra todo e qualquer racionalismo ou idealismo buscou nos dados concretos realizar uma certa felicidade calculada. Mas para além do conceito positivista, o qual não quero nem elogiar ou criticar, tem-se outros "positivismos" anteriores a própria noção de Comte, se ele buscava a ciência como modo de organização do pensamento, a religião buscou a divindade, a universidade a contenção e apropriação do conhecimento, não como um todo, mas com o academicismo petrificado, para ficar somente com estas três máquinas da felicidade. A ciência, a religião e a universidade são reguladores e controles sociais que geram dentro de si um ideal utópico de organização ao mesmo tempo que geram a sua própria autodestruição, é a tese que quero sustentar. A contenção da liberdade do discurso individual, seja pelo cálculo das probabilidades, dogmatismos ou organização severa do conhecimento, não gera felicidade somente um lento desgaste que aos poucos transforma-se em inconformismo com a própria organização.
O cinema e a literatura souberam criticar ironicamente essas máquinas geradoras de felicidade. Comentar ou analisar os filmes de Jean-Luc Godard é impróprio, para não dizer desnecessário, por sua alta carga significativa, que atingem não o intelecto mas diretamente o sensível, e uma única forma possivel de comentário para seus filmes é por meio de um recorte macabro que assassina a obra como um todo. Porém, permita-me o assassínio de Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution (1965).  Alpha 60, um personagem-voz, é a máquina geradora da felicidade que por meio de seus cálculos intermináveis consegue promover o bem estar social de todos os habitantes dentro de Alphaville e todos os estrangeiros, caso de Lemmy Caution, precisam passar pelo Controle de Habitantes para poder permanecer, é preciso saber se o visitante pode representar um perigo ao não à organização. O recorte macabro que quero realizar está na cena em que Caution é interrogado por Alpha 60 no Controle de Habitantes a qual demonstra claramente que os que possuem a liberdade do discurso representam um perigo para a sociedade que já é feliz por falta de opção, ou por falta de significados arrancados dos dicionários ou das Bíblias. Alpha 60, então, propõe questões testes por medida de segurança para Caution, e dentre as diversas questões propõe "Sabe o que transforma a noite em luz?", a resposta de Caution é certeira "A poesia." A poesia não colabora de forma alguma para os cálculos intermináveis de Alpha 60 para o Bem Final, ou para o que estou chamando de máquina de felicidade,  o que o faz concluir que Caution dissimula, o que o torna um perigo para Alphaville e faz com que personagem Von Braun permita-se sentir o amor, por exemplo. Da mesma forma a poesia, ou o livro em si, é uma ameaça em Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut onde os livros são queimados pelos bombeiros fazendo com que qualquer escrito seja impensável neste mundo ao ponto dos arquivos serem composto somente por números e fotografias. Ou, de uma forma menor, em Equilibrium (2002) de Kurt Wimmer, ao ter como controle social os Sacerdotes capazes de matar somente os alvos corretos em 360° a partir de cálculos com ângulos, também neste filme os livros, ou toda qualquer obra de arte, ou souvenir são proibidos.  Os Sacerdotes que acabam sendo encantados pela magia da poesia, ou por qualquer tipo de sensibilidade, são brutalmente assassinados por seus companheiros em cenas altamente violentas. De qualquer forma, as máquinas de organização social visam o bem estar do seu cidadão pelo controle do seu sensível. Sem o sensível, sem infelicidade. A literatura nos três exemplos são máquinas geradoras de insatisfação visto que ao tornarem o homem sensível faz com que ele deseje entender não somente a felicidade, mas o que faz o homem infeliz, quais são suas misérias, infortúnios ou ilusões. Exemplo disso está no conto de Eça de Queiroz, Civilização, onde Jacinto cercado de todos os aparatos tecnológicos disponíveis no fim do século XIX ainda assim: "três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína." Jacinto decide passar algumas semanas em um outra propriedade e para tanto envia todos os aparatos tecnológicos mínimos para uma estadia confortável. Jacinto e o narrador chegam ao local aprazado, mas não os aparatos. E cear a comida dos caseiros, dormir em colchões desconfortáveis e apreciar as estrelas que as luzes da cidade impediam de ver faz de Jacinto um homem feliz com poucos livros: "daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o Dom Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!". Jacinto não deixou de ser o homem civilizado que era, mas compreendeu o poder que a máquina da felicidade tecnológica estava fazendo consigo mesmo. 
A eliminação da sensibilidade em troca de bem estar não é um efeito da ficção científica desses filmes ou do conto de Eça de Queiroz, ele está debaixo dos nossos narizes, seja na forma de aculturação mundial do gosto ou mesmo nas pílulas antidepressivas tão recomendadas. Compra-se esta certa felicidade pela perda dos significados mais profundos e sensíveis, como por exemplo na eliminação da interrogativa "por quê" tanto no filme de Godard quanto na teoria positivista de Comte. A banalização das ideias pela cultura de massa deseja que todos sintam os mesmos sentimentos rasos (Melhor para as vendas? Não importa.). Porém, como disse, o lento processo de desgaste que as máquinas de felicidade produzem acabam por gerar o inconformismo que faz com que os Sacerdotes de Equilibrium chorem em qualquer sinfonias menor, ou faça a personagem Natasha Von Braun se perguntar o que é o amor e recitar um poema de Capitale du douleur de Paul Eluard, deliciosa mania citacional de Godard. O inconformismo gera resistência ao duro discurso calculado das máquinas de felicidade, e arte é a forma máxima dessa resistência por sua multiplicidade de significados e profundidade de sentidos.
Recusemos, portanto, a esta certa felicidade e aceitemos o fato de que somos humanos e que não somos completos sem cada um dos sentimentos que nos compõe, seja o desejo da felicidade ou a inquietação do sofrer. Banir o sofrimento, desejo profundo de cada máquina da felicidade, seja não acreditando no mal, no caso da religião, ou na procura desenfreada de uma verdade, no caso do academicismo petrificado, não é a solução de qualquer problema de ordem social, fazê-lo é desnaturar a essência de cada um, é interditar o sensível, como se ele fosse um inimigo do bem estar. Não é despedaçando o ser humano em sua milhonésia parte que se encontrará a felicidade é compondo-o com todas as suas partes, é entendendo cada um dos sentimentos e aceitando-os todos como naturais, do bem estar ao sofrimento que algo próximo de um profundo significado de felicidade possa vir a existir, algo próximo do que significa ser humano.

Viver

Sentado à mesa do café-da-manhã, divagava com a faca sobre a margarina. Lembrava do sonho daquela noite. Um homem olhava-o profundamente em seus olhos, sorria e levantava dois palitos de fósforo longos e com a cabeça vermelha. Seus olhos passaram a faiscar como se fosse cometer um crime. A faca passeava sobre o pão enquanto sua mãe se aproximava. Ela nunca chegava de um único lance, ia aproximando-se vagarosamente. Abria a geladeira, pegava uma jarra. Ia até o armário, retirava um copo. Puxava a cadeira, sentava-se e a água lentamente caía dentro do copo. As divagações não cessaram até sua mãe abrir a boca, o desgrudar dos lábios fez um leve barulho que logo fora interrompido pela entrada da empregada bufando. A mãe olhou para ela com os olhos apertados, controlando via o medo os gestos desnecessários da empregada. Sorrisos de satisfação, pela manutenção violenta da tranquilidade na ambiência do café-da-manhã. A empregada saiu, sem nenhum barulho. O ritual novamente começara. As mãos tocaram o copo, enquanto a jarra era colocada sobre a mesa. Levada o copo até a boca, enquanto sua mão passeava sobre o crochê que enfeitava a mesa. Sorria, enquanto abria a boca. O filho ainda passando a faca serenamente sobre o pão, olhou para os olhos da mãe. Disse alguma coisa sobre o pai não estar muito satisfeito com comportamento do filho. Enunciou sua idade mais de quatro vezes e lhe exigia que fizesse algo de sua vida. Ele sorria ao pronunciar sua sentença sobre o julgamento do pai, já fazia algo, algo aliás muito importante: viver. Não havia ocupação mais interessante do que esta. Sua mãe desmoronou em si mesma. Levantou-se, dirigiu-se ao filho e passou a mão em sua cabeça. Mostrou o tamanho da casa com um gesto largo que abrangia a cozinha de um canto ao outro e afirmou que aquilo não duraria para sempre, que o pai um dia iria morrer e todo o conforto iria com ele, visto que o filho não se interessava pelos negócios da família. Negócios do pai da família, retorquiu severamente. A mãe abaixou a cabeça concordando. Exigiu que procurasse seu próprio sustento, já que aqueles negócios não o interessavam. Negócio nenhum o interessava, tinha outras espécies de negócios a tratar. E seguindo para a biblioteca, cuidaria do seu primeiro afazer do dia. Cuidaria, se houvesse encontrado algum livro sobre as prateleiras. Somente restava o pó, que estava disposto de acordo com a grossura de cada volume. Esperava por aquilo, só não tinha condições de mensurar exatamente quando aquilo iria acontecer. A empregada entrou exasperada. Ele a olhou e sorriu. Ela tentava explicar que seu pai havia mandado retirar todos os livros da biblioteca e que foram levados não sei para onde. Ela estava tristíssima perguntando o que sua criança iria fazer naquele momento. Saiu sem um aperto no peito, subiu ao seu quarto, trocou de roupas e pegou sua carteira. O celular brilhava a luz do sol matutino que lhe invadia pela janela, não tocou nele, como nunca o havia tocado. Sua face transmitia tranquilidade, os olhos da mãe ao observá-lo atravessar o sala de estar não conseguia acreditar naquilo. Ganhou  o jardim, e o motorista lhe perguntou onde deveria levá-lo. Um único gesto com a mão indicara que iria passear sem o carro. As ruas não faziam sentido para ele, andava sem destino, lembrou da mãe requerindo-lhe uma ocupação. O comércio da cidade estava abrindo suas portas. Entrou numa loja de antiguidades, observou cada móvel em seus detalhes. Um recamier o interessou-lhe particularmente. Sentou-se, tocou o tecido, passeou com os dedos pelos detalhes talhados na madeira. O vendedor vestido com terno e gravata perguntou se havia gostado da peça, os detalhes eram talhados por uma história qualquer a qual não prestou atenção, os detalhes explicavam a si mesmo sem história alguma. Deu o endereço onde deveria entregar o móvel, não perguntou o preço e ofereceu o cartão de débito ao caixa. O caixa ofereceu uma promoção qualquer que rejeitou ao questionar se havia alguma livraria ali por perto. O cartão havia sido rejeitado. Saldo insuficiente. Tirou algumas notas da carteira e pediu que o caixa guardasse o troco.  Sim, havia uma livraria há duas quadras na direção da praça. Seguiu para lá, viu a livraria que era ladeada por um sebo, preferiu a loja de livros usados. Ao ser prontamente atendido disse que iria procurar por si mesmo o livro que levaria aquela manhã. Viu muitos dos títulos da sua biblioteca desaparecida, até que encontrou um livro que não havia lido, abriu-o, leu a primeira linhas em voz alta: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz a sua maneira". Refletiu por um instante, não compreendia o que poderia ser uma família feliz, concluiu que se houvesse certamente era falsa, só poderia ser de plástico dentro de uma casinha de bonecas. Novamente seu cartão não funcionara, retirou mais uma vez o dinheiro da carteira. O tempo estava fresco, a praça era o local ideal para a leitura. Sentou-se embaixo de uma árvore qualquer, abriu o livro e acendeu um cigarro. Parecia que sua mãe se aproximava, mas não, era um rapaz. Parou na frente do lago, enquanto mexia na bolsa. Tirava uma máquina fotográfica, enquanto os pombos voavam com a presença de uma criança correndo. Virou a página. O rapaz virou-se, tirou uma foto na direção em que o rapaz estava. Guardou a máquina, enquanto caminhava em direção ao banco. Sentou-se colocando a bolsa ao lado abrindo a boca, o descolar dos lábios e seu som costumeiro. Não permitiu que falasse, perguntou antes se era fotografo. A negativa o fez rir. O rosto do rapaz ficou rubro perante a sua pele alva. Tentava explicar o motivo da fotografia, mas fora interrompido, não devia nenhuma explicação a ninguém... as pessoas estão acidentalmente na paisagem a qual se quer registrar. Até mesmo num retrato, não quer-se registrar a pessoa, mas o momento, o sentimento, o segredo que há ali. A pessoa aparece acidentalmente na paisagem. O rapaz riu-se da explicação, os dois começaram a discutir a fotografia até que o rapaz perguntou-lhe o nome. Giovani. O rapaz se apresentou já que ele não lhe havia feito a mesma pergunta. Leandro. Combinaram de se encontrar em um bar não longe dali depois das seis horas para terminar a discussão sobre a fotografia, visto que Leandro precisava ir para o trabalho. Continuou a leitura, os transeuntes não percebiam que ali para ele o tempo não passava, todos olhavam para o relógio e morriam oprimidos pelo ponteiros que indicavam horas cheias e seguiam sem poder parar e observar tudo o que só pode ser percebido lentamente. Almoçou em um boteco qualquer quando teve fome. Ao dirigir-se novamente para a praça, encontrou um amigo, queria somente lhe cumprimentar meneando a cabeça, mas infelizmente foi parado. Após os cumprimentos tudo bem desnecessários contou-lhe que seu pai estava furioso na empresa, sem um por quê?, continuou explicando que Giovani era o motivo da irritação, educara seu filho nas melhores escolas, mandara-o para a Europa e a América do Norte e para quê? Gritava um nada que poderia ser ouvido até mesmo na contabilidade. Todos estavam em polvorosa. Giovani não regia, parecia que estavam lhe narrando a história de uma outra pessoa que não ele. Seu pai confidenciou ao advogado, amigo de Giovani, que havia  tomado uma medida drástica. Lembrava de sua mãe pedindo que arrumasse uma ocupação. Livrou-se do amigo ao perguntar que horas entrava depois do almoço, olhando o relógio com os olhos arregalados saiu correndo. Sentado no banco esqueceu-se de tudo e sorveu cada personagem como se não os tivessem abandonado pela necessidade alimentar do corpo. Às cinco, Leandro voltava pelo mesmo caminho e estranhou que ele ainda estava sentado ali, não se aproximava. Dessa vez não foi até o lago, tirou sua câmera da bolsa e tirou a mesma fotografia sem a mesma luz do começo do dia. Giovani fechou o livro e levantou-se perguntando se aquilo era uma mania. Os dois sorriram, seguiram para o bar que deveriam se encontrar. O rapaz havia tomado a liberdade de chamar alguns amigos, ele não se sentiu incomodado visto que o bar era um local que qualquer poderia entrar, sentar e beber, rir, conversar e se apaixonar. Leandro sorriu. O bar era bem decorado, mas a sua atenção não se voltava para os enfeites pendurados no teto do local e sim para as pessoas. Analisou o cabelo, a roupa, os gestos de cada uma num único lance de vista, reconheceu um ou dois amigos do pai, um ou dois amigos que o visitaram na Europa a pedido da mãe. Enfadou-se, estava no seleto circo fechado de sua família. Leandro percebeu logo a mudança do sorriso em desgosto. Nada estava errado, era óbvio que mentia. Sentaram-se numa mesa ao fundo. Leandro apontou alguns homens e descrevia a profissão, Giovani falava que os conhecia e Leandro se chocou. A conversa mudou de tom com a chegada de quatro amigos, dois homens e duas mulheres. Os nomes foram ditos e esquecidos da mesma maneira. O que interessava era os cabelos cacheados de uma, os olhos verdes quase transparentes da outra. A barba por fazer de um, e as entradas do outro. Leandro apresentou Giovani ao contar a história das duas fotografias, todos se interessaram. E uma chuva de perguntas bombardeou-o, atingiam o alto mar já que as respostas eram vagas e imprecisas. Após o questionário mal preenchido, logo voltaram a discutir a questão do retrato. Leandro não concordava, Giovani argumentava que o retrato de pessoas desconhecidas eram mais expressivos que o de conhecidos. Havia mais história num desconhecido do que numa celebridade. A barba e os cachos concordavam com Giovani ao enumerarem fotógrafos que possuíam maior poder expressivo. Já as entradas concordava com Leandro, o retrato de uma pessoa conhecida expressa além do  retratado toda a força política daquele indivíduo. Sóbria, os olhos verdes questionou o amigo se não havia força política num desconhecido. A mesa parou de falar por um instante. Leandro balançou a cabeça refletindo, Giovani o olhava com demora. Os amigos perceberam que ali havia uma outra história acontecendo, com ou sem força política. Muitas cervejas ilustravam mais e mais as teorias particulares sobre o retrato que logo descambou para a pintura e por fim chegou aos planos futuros, cada um jornalista, sonhava com a grande reportagem, um livro de fotografias de desconhecidos, uma cobertura de uma guerra ou mesmo uma ponta no jornal televisivo. No momento de Giovani anunciar seu plano futuro, pegou o livro e disse que gostaria muito de terminar aquele livro antes que o pai o achasse e o escondesse como os outros. Todos gargalharam. Leandro percebeu o rosto sério do novo amigo. Era tarde, as despedidas começaram, promessas de novo encontro foi feita, mas naquela semana seria impossível, cada um com sua ocupação que não batia com o horário do outro. Há quanto tempo não se encontravam? Semanas, provavelmente. A memória foi comida pelo tempo, pensou Giovani. Restou somente os dois à mesa. Leandro queria encontrá-lo novamente, assustou-se com o fato dele não lembrar-se do número de seu celular. Anotou seu número num guardanapo que fora imediatamente guardado dentro do livro. Cada um tomou seu caminho. As ruas do centro da cidade estavam iluminadas levemente e as vitrinas das lojas formavam um mosaico do desejo, Giovani parou na frente de uma ou duas e apreciou o conceito. As luzes diminuam à medida que se aproximava de sua casa. Abriu o portão e estranhou uma luminosidade incomum no jardim. Era uma fogueira, concluiu com mais dois passos. A mãe chorava ao lado do pai que jogava um por um os livros que estavam num carrinho de mão. O pai ao ver o filho ferveu voando em direção ao livro que estava embaixo de seu braço que logo foi atirado ao fogo. O pai interrogava como ele havia comprado aquele livro se todos os seus cartões estavam bloqueados e olhava furiosamente para a esposa ao adivinhar que ela nunca deixava a carteira de seu filho vazia. Um sermão sobre o trabalho e a ocupação foi seguido de muitos olhares de raiva espumante. A raiva converteu-se rapidamente em ódio ao perceber que o filho não se comovia com toda a sua ira. Lembrava-se da mãe passando a mão em sua cabeça, lembrava-se da empregada contando-lhe como os livros sumiram, lembrava-se do amigo advogado que o parara na rua, lembrava-se dos olhos verdes, dos cachos, das entradas e da barba, lembrava-se de Leandro e sua máquina fotográfica, lembrou-se de seu sonho e sorriu. Levou uma bofetada na cara. O pai repetia sem cessar que ele deveria aprender a viver e que acordaria cedo amanhã para ir ao escritório.

Canção Marcial - Esben and the witch (tradução)

Il n'y a pas de victoire, il n'y a que des drapeaux et des hommes qui tombent.
(Jean-Luc Godard)



Na selvageria dos pensamentos nublados,
batalhando com ácidas respostas mentais
e caminhando em prados vazios,
é possível se abandonar calmamente
mesmo afogado em chuvas.


Atenção soldados
para esta canção marcial!
Cabeça erguida!
Olhos firmes!

As batidas dos tambores desaparecem.
O estrondo dos pratos diminuem.
A lama é engrossada com desejos
para poder afundar
os seus pés na terra.

E suas botas afundam
nas memórias intermináveis
de pensamentos perdidos.

E o exército de muitos
lutam sua própria luta,
perdidos na escuridão.
Cegos!

Suas vísceras, minha trincheira.
Eu mesmo, minha arma.
Os sussurros quebram o silêncio
com delicados gemidos.

Braços e pernas.
Dentes e unhas.
Nossa frágil unidade
está destinada à falha

Este batalhão
desgastou-se
em capitães e camaradas.
Já posso apostar pela sua morte...

Inocência irônica


Les Carabiniers, França, 80min, 1963, preto e branco

Um filme postal poderia arriscar. Ulisses e Miguel Ângelo são iludidos pelos encantos da guerra, nenhuma guerra específica visto que todas as guerra parecem uma única guerra, a que move os homens pelo desejo de conquista e de vitória, e inocentemente eles aceitaram ser carabineiros para poder conquistar aquilo que não tinham: pequenos objetos que sua miséria não poderia comprar. Cleópatra e Vênus até montaram sua lista de objetos os quais gostariam que eles pilhassem, visto que na guerra tudo é permitido, até matar inocentes, principalmente. Partindo para o combate, eles mantém contato com seus familiares por meio de postais contendo suas impressões sobre a guerra e seus atos. Entretanto, as suas impressões que não são tão inocentes quanto eles aparentam ser, são palavras ferozes e capazes de nos fazer refletir o que significa a guerra, e volto a frisar, não uma guerra específica e porque não as pequenas guerras que travamos todos os dias: "il n'y a pas de victoire, il n'y a que des drapeux et les hommes qui tombent" ou "não existem vitórias, apenas bandeiras e homens que caem", esta é a mais vigorosa impressão postal que lemos nos diversos cartões que nos foram entregue durante o filme. De ambos os lados caem os homens e as bandeiras. Uma jovem garota comunista, interpretada por Odile Geoffroy, com o dedo em riste repete o discurso de Lenin e ao ser executada tem seu rosto coberto por um pano branco e grita por seu irmão, o que comove os carabineiros que permitem que ela tenha um último desejo antes de morrer atendido. E ela simplesmente deseja recitar um poema: Admirável Fábula de Maiakovski:


Isso não pode ser a morte
Por que iria ela rondar o forte? 
Não tendes vergonha de acreditar numa fábula?
Simplesmente alguém, para sua festa, ordenou este carnaval
Inventou esses tiros enquanto ele pisca os olhos 
Como é encantador o baixo do anfitrião, 
parece um canhão
E a máscara não é de gás, simples brinquedo farsante
Vejam! 
Em sua corrida, o foguete mede o céu! 
A morte teria essa graça ao deslizar pelo salão do céu? 
Ah, não diga: “O sangue de uma ferida”
É odioso
Simplesmente, para honrar os heróis, 
eles foram ornados de cravos
Claro! 
O cérebro não quer compreender, nem pode
A nuca dos canhões, não fosse para um beijo 
por que seria enlaçada pelos braços das trincheiras? 
Ninguém foi morto 
Simplesmente, não podendo mais estar de pé, 
deitaram-se do Sena ao Reno 
pois floresce e inebria a gangrena nos canteiros dos mortos 
Quem disse mortos? 
Não! Não!
Todos se erguerão
Assim, simplesmente, voltarão 
e dirão sorrindo às suas mulheres: “Que brincalhão, 
que fenômeno era seu anfitrião”
Eles dirão: “Não houve nem granadas nem explosivos”
É claro que não havia um forte
Alguém inventou para a festa 
um mundo de admiráveis fábulas

O desejo de não morrer faz com que o significado do poema transcenda, sabendo que logo morreria, a jovem ironiza com a ideia da morte ser uma admirável fábula e que ainda permaneceria viva como num sonho, "todos se erguerão, assim, simplesmente, voltarão e dirão sorrindo às suas mulheres: que brincalhão [...]", ela também voltaria, os diversos tiros que leva não a matam por completo, caída no chão move o braço, o que faz o capitão atirar mais uma vez e outra e outra e outra. Homens e bandeiras caem de todos os lados: morre a jovem comunista, morre metaforicamente o carabineiro em sua violência. Morremos todos nós diante do horror de qualquer guerra. E as conquistas, ou a vitória, são todas ilusórias. Postais e mais postais se acumulam, à guisa de títulos de propriedade. Ulisses e Miguel Ângelo levam para casa os monumentos, os meios de transporte, as mulheres, dentre outras coisas. Fotografias e postais de tudo o que viram e que inocentemente não sabiam que já eram de cada um deles: tudo estava ali, eles não se reconhecem herdeiros dos bens da humanidade. Cleópatra até diz que dará o Pharteton para um familiar qualquer, visto que está velho e precisava de uma reforma.

Por fim, depois de uma longa cena enumerando cada um dos bens que logo entrarão em posse real, assim que a guerra acabar, há a divisão de tudo entre os quatro personagens, eles se encantam com cada uma de suas conquistas, escolhem, brigam, soam inocentes, mas não, o sorriso de mofa no rosto de cada um deles só nos mostra a genialidade de Jean-Luc Godard, eles são irônicos: não há vitória, só quedas. E sentimo-nos quedar diante da nossa inocência perante o mundo. E a lição permanece: por que não sermos igualmente inocentes irônicos também?