b - iamamiwhoami (tradução)


E ali ele estava, sozinho...
Poderiamos ter recolhido todas as nossas coisas e ido
morar na areia movediça,
lado a lado, de mãos dadas.
Afundando aos poucos e voando,
Permitindo o silêncio cobrir a luz cega.

Respire fundo enquanto descemos e descemos...

Voar alto,
cada vez mais alto.
Até a lua nos forçar a escalar até o chão.
E eu desejando afundar na areia...

Voar alto,
cada vez mais alto.

Com ódio e desprazerosas saudações
A paranoia me eu ensinou a viver com.
Mesmo que eu nunca vá esquecer o que ficou para trás.
As suas músicas ainda ressoam em minha mente.
E todo o branco azula,
me procurando procurando você.

Respire fundo enquanto descemos e descemos...

Exumação [conto de aniversário]

É muito diáfana a linha divisória entre a sanidade e o desequilíbrio mental.
(Manoel Philomeno de Miranda em Nas fronteiras da Loucura)

Acordou determinado. Sabia a demanda que deveria cumprir naquele dia. Pegou seu carro e seguiu o caminho da memória, faria duas homenagens, uma para o passado e outra para o futuro. Percorreu um caminho que não conhecia, somente lembrava-se. Foi guiado pelo desejo, não havia nada marcado no mapa, não havia um X nesta exploração, era necessário farejar o sentido da lembrança. Quinze anos separavam os dois acontecimentos. Depois de muito correr pela cidade, um cheiro tornou-se a bússola ... Finalmente, saíra da cidade e pegara a BR. Era aquele o caminho. A certeza era a certeza da memória.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os super-heróis que enchiam sua caixa de brinquedos tornavam-se dessa forma sua liberdade criadora na infância, não podia sair do quintal mas não estava preso, tinha os bonecos-de-ação de todos os tipos, gêneros, articulados ou imóveis. Eles se aventuravam muitas vezes em histórias mais que reais, dramas pessoais não vividos nas séries televisivas que apreciava com um gosto peculiar entre uma ópera ou outra que assistia pela madrugada, seus personagens discutiam a política de seus mundos, queriam provocar mudanças, eram, descobriu depois, heróis trágicos, pais das pátrias e dos povos, sofriam por todos porque este era o seu destino, todos aqueles heróis de plástico estavam predestinados a sofrer a pena pelo sofrimento alheio em diálogos um tanto complexos para a pequena narrativa do super-herói que mesmo salvando a humanidade inteira tinha tempo ao final de cada episódio para viver cenas domésticas de pura futilidade da indústria cultural. Um deles, provavelmente o Batman, estava com um problema com seus ministros, estava tramando um golpe de estado para poder tornar-se o único senhor soberano do local... nunca saberemos se aquele herói teria superado tal questão, sua avó havia interrompido um momento muito importante na sua pequena mitologia monológica pessoal. Uma amiga estava vindo buscá-los para conhecer sua fazenda, não longe da cidade. Sair de casa? "A senhora ligou para minha mãe?", era só o que se passava em sua cabeça. Não importava se tivesse ligado ou não, iriam de qualquer maneira. Ela também era uma mãe...
Um Fusca veio e seguiram pelas ruas, e não importava o carro, ele sempre sentava-se no banco de trás, de joelhos no banco a olhar para trás, não gostava de ver o caminho vindo até ele, gostava de vê-lo abandonando-o lentamente. Da rua para a estrada, da estrada para o estreito caminho de terra batida, salpicado de cascalho, uma porteira, uma ponte e mais uma porteira. O mato não era um local desconhecido, conhecia-o bem, sempre estava indo e voltando das fazendas dos tios-avós, mas aquela situação era completamente diferente, era um local desconhecido, sem todos os familiares ao redor, somente o atento e severo olhar de sua avó. Entraram na casa, a água já estava fervendo e a guampa pronta para o mate, era audácia pura para uma criança beber algo tão quente, nenhum outro primo ou prima o fazia. Sentia-se parte deles, pronto para discutir um golpe de estado em um mundo qualquer, mas preferia ouvir, foi ouvindo que aprendeu as pequenas e certeiras lições de sua avó, seu juízo sobre as coisas nunca forma estreitos, tinha a mente mais ampla que conheceu, fraquejava as vezes como qualquer ser humano, mas era íntegro a qualquer momento.
A palavra cachoeira ressoou entre muitos nomes de velhos conhecidos que ele nunca vira ou nunca iria ver. Seus olhos brilharam, a água é o único dono da natureza, ocupa qualquer espaço e de tanto ocupá-lo segue seu caminho sorrateiramente para seu destino, qualquer que fosse. Era um pequeno símbolo a ser absorvido e que certamente o absorveria. Foi levado até a queda d'água, era raso, diziam, e sua tromba d'água caia exatamente em cima de uma pedra, um presente de Deus, segundo a dona do local. Suas roupas simplesmente desgrudaram do corpo, não pensou muito e já estava dentro da água gelada, seguiu cuidadosamente até a cachoeira, tateando o desconhecido com os pés, areia, pedra, folhas secas, troncos. Sentia o beliscar de pequenos peixes em suas pernas de penugem clara que provavelmente os atraíam. Finalmente, a queda d'água, a pedra em que caia em cima era enorme, não muito mais elevada do que o nível da areia, levou sua mão até o seu fluxo que de tão forte faziam-nas cederem rapidamente. As explorações com os pés não pararam, a textura da pedra era algo novo, liso e escorregadio, algo que entrou para dentro do seu imaginário, uma sensação nova que ficou registrada na memória, como muitos dos acontecimentos daquele dia.
Seus pés agora queriam testar a força do líquido que caia e enchia aquele pequeno lugar de água não muito cristalina. Aos poucos foi sentindo a força da água juntamente com a textura da pedra, e sua combinação faziam-no vibrar. Entretanto, ao chegar ao ponto central da queda d'água os pés perceberam uma reentrância, a água caia dentro de um buraco na pedra, era sua leitura infantil da força da água, não se lembrava do provérbio popular. Seus olhos se arregalaram com o choque. Quão profundo deveria ser aquele buraco? Foi vagarosamente afundando seu pé direito naquele assombro, sua perna não alcançou um fundo... Deveria ser um buraco infinito. Olhou para trás, e sua avó e sua amiga já não estavam lá, havia se arriscado sozinho. Sorriu de pura liberdade, resolvendo testar mais uma vez a profundidade.
Estava com quase todo seu corpo dentro da água e seu peso agora era suportado por sua cabeça e forçava  seus cabelos fazendo cócegas no couro cabeludo, assim poderia penetrar melhor naquele infinito. Não pode com a força da água, ela o afundou e escorregando na textura da pedra, não uma perna, mas as duas e depois o corpo todo entrou no buraco. A água barrenta o cegou, não havia ali um peixe sequer, um turbilhão de nadas passava em sua cabeça, não sabia o que era a morte ou qualquer coisa parecida, nunca esteve em um  hospital ou mesmo lido livros versando sobre o assunto, os heróis não morrem e não matam, eram justos e faziam sofrer uma pena para dirimir as culpas, era assim que o Batman puniria seu traidor, se essa narrativa tivesse tido um fim. São visões de um inocente sonhador. De um pequeno sonhador que deixou a vida ali mesmo. Naquele buraco infinito seu corpo entrou e de lá nunca mais saiu, perdera naquele momento tudo o que o ligava a realidade, seu pesado corpo fora dragado pela água e seu fluxo, mas algo fora regurgitado de volta pela mesma força que o colocou lá dentro.
Sua avó não havia percebido a diferença entre seu espectro e seu corpo, ou se houvesse percebido nada havia comentado, ele estava lívido por todo o conhecimento adquirido pela morte prematura, pela primeira vez tinha um olho fechado e o outro aberto, ouvia as perguntas que os outros faziam e um olho respondia o que eles exatamente queriam ouvir, o outro pensava profundamente sobre aquele momento, nunca optando por uma resposta contudente, era a múltipla possibilidade de respostas que animavam seu espectro. Nunca ninguém sentiu falta de seu corpo, seu espectro fora tomado como a chegada da adolescência que muda radicalmente o pensamento de qualquer um, mas não era isso, havia adquirido toda uma consciência num único lance. Vivia metade no mundo dos mortos, metade no mundo dos vivos, poderia compartilhar das duas partes e das duas partes se nutriu. Os super-heróis de plásticos foram esquecidos, trocados por livros, devorados um atrás do outro, estava a procura de algo que ainda não havia encontrado, permanecia lendo e lembrando-se do seu corpo que ainda deveria estar caindo com a força da água para dentro do infinito.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.

Siderações [desengavetando textos velhos, provavelmente de 2005 ou 2006]

A Cruz e Sousa

Ela olhou as estrelas e sentiu no fundo de seu coração o aperto. Era o combinado. As estrelas estão em todos os lugares. E representam muito mais do que telefonemas ou cartas escritas sem pretensão. A saudade daquele homem vem sempre sorrateira durante a noite, por isso as estrelas. Durante o dia o quarto está iluminado e as fotos de seu irmão estão todas sob seus olhos, mas na calada da noite, não é possível ver com a nitidez do dia. Fotos e estrelas as únicas coisas que podiam acalmar aquele coração aflito. Ela pediu que ele fosse trabalhar na Argentina, mas não, ele queria emoções fortes para suas fotos e textos. "Por que, meu irmão, você foi para a guerra?", ela gritava da sacada de seu apartamento, silenciosamente, sem palavras, mas muito alto dentro do coração de seu irmão.
Um telefonema com uma única pretensão. As estrelas aproximam corações e mentes, mas não os ouvidos. Como a palavra pode ser destruidora. Cinco fonemas, cinco letras e um sentido, o sentido final. Ela gostaria que essa palavra tivesse outro significado. "É preciso buscar novamente no dicionário, deve haver outras entradas com outros sentidos, às vezes figurados...", mas não, esse sentido é fatal.
Ela caiu de joelhos, suas pernas não mais a sustentavam. O peso das palavras?
"Por que ele foi para o Iraque? Ele poderia ter ido para a beira de vulcões, mais previsíveis quem sabe, mas uma guerra... Poderia ser uma guerra contra robôs, contra palavras, contra conceitos velhos e ultrapassados, mas contra homens? Não... Pior, homens sob o calor de Marte." Astros e estrelas malditos. Ela vomitou, não se sentia bem, pôs para fora seu escatológico almoço. Vômito de ira?
Ela flagelou-se, sem cilício ou chicote, apenas pensamentos desconexos. Palavras quintessenciadas? Horas de destruição silenciosa. Hiroshima com apenas uma vítima. Nenhum outro telefonema, nem visita. Sim, ela era sozinha. Seu irmão era tudo e todos. Tão longe e presente.
Se não há consolo caloroso, há o consolo frio e vil. Três círculos sagrados onde os homens construíram a paz verdadeira, brancos e pequenos, sólidos para se desfazerem dentro do suco digestivo. Irônico, não?
Paz... Absoluta paz. Ela jogada no centro de sua sala num tapete felpudo negro, que combinava com vários objetos naquele lugar, visíveis e até invisíveis. Paz... O efeito de sua calma embalada já era quase total. Ela queria ver as estrelas mais uma vez. Abriu a porta-balcão, afastou duas cadeiras e atingiu o parapeito da sacada, olhou para o céu e blasfemou, desta vez em alto e bom som. Queria tirar satisfação com as estrelas. Por que não? Subiu no parapeito. Iria andando até elas, a decisão já estava tomada. Pôs seu pé sobre o ar sólido que aceitou sua pisada raivosa e ela caminhou até o céu. Não, o nome dela não era Ismália. Está mais para Alda.
"Por quê? Me digam!" As estrelas somente a olhavam. Sentiram penas as estrelas? Elas já viram muitas dessas coisas acontecerem....

Finas flores de pérolas e prata,
das estrelas serenas se desata
toda a caudal das ilusões insanas.

Quem sabe, pelos tempo esquecidos,
se as estrelas não são os ais perdidos
das primitivas legiões humanas?!

O olhar das estrelas era desgastante, impassível e sincero. Ela viu que não obteria sua resposta. Sua demanda apenas começara. Pelo véu negro da noite flutuou encarando todas as flores de pérolas e prata, mas nada. Nenhuma delas cederia à dor de sua visitante.
Quando ela desistiu de inquirir as estrelas um ponto brilhante se fez na Terra envolvido pela escuridão da noite. O que seria? "O brilho só pode vir do céu..." Não. Pequeno engano, ilusões criadas por mentes mesquinhas e impuras.
Ela se ateve ao brilho incomum e numa visão aproximou-se. Lá estava a terra onde tudo começara. A terra ignóbil e desnecessária. Quantas cidades não estariam ali enterradas embaixo daquelas estruturas? Quantos milênios de guerra essa cidade já não viu?
O brilho estava atrás de uma trincheira e ela se aproximou levemente, flutuava naquele ar quase sólido de sangue evaporado. Ali estava a estrela que procurava. Um homem, sua máquina fotográfica, seu cartão de autorização e um bloco de anotações jogado ao lado. O tiro foi certeiro, no meio da testa, feito por um especialista. Mas mesmo assim brilhava. A barba espessa fez com que o reconhecimento demorasse um pouco, mas sim, aquele era seu irmão.
A sua calma em pílulas não permitiu que ela tivesse um ataque naquele momento. Somente aquela tristeza e uma lágrima sincera. "Meu irmão... Acorde!" Isso não é um conto fantástico. Ele não vai acordar como num passe de mágica. Morto, ele está morto. E, exceto em sonhos, que não é este o caso, o impossível não pode acontecer.
Ela velou o irmão. O efeito calmante era tão potente que ela não se desesperou. O brilho daquele homem bem afeiçoado, pele morena e rosto quadrado, muito bem feito só disputando com Narciso, foi se tornando cada vez mais forte. Uma estrela em crescimento. Das estrelas serenas se desata toda a caudal das ilusões insanas. Uma estrela sempre está no céu, e foi para lá que se foi o que se foi.
Ela acompanhou a evolução daquela estrela até o céu, de onde acabara de chegar e toda a luz a sua volta foi se desfazendo, e um silêncio incômodo a assustou. Olhou a sua volta. A vista estava rubra de tanto sangue em derredor. Decidiu voltar, mas escutou o choro de um bebê. "Uma criança, aqui?" Quem sabe... Ela procurou em todos os lugares próximos, mas o som daquele pedido ainda sem palavras articuladas não se fez mais alto ou baixo. Até que ela percebeu que o choro vinha de dentro dela.
De seu ventre uma dor inconcebível. Mas aquele bebê não estava pronto para nascer. Mas era seu ventre que queimava. E sua dor foi tão atroz que a acordou de sua busca insana por motivos.
O telefone tocava. "Alô?" sua voz estava rouca, sua boca estava seca. "Aqui é Dorneles, o seu chefe, estou ligando para saber se vou ter que arrumar mais uma mesa para colocar os processos que estão atrasados? Pois o luto do seu irmão já passou já faz mais de uma semana!" Insensível? Não. Prático. Para ele a dor também já passou. Quando ela desligou o telefone percebeu que sua calça estava encharcada de sangue. Quanto tempo ela passou ali, jogada na própria dor? Não importa quanto tempo. O que mais importa agora é que ela finalmente pode se considerar sozinha. Sinto muito Cruz e Souza, o Mistério para os homens já acabou.

Profundidade verde

Caminhava sem muita pressa pela rua. Atravessava uma rua ou outra, sempre a observar cada vitrine, roupas das últimas tendências não eram exatamente o que lhe interessavam. Parava por vezes longos minutos em frente de uma vitrine, lá dentro diversas roupas dependuradas em manequins que imitavam poses humanas monumentais para mostrar definitivamente o bom caimento de cada roupa num corpo ilusório, mais ao fundo as vendedores ávidas por mais uma venda naquele fim de ano sem muito movimento, resultado de crises sobre crises, esperavam ansiosamente por sua entrada, vestia-se bem, portava uma bolsa de marca, usava uns óculos com design aclamado, seria uma venda garantida. Porém, seu olhar não estava direcionado nem para os manequins, nem para as roupas, muito menos para as vendedoras. O seu olhar parava antes, antes de penetrar a mágica insustentável da loja, parava na própria vitrine que se tornava espelho em sua visão. Olhou concentradamente por longos minutos para seus próprios olhos verdes refletidos que se destacam sob certa iluminação daquele dia ensolarado. Sua forma se tornava vaga na vitrine com tanta luz, mas seus olhos não, eram certeiros e exatamente refletidos mostravam exatamente aquilo que estava procurando. Geralmente quando a visão de sua própria imagem numa forma de autoaprovação sorri-se, e ele não. Seu rosto alvo quadrado tornava-se mais sisudo, mais petrificado, parecia um monumento da Ilha de Páscoa, como a esperar pelo grande acontecimento.
Sua atenção somente se desviou a passagem de um homem que o olhava, o olhar do outro o atraia e de uma forma misteriosa, ele sabia que estava sendo observado e sempre retribuia insistentemente a observação. Da mesma forma que olhou-se por minutos diante da vitrine, vislumbrou todo o caminhar daquele homem que seguia em sua direção e certamente passaria por ele seguindo o curso natural do caminhar pelo centro da cidade. Não foi exatamente o que aconteceu. O homem parou ao seu lado e começou a olhar as roupas, as vendedoras vibraram com gritinhos surdos. Ele não voltou a olhar a vitrine continuou insistentemente a olhar para o homem até que o outro se volta para ele, aproxima-se de seu ouvido e diz qualquer palavra convidativa. Ambos sorriam de canto de boca e partiram juntos no caminhar natural das vidas. As vendedoras se dispersaram suspirando.
Naturalmente conversaram sobre tudo, ou seja, sobre coisa alguma. Se olharam e se desejaram nitidamente, corpos pulsantes e colidindo um para o outro. Mentes que se atrem por uma beleza única que só há no outro ser humano, uma beleza que suplementa a sua interminávelmente. Sua casa era um primor da arquitetura contemporânea, suas linhas retas, o concreto, o sábio uso do vidro. O amplo quarto era preenchido somente por uma cama com seus lençóis brancos, sua única desordem, era a desordem do dia: roupas salpicando o chão amadeirado. Os corpos se moviam numa entrega total, suspiravam e cediam ao desejo alheio enquanto seu próprio desejo era preenchido de uma nova forma muitas vezes não experimentada. O desejo só possui um fim, e com o seu fim, os corpos tornam-se novamente humanos, severamente humanos. Olharam-se e sorriram, como se a satisfação de si pudesse estar num único ato. O observador de vitrines não deixou de fazê-lo, observava silenciosamente o outro enquanto contava historietas para depois do sexo, quando questionava dava respostas vagas. A única coisa que lhe interessava era os olhos que misteriosamente eram vislumbrados, agora sem sorriso algum, estava novamente a contemplar sua própria imagem na profundidade azul do outro, sua busca não havia terrminado.
Levantaram para um banho. Num gesto de último carinho permiriam-se ensaboar-se, enxaguar-se e mais uma vez beijaram um ao outro. Não vestiram roupa alguma, seguiram direto para um outro cômodo que possuia um espelho que ocupava toda a parede, parecia a sala de ensaio de um ballet qualquer. O espelho ali serve para observar com detalhes impensáveis o movimento do corpo, é possivel estudar o detalhe de cada músculo, sua curvatura, sua grandiosidade ou flacidez. Ele sentou o outro no chão sobre um leve acolchoado que se olhou envergonhado para o espelho a sua frente. Ele permanecia sério, como a preparar um leve ritual, trouxe dois copos preenchidos com qualquer vapor em homenagem a Baco e entregou sem olhar o copo que tocava uma música glacial desconexa . Tomou um pequeno e tímido gole, suspirou fundo com o álcool rasgando sua garganta enquanto ele se sentava por trás do outro envolvendo-o com suas pernas, os dois agora poderiam se olhar o próprio reflexo. A seriedade pertubava o outro que muitas vezes desviava o olhar do espelho. Levemente o copo foi colocado no chão vitreo da sala, as mãos percorreram lentamente o corpo alheio, sua mão, agora severa, segurou o queixo do outro forçando-o olhar diretamente para o espelho. O silêncio da cena tornava o ritual macabro. Ele analisava cada detalhe do corpo de seu convidado, perscrutava pacientemente cada milímetro da alteridade. Minutos tensos que só se encerraram com sua voz um tanto rouca sentenciando: "Não é você!" De olhos arregalados o outro levantou-se apressadamente chutando sem querer o copo, o líquido naturalmente se espalhou formando uma poça desordenada, o gelo rolou enquanto começava seu processo de liquefação perante o leve calor que se fazia. Os dois se olharam, um de pé com os musculos retesados por tal insulto, o outro levemente deitado apoiando as mãos para trás. Nenhuma palavra foi dita, o outro simplesmente saiu em direção ao quarto para resgatar suas roupas e provavelmente sair o mais depressa possível. Ele permaneceu ali quase deitado, somente observando a si mesmo, seu único movimento foi pegar o gelo mais próximo e passar pelas curvas de seu corpo, aquele toque insano do gelo o fez voltar a infância. Viu a si mesmo nu deitado na cama, sua mãe se aproximou e o pegava no colo. Deveria ter cinco anos ou menos. Ela sempre o levava para a frente do espelho e ambos ficavam observando a si e ao outro, enquanto a mãe dispensava carinhos por sobre o corpo branco do filho, ele nunca sorria na frente do espelho enquanto a mãe gargalhava pelas brincadeiras carinhosas, ele sempre olhava para ela com tal profundidade que sem sombra de dúvida poderia até mesmo estar se observando no reflexo da profundidade verde de sua mãe.

A educação de quem?

FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1963

Frederico Moreau é uma personagem encantadora. Não, ele não é uma personagem. É mais. Morador da província, deseja e vai para Paris, e nessa primeira ida e vinda para esta cidade algo muda em sua existência, cidade esta que sim, verdadeiramente é encantadora, por ser a capital do país? Não. Por ser exclusivamente a capital do desejo: "Porque, na sua opinião, a arte, a ciência e o amor (essas três faces de Deus, como dizia Pellegrin) dependiam exclusivamente da Capital." (p. 95). Nesta viagem que acompanhamos juntamente com a descrição (in)verossímel de Gustave Flaubert percebemos como Fred estava sobredeterminado por um sentimento romântico, um sentimento que o faria amar a esposa de Arnoux: "um homem que mercadeja com torpezas políticas" (p. 54), simplesmente pelo gesto de amar. Toda a sua existência, acreditou ele, estaria concluída quando conhecesse e enamorasse esta mulher que significou a conjunção da perfeição, da beleza e da integridade. As peripécias da existência porém, mostraram o contrário. Ela tornou-se mais real? Não, somente mais humana, severamente mais humana. Da mesma forma que Frederico, que também tornou-se mais e mais humano, mas isso não se processava da mesma forma, ele estava em um processo:
Mas estava resolvido (e a todo custo) a mudar de existência, isto é, não perder o coração em paixões infrutíferas, e até hesitava em desempenhar-se da comissão de que Luísa o havia encarregado: comprar para ela, em casa de Jacques Arnoux, duas grandes estatuetas policromas representando pretos, como os que estavam na prefeitura de Troyes. Conhecia a marca do fabricante e não as queria de outro. Frederico tinha medo, se voltasse a casa deles [dos Arnoux], de tornar a cair nos seus antigos amores." (261, reparem que o grifo é do autor)
A necessidade de não vê-la mais criou em si um desejo de volta à província: "odiando o meio fictício onde tanto tinha sofrido, [Frederico] desejou a frescura do manto, o repouso da província, uma vida sonolenta passada à sombra do teto natal, com corações ingênuos." (427) E foi-se novamente pisar no chão menos fictício (?) que sua terra natal insistia em representar... Porém o fogo desse desejo, que move a muitos de nós, acaba nos levando de uma forma indefinida a diversos lugares ou situações. Sua volta a Paris é marcada por diversas mudanças em seu comportamentos, mudanças naturais que sempre vão se processando no intelecto e no sensível de cada um de nós, lições que aprendemos de ouvido ou na pele, lições que assinamos com a  nossa orelha ou com sangue mesmo. E eis uma lição no meio de tantas: "há homens que apenas têm por missão servirem de intermediários entre os outros: passam-se como pontes e segue-se adiante." (p. 248) E muitas pontes se fizeram entre Fred e seus objetivos que mudaram tanto e tantas vezes que não há necessidade de mapeá-los, seria mapear a própria lógica da existência. Porém, há uma reviravolta na história de todos, uma revolução, uma revolução qualquer que acontece a todos os momentos, sejam mais ou menos sangrentas, mais ou menos politizadas, mais ou menos circunstanciais, porém, Frederico estava tão dentro de si que não se lembrou de perceber os fatos que aconteciam fora de sua janela e se chegou a percebê-los fez de forma inconsciente: "Ah! lá estão liquidando algum burguês! - disse Frederico [junto a janela] com tranquilidade, porque há situações em que o homem menos cruel está tão desligado dos outros que é capaz de ver morrer o gênero humano sem um abalo do coração" (p. 292) Com a morte do gênero humano inteiro Frederico poderia, sim, ser exatamente aquilo que desejava, os outros e seus interesses de alguma forma não tão obscura atrapalhavam seu objetivo, sem eles, sem burgueses, numa outra e nova(-velha) situação política ele poderia ter tudo o que desejou. Não só ele, mas esse clima de anti-percepção do outro estava dominando a cidade do desejo, um guarda: "carregava a arma e atirava, sempre a falar com Frederico, tão sossegado no meio da revolta como um horticultor no seu jardim." (p. 294) Estavam todos recolhendo os seus tubérculos para o jantar, a ceia em que se farta de satisfação de si mesmo. Mas a terra não é boa, não tem nutrientes suficientes, precisa de revoluções para que novos modos possam ser cultivados. E da terra revirada novos insetos sempre surgem. Desculpem, não são insetos, vamos continuar explorando a primeira metáfora, são pontes, pontes que precisam ser cultivadas, algumas precisando de maior ou menor atenção nos reparos. Frederico inocente sempre cuidara de todas as pontes com a mesma atenção, na província não deveria haver muitas pontes, mas em Paris há pontes demasiadas e tratar de todas desgasta a própria existência, "Frederico teve vontade de lhe responder: "Não te inquietes! eu pagarei!" Mas a mulher podia mentir. A experiência já o havia ensinado. Limitou-se apenas a consolações." (p. 321) O pequeno ensinamento sobre as pontes tornou a sua vida mais interessante, seu romantismo, sua idealização foram minguando, as mulheres foram tornando-se mais vivas e também menos reais.
"[...] Rosanette não confessava todos os amantes, para que ele a estimasse mais; porque, no meio das confidências mais íntimas há sempre restrições, por falsa vergonha, delicadeza, piedade. Descobrem-se nos outros ou em nós precipícios ou lodos que impedem prosseguir; sentimos, aliás, que não seriamos compreendidos; é difícil exprimir com exatidão seja o que for eis porque as uniões completas são raras." (340-1)
A mentira estava a sua volta por falsa vergonha, delicadeza e piedade, as uniões completas além de raras eram invisíveis, cheias de mistérios, a fim de esconder muitas vezes somente o vazio de sua própria existência oca: "O coração das mulheres [e acrescento, do homem] é como certos moveizinhos de segredos, cheios de gavetas encaixadas umas nas outras; a gente incomoda-se, quebra as unhas, e no fundo apenas encontra alguma flor seca [quantos homens não tem flores tão secas em suas gavetas?], alguma poeira - ou então nada! E, afinal, receava vir a saber demais." (p. 399) Quanto mais sabia, mais se tornava vivo, mais tornava os outros vivos. Conhecer é humanizar o outro e a si mesmo, num lance paradoxal e ceticista. É uma espécie de colonização, onde muitos outros-iguais precisam por vezes até serem extintos para que a Metrópole do Desejo se estabeleça, as faces de Deus possam estar entre os homens, ou para que pontes sejam construídas ou destruídas. Há fatos mais traumáticos que outros, e há fatos traumáticos que não só resignificam a existência por-vir, mas resignificam a existência anterior, dando sentido e consistência a experiência já vivida, e a morte de seu filho, torna-se para ele o começo de todas as desgraças, como se nenhuma delas já houvesse se processado em sua vida, o que é impensável, visto que já estamos no fim do volume e que seu modo de vida já mudara muito da mesma e estranha forma que continuava o mesmo. Surge nele, como surge em muitos de nós, a vontade de conservar o trauma pela arte, queria eternizar a figura do filho que nascera morto, escolheu a pintura, poderia ter escolhido qualquer outro monumento que só tem por fim lembrar o que mais queremos esquecer. A lição monumental não estava numa pintura sob encomenda, estava em processo em seus atos e suas ideias: 
"Frequentou a sociedade, e teve ainda outros amores. Mas a recordação permanente do primeiro [o de Madame Arnoux] tornava-os insípidos; e, depois, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, perdera-se. As suas ambições de espírito tinham igualmente diminuído. Passaram anos; ia suportando a ociosidade da inteligência e a inércia do coração." (429)
A recordação permanente do primeiro amor, monumento que só existe para ser esquecido, fez com que o desejo, as ambições do espírito, diminuíssem. Diminuíssem por serem inalcançáveis? Não, por serem demais para qualquer espírito, sonha-se muito alto, romantiza-se todas as ações, quer-se que grandes narrativas, narrativas heróicas, possam ser lembradas, mas a lembrança monumental, lembre-se, nasceu para ser esquecida. É aquele fato mínimo, minúsculo, ínfimo que por vezes relembramos todos os dias, não em forma de monumento, mas de processo. O processo que se elabora pela lembrança dos atos menores torna possível que possamos sentar no fim da existência, e tomar um chá com Deus (nestes momentos serve mesmo um amigo, ou mesmo um inimigo) e assistir ao crepúsculo do mundo e ainda poder conversar para de forma estranha e desnecessária resumir a vida:
"E [Frederico e Deslauriers, não único, mas insistente amigo de infância,] resumiram a vida de ambos.Os dois tinham falhado: [Frederico] que sonhara o amor , [Deslauriers] que sonhara o poder . Qual fora a razão?
- Foi talvez por não termos seguido a linha reta, - disse Frederico.
- Para ti, talvez. Eu, pelo contrário, pequei por excesso de retidão, sem levar em conta mil coisas secundárias, que são superiores a tudo. Eu, por excesso de lógica, tu, por excesso de sentimento." (436)
Seguindo em linha reta ou não, preferindo o amor ou o poder, ou um misto de tudo, ambos puderam concluir mesmo de que forma vacilante que: 

"- Foi afinal o que nós tivemos de melhor - disse Frederico.
- Sim, talvez. Foi o que nós tivemos de melhor - disse Deslauriers." (437)
O que aconteceu com cada uma das personagens, algo que permanece oculto por diversas razões, foi exatamente o melhor, não poderiam julgar de outra forma, insistentemente é-se quem é, alguns não querem ver, outros quando se permitem vislumbrar tal fato sentem-se chocados com a mais óbvia engrenagem do mundo, a si mesmo. Frederico, entretanto, teve seu momento de lucidez, o que faz afirmar sem um "talvez" que sim, foi o que melhor teve: "O rapaz reconheceu então o que a si próprio ocultara, a desilusão dos sentidos." (383) Desilusão que para ele se expressa, já que lhe foi determinado por Flaubert o caminho do amor, da seguinte forma sentenciosa: "Não valia a pena sofrer tanto por amores. Se um faltava, havia mais!" (363). Fato infalível é que Frederico não escolheu um só caminho, um único caminho foi escolhido neste mundo flaubertiano para ser narrado, mas tantos caminhos foram expressados, por vezes não só na figura da além-personagem de Fred, mas na figura e nas pequenas ações de tantas outras personagens, como na exemplar política da memória de Rosanette, que vimos logo no começo. Por fim, o que é a Educação Sentimental? Poderíamos acreditar que seria uma educação para a perversidade, ledo engano, no máximo a morte da inocência. Alguns críticos de Flaubert mostram que A Educação Sentimental seria o grande retorno de Flaubert ao Realismo, porém o ceticismo expresso na obra é o sentimento que movia a época, da mesma forma que o sentimento romântico também movia a mesma época, e não duvido que mova ainda alguns com os olhos e ouvidos mais ou menos atentos. A vida só poderia degenerar neste ceticismo, da mesma forma que em Machado de Assis com Brás Cubas e todas as suas negativas ou mesmo Dom Casmurro e sua necessidade confessional de culpar alguém por sua inocente juventude. O romântico pede perdão por viver antes mesmo de se matar, o realista quer enfrentar a vida como se lutasse contra ela. Eis como surge a necessidade da Educação Sentimental que se processa metodologicamente por cada desgosto que acontece na existência. E nós, filhos destes pensamentos extremos, até mesmo opostos, se lermos o realismo e o romantismo pelo senso-comum, Como devemos proceder? A Educação Sentimental nos bate a porta todos os dias enquanto acreditamos inocentemente no amanhã. A virtude de termos posse das duas visões só nos poderia fazer melhores, nem nos deixando cair num ceticismo, nem nos deixando iludir pela inocência. Mais um engano, poucos querem abrir os olhos e os ouvidos e assumir o deslocamento suplementar que as duas posturas poderiam nos fornecer. É ser nem romântico, nem realista, ou mesmo contemporâneo, como se isso fosse um valor, é ser humano por inteiro. O convite é permanecer com um olho aberto e o outro fechado, um ouvido entupido pelo senso-comum e o outro aberto para assinarmos discursos mais interessantes. O trabalho ou é abrir um olho ou fechar o outro. É deixar-se educar os sentimentos sem degenerar em ceticismo ou matar a inocência e permitir que seu fantasma continue a nos assombrar. É uma ética não extremista, é uma ética de e com deslocamentos que só se realiza pelo entendimento da multiplicidade de nós mesmos e de uma forma de resistência a toda e qualquer oposição determinante e/ou enclausurada. O livro de Flaubert narra, portanto, a Educação Sentimental de Fred? Não. Então, a educação de quem? A educação de todos nós. A nossa identificação com Fred nas mais diversas situações só mostra mais e mais que a literatura trata do humano, do profundamente humano.

O julgamento de Capitu ou "ler com" e "ler para"




Ezra Pound em seu ABC of reading me ensinou duas lições preciosas: ler com e ler para. Ele me convidou a assumir essa tarefa como professor de Língua Portuguesa, ou como professor simplesmente. Ler com os alunos é uma atitude encantatória: cria-se um momento propício para a leitura e neste momento os alunos ao me verem lendo ficam curiosos, querem saber, querem entender, quem imitar aquele ato. Levo grossos volumes para a sala de aula, e aqueles mais audaciosos que me veem arrancar o livro da mão para lerem o título do livro e o nome do autor, nomes aos quais muitas vezes não conseguem nem pronunciar, ficam com os olhos arregalados e tentados a quererem mais, dias desses Pride and Prejudice de Jane Austen estava circulando pela sala. E a lição mais preciosa: ler para os alunos. Sempre que estou a ler faço questão de iniciar a aula com o trecho ensaístico de algum romance ou uma poesia chocante ou sensual, quero mostrar-lhes o gozo que há na leitura. E sempre discutimos... questões relacionadas à gramática? Não, questões relacionadas ao existir. A literatura tem um pacto com a vida e não com a gramática. Propus-me, então um desafio: ler Dom Casmurro de Machado de Assis com os meus alunos no 9º Ano. "Este livro é chato", "tem palavras difíceis", "você não vai conseguir" foram alguns dos muitos argumentos (diria preconceitos) que tive que ouvir. Entretanto, não dei ouvidos, só somos uma grande orelha quando o que temos que escutar realmente tem sentido. Procedi a leitura lentamente, lendo performaticamente para cada um deles e ouvindo-os ler, tropeçando em palavras fora de uso (ou que foram esquecidas pelo uso demasiado prático da língua), esquecendo vírgulas, acentos, enfrentando a vergonha de ler para os colegas ou de ler sem fluência, mas também vi leitores vorazes que queriam ler a descrição de Escobar para poder apreciar em sua imaginação a singular beleza da personagem, ou mesmo rapazes que secretamente se apaixonaram por Capitu, por seus olhos, por sua sagacidade, alunos que escondiam os livros dentro da mochila para terminar aquela parte em casa ou saber o que viria a acontecer, que se impacientaram esperando o tão necessário beijo entre um penteado e outro, ou esperam o momento da duvidosa traição. Foram meses de trabalho, os alunos leram o livro sob os meus olhos, os que faltavam queriam saber o que perderam, exigiam-me um relatório dos últimos acontecimentos. Os preconceitos? Não sei onde foram parar, as palavras difíceis foram vencidas com perguntas ou com o dicionário, a chatice do livro é própria de um casmurro a tornar vivas as suas memórias. Lido o livro, convidei os alunos para o mais óbvia de todas as atividades: julgar Capitu. Seria ela inocente ou culpada das acusações? Não me importa, julgar Capitu era uma expressão que tinha o sentido deslocado em minha cabeça, significava: como este livro marcou aqueles muitos momentos em que estivemos lendo juntos, quais significados foram explorados, o que eles absorveram para si da experiência do outro. Não tinha necessidade de revelar meus segredos, minhas segundas intenções para os alunos ao propor a atividade. Por duas semanas a sala se dividiu como em uma guerra: os acusadores e os defensores. Folheavam o livro, procurando aquele trecho que construiria sua argumentação para o grande dia. Fizeram pesquisas na internet. Esconderam um dos outros o que estavam construindo. Para finalmente realizar uma acusação totalmente baseada no texto com seus argumentos mais contundentes ou uma defesa emocional apelando para os sentimentos mais íntimos dos jurados. Jamais esquecerei, ou não quero esquecer: os trechos lidos pela acusação ou as perguntas certeiras da defesa. Desta feita, a emoção ganhou da razão e Capitu foi inocentada. Desta feita, o "você não vai conseguir" se desfez como um castelo sobre a areia. Consegui conquistar todos os para a leitura? Não! a multiplicidade dos gostos não pode ser satisfeita, mas dos muitos que consegui agradar certamente marquei sua história de leitura. Não, minto. Machado de Assis conseguiu marcar sua história de leitura, da mesma forma que marcou a minha com Memórias Póstumas de Brás Cubas


(des)esperar


Desesperou. Já havia revirado todas as gavetas do quarto do tio. Uma por uma. Cuecas, meias e pequenos objetos foram jogados para cima e caíram sem destino, espalhados formavam um mosaico de uma pequena angústia. Procurava e se perguntava onde poderia estar... Resolveu olhar os bolsos das calças, paletós e não achou absolutamente nada do seu interessante, somente dinheiro, telefones anotados em pequenas folhas de papel e outros segredos que os homens guardam em seus armários. Passou para o maleiro, dezenas de caixas e objetos inúteis. Bufou enquanto tirava cada uma das caixas as quais destampava e virava sem dó, alguns dos objetos frágeis quebravam-se facilmente em contato com o chão, dando um ar mais agressivo ao mosaico angustiante. Destampou uma por uma até encontrar uma pequena caixa metálica, trancada por um cadeado miúdo. Torceu o cadeado, era deveras resistente, certamente estaria ali seu objeto de desejo. Chacoalhou-a ouviu secos ruídos metálicos se chocando. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. A chave provavelmente estaria no chaveiro do dono da caixa, pensou enquanto descia os dois lances da escadaria que separava os quartos da parte comum da casa. Não havia razão para seu tio levar o molho de chaves para pescar, seu pai o acompanhava e ele como dono da casa abriria e fecharia cada uma de suas portas. Na mesinha de centro ao lado do controle remoto estava o molho e as chaves da porta de seu escritório, da casa do amante, do armário da academia e algumas outras chaves que perderam sua função ao enfrentar o tempo e as intempéries da existência. Entretanto, por mais que o tempo enegrecesse as chaves sem função aparente, foi exatamente uma delas, a menor de todas que abriu a caixa metálica. Precisou utilizar as duas mãos para erguer a tampa como a criar um momento de suspense. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. Retirou com cuidado o frágil tesouro: uma pequena pistola .38. Abriu e rodou o tambor do mesmo modo que seu tio fazia quando queria se exibir. Preencheu lentamente cada espaço vazio com uma bala, agia a maneira de um ritual. Um ritual que encerraria de uma vez por todas com seu desespero.

Esperou. Com a arma carregada sentou-se no centro do tapete persa branco que dava para a porta principal da casa. Estava a espreita de sua vítima. Olhou o relógio pendurado em cima da porta. Era exatamente três horas da tarde. Não tardaria a chegar, podia até ouvir os ruídos que ele geralmente produzia. Pensou em quantas desilusões teve que enfrentar, quantas vezes desistiu de se formar, quantas vezes bebeu e arrependeu -se por não lembrar o que falou, quem beijou, o que dançou, quantas vezes teve que ouvir calado impropérios de seus familiares que só sabiam julgá-lo por cada passo, cada levantar de dedos, cada tossir, cada sorriso. O ruído ainda não era suficiente. A espera já estava deixando-o irritado. Sua mão tremia, já sentia que ele estava se aproximando. Lembrou-se de cada amor que teve ou que achou que teve, cada nome, cada rosto, cada sorriso, cada frase estúpida que teve que ouvir, cada submissão que teve que suportar por carência para não se ver sozinho novamente. Eram seus passos, seu trotar tamborilava em sua mente, era uma tortura. Sentiu-se uma bruxa na Inquisição, seus pés e mãos atados numa cadeira ornamentada, seu inquisidor abria o mecanismo que dispensaria em sua testa uma gota d'água a cada poucos segundos, no começo sentiria-se molhar, mas em poucos minutos a queda de cada gota pareceria uma martelada em sua cabeça. Mas ele não confessaria nada, suas memórias para si já eram recalcitrante o suficiente. Eram elas que precisavam ser caladas.

(Des)esperou. A vítima estava ali. Presente naquele mesmo tapete persa, sentado. Já falava alto, gesticulava para si mesmo, a arma balançava de um lado para o outro, os olhos seguiam cada movimento com medo. A espera valeu a pena, tudo para matar aquele que causava o desespero e calar aquelas vozes da memória. Apontou a arma para sua cabeça, destravou e sentiu o frio do gatilho. Ainda pode ouvir um último lampejo: o quanto se dedicara aos outros e esquecera de si mesmo. O estampido da bala brilhou. Nenhuma memória era ouvida naquele momento, seu corpo caiu e o buraco em sua cabeça jorrava sangue, matéria da memória que manchava o tapete. Finalmente, sua vítima não existia mais, seus memórias não o perturbariam mais. Seu tio nem se importaria com a bagunça do quarto, os objetos quebrados, os segredos revelados. O sobrinho estava morto, (des)esperou muito tempo, e finalmente ele estava morto e toda a memória estava silenciada.

Líquens, Musgos e Gosma


A porta de seu quarto sempre estava fechada. Mas algumas batidinhas secas e ritmadas nunca deixavam de perturbar o peso natural que se arranjava ali dentro. Já era possível ouvir alguns passos como a caminhar sobre uma grama espessa, e por fim o destrancar da porta. A luminária não era suficiente para manter o quarto iluminado, permanecia numa penumbra insistente. "Meu filho, abra essa janela para ventilar um pouco o quarto! E me passe sua roupa suja, agora!" Os olhos do rapaz não se sobresaltaram, simplesmente se ergueram a altura do rosto da mãe para novamente visar o chão. Quando ele se voltou para buscar suas roupas, ela deu uma olhada perscrutadora pelo quarto. A quase-escuridão não permitia distinguir uma sombra da outra, mas tudo estava lá. Sob os pés da cama, raminhos de uma grama escura. O guarda-roupa marrom estava manchado pela presença de líquens de variados tons de verde. Sob sua mesa de estudos, o canto mais escuro do quarto, foi onde ela se assustou, conseguia somente distinguir um par de olhos fendados. Entretanto, não teve tempo para expressar seu choque, as roupas já estavam ali, meio úmidas, meio mofadas. "Vou limpar seu quarto mais tarde!" O aviso teve um tom de ameaça.
Ele não entendia essa mania de limpeza de sua mãe. A casa tão alva, com as paredes brancas, o piso reluzente, e os móveis todos em tons pastéis davam um ar pasmacento para o lar. Ele não se importava a ponto de reclamar... Passava quase todo o tempo dentro do quarto. Ali, sim, era onde reinava soberano. Com a porta e as janelas fechadas e tapadas pelas grossas cortinas de jacquard, não havia necessidade de luz, o ambiente não deveria ser fresco, mas soturno. O peso que a falta de luz produz é exatamente o necessário para que ele pudesse criar. Era tal qual um musgo, muita luz e muita ventilação retiravam dele a força necessária para viver, absorviam toda a sua energia e murchava.
Nas últimas férias de verão praticamente definhou tamanha a luz e a força da brisa marítima. Deitava-se na areia todo emplastrado de filtro solar e demorria horas a fio. Sua mãe o chacoalhava, sem êxito, até que ele mesmo poucos segundos antes da morte, reanimava-se a corria para dentro do quarto do hotel, um banho gelado e o pouco contato com seus familiares o recuperavam. É claro, até descobrir o mangue que havia não tão distante dali. Em meio a lama e a sombra das árvores sentiu-se a salvo, poderia viver ali por decênios sem precisar de ar ou até mesmo comida. O cheiro mórbido era capaz de mantê-lo inteiro e existindo. Suas ideias nunca fluiram tão bem quanto naquele lugar. Entretanto, as férias sempre um dia terminam e teve que voltar para sua casa fluida e leve.
Sem sua energia formada pela fusão de fungos e algas não poderia pensar ou criar. Seus pensamentos ansiavam pela simbiose de organismos diferentes para poder gerar algo novo e que realmente se suplementasse. Era o que sua mãe não entendia. A cada limpeza do quarto era como se todas as ideias fossem embora, novamente precisando ser incubadas por um longo tempo, sorvendo a rala força da escuridão e absorvendo aos poucos a umidade da atmosfera por vezes rarefeita.
Os dedos de sua mãe tremilicaram antes de tocar o interruptor de luz, ante a ansiedade de ver tudo aquilo sob a luz mesmo que artificial. Seria o que garantiria a ela a entrada no quarto para poder alcançar as janelas. Onde estariam aqueles olhos fendados? A cortina cedeu não sem resistência, e o ambiente parecia violentado por uma vontade indiscreta. Alguns musgos e líquens se desfizeram como um toque de mágica pelos raios solares. A cabeça dele parecia esvaziar. Vassoura, balde, rodo e pano. As mãos trabalharam com uma urgência indeterminada. Era necessário livrar-se daquele ar tóxico que com certeza não faria bem ao seu filho, aquela ausência de vida era o que tornava-o apático e desmotivado. Finalmente, embaixo da cama era o único lugar em que seu pano purificador ainda não tinha tocado. A luz hostil da janela ou da lâmpada insistentemente não atingia ali, mas a vassoura e o rodo tinham um longo cabo para esse tipo de serviço.  O vassoura penetrou embaixo da cama como se estivesse furando uma gelatina, ela não estranhou, pensou na resistência da escuridão. Todavia, na terceira ou quarta estocada contra a escuridão, a vassoura não queria voltar. Puxou com muita força, força esta que somente certas mães possuem, mas mesmo assim perdeu a vassoura na escuridão. Invencível, ela não desistiu, pegou o rodo, encharcou o pano com desinfetante e voltou ao seu trabalho, desta vez o rodo voltou sem sua base, o cabo havia sido mordido por dentes fortes e afiados.
Corada, resolveu ajoelhar-se há uma certa distância para entender o que se passava embaixo daquela cama. Apertou os olhos como se aquilo torna-se sua visão mais aguçada e empalideceu, ali estavam os olhos fendados e um sorriso mórbido de boas-vindas. Muda, entendeu o que se passava ali. Pegou o resto de seu rodo, sua vassoura e o balde e seguiu para a enorme lixeira da área de serviço. Estava decretada a Era dos Línquens, Musgos e Gosma. A falta de vida no quarto de seu filho era aparente, ali reinava um mundo não novo, mas diferente de ideias que ela aprendeu a admirar, a vida do lodo, a existência a partir dos gases tóxicos. Fungos e algas agora se uniam no meio da sala-de-estar formando desenhos indistintos, da mesma forma que mãe e filho agora formavam um único simbionte criativo. Novos pensamentos circulavam pela sala juntamente com aquele ar úmido e pesado.

A senhora Hermann e vovô já em travessura.

[revisto em fevereiro de 2013]

Seu nome ecoava por todo o casarão, dois pisos vibravam ao som da voz do vovô Hermann. O grito cadavérico e rouco não perturbavam os bem treinados ouvidos da senhora Hermann, suas mãos não tremiam ao ouvir seu nome, continuavam a tricotar levemente, como se nada houvesse acontecido. A casa demovia-se, ainda não havia se acostumado com a presença inóspita do morador. Terminada aquela volta no trabalho delicado que suas mãos finas realizavam, juntou a linha com a agulha e depositou-as na cesta ao lado de sua confortável poltrona. Levantou-se levemente, com as mãos espalmadas retirou os fiapos de seu vestido etério e seguiu pelas escadas um degrau de cada vez em direção ao quarto de seu pai. Quando seus passos foram ouvidos no assoalho, novamente o grito ecoara. "Não vê que se eu estivesse morrendo, teria somente encontrado um cadáver inerte?" Qualquer desculpa aos seus ouvidos não surtiriam efeito, desde que deitara naquela cama, o mundo passou a girar em torno dele e por mais que os filhos da senhora Hermann lhe houvesse pedido para contratar um enfermeira para vovô, ela não se importava de realizar aquele serviço, acostumada com as intempéries de seu caráter, não tinha motivos para desgastar seus filhos. As suas reclamações pararam de surtir efeito: "O que deseja, vovô?" aquelas palavras saíam de forma cantante de seus lábios enquanto suas mãos abriam as pesadas cortinas do quarto pela primeira vez naquele dia. "Tenho noventa e oito anos e já não posso mais levantar desta imunda cama que agora é minha mortalha..." Olhou para o lado direito, enquanto tentava lembrar o que desejava, viu seu livro, um copo d'água, seus óculos e uma xícara de chá vazia. "Traga meus remédios, já passou da hora. Lembra-se que dr. Andrade disse-nos que meus remédios não podem esperar, precisam ser ministrados exatamente nas horas determinadas!" Hermann olhava a filha como se ela fosse uma pessoa leviana, que preferia vê-lo morto do que atender ao pedido de um moribundo. A senhora riu, muito solícita, e desceu as escadas lentamente. No balcão da cozinha havia uma lista de remédios e seus respectivos horários, olhou o relógio de pulso, apreciou o ponteiro dos segundos deslizar lentamente realizando uma volta completa em si mesmo. O tempo era exatamente daquela forma, por mais que se movesse, sempre voltava ao mesmo ponto de partida. O relógio não demarcava que o tempo avançava, mas demonstrava sinceramente como todos os segundos eram exatamente iguais. Selecionou os comprimidos colocou-os num pires, arrumou uma bandeja com uma garrafa e um copo. Levou-a sem pressa até o quarto do pai. O quarto estava escuro. Depositou a bandeja no criado-mudo e novamente abriu a cortina, sem repreensão ou interesse. "Preferiria morrer a dar-te todo esse trabalho, sabes muito bem disso? Não é, minha querida?" Virou o rosto em direção ao velhinho que tomava uma pílula atrás da outra. Ele a olhou de soslaio, vendo seu sorriso que não parecia forçado, corou. "Não se esqueça de trazer-me o jornal quando subir novamente, no próximo horário dos medicamentos", novamente desceu sem pressa. Desta vez seguiu para a biblioteca, olhou os livros como se perscrutasse fantasmas. Arrepiou-se. Escolheu um grosso volume de capa dura e sentou-se. Folheou as páginas e parou na presença do capítulo XXXI, leu o primeiro parágrafo e sorriu. Sim, ele a abraçava, com uma força necessária, os dois estavam ainda por testar o amor que sentiam um pelo outro. Tudo é muito leve no começo de um relacionamento, pensava cada um deles, ao mesmo tempo que gostariam que pudessem afirmar que o outro realmente o amava da forma que distribuía seu próprio amor. Ela riu, o livro agora era como um escudo pousado em sua barriga, e o escudo se chacoalhava ao sabor da leve gargalhada. Suspirou, parecia cansada de rir da desnecessária preocupação das jovens personagens, continuou a leitura e suspirou mais uma vez, agora sim, cada um tinha a certeza absoluta do amor que um nutria pelo outro. Sentiu-se feliz por um instante, todas as preocupações se foram, enquanto eles se beijavam em entrega total. Viu-se com quinze anos novamente, vovô Hermann era um homem altivo e impunha presença, todos os rapazes da rua morriam de medo de serem estrangulados por aquelas mãos pesadas e grandes. O poder do olhar de vovô poderia matar um pequeno bem-te-vi em milésimos de segundos, dizia os boatos na rua. Já que nenhum deles tinha coragem de lhe falar, era a senhorita Hermann que andava pelas ruas aos risinhos para encantá-los com seu caminhar diáfano. Mas a presença diabólica de seu pai precedia seu trotar pelas calçadas e todos os rapazes se escondiam de sua beleza exultante... Sorriu amargamente, todos eles se casaram e se foram. A palavra beijo, namoro ou casamento eram proibidas dentro da casa dos Hermann, tabu especial que só poderia ser resolvido dentro dos quartos aos cochichos, assim se casou sem saber com quem exatamente estava se unindo... a única certeza que tinha era que... seu nome ressoava novamente pela casa, cada livro tremia com as vibrações do grito do vovô Hermann. Sorriu enquanto subia, o quarto novamente escurecido foi iluminado pela reabertura das cortinas. "Quero que reúna seus filhos, preciso ter com eles antes de deixar essa vida amargurada que passo ao teu lado", ela não se abalou, "Sinto-me um fantasma nesta casa, preciso arrastar correntes para poder ser percebido e merecer tua atenção." Da última vez que havia dito aquela frase, complementou dizendo que sentia que sua morte seria tal como um exorcismo na mente de sua descuidada filha, visto que o velho fantasma desapareceria de vez. Garantiu também, que ela não herdaria absolutamente nada, tudo passaria às mãos dos netos, estes sim, saberiam o valor que aquele velho possuía e utilizariam cada centavo de sua fortuna com perspicácia, sem romantismos ou pensamentos comunistas. "As duas personagens ainda se amarão ternamente por mais dois ou três capítulos? Não lembro..." era o que pensava enquanto dizia que ligaria para seus filhos, convidando-os a jantar: "Celebram a minha morte! Não ouviu que quero vê-los porque sinto que estou partindo?" Enquanto resmungava outras palavras já ininteligíveis aos ouvidos da senhora Hermann, descia as escadas e pegara sua agenda telefônica, procedeu como sempre, ligou primeiro para o filho mais velho e seguiu até ouvir a voz do caçula. Reaberto o livro, leu em voz alta mais dois capítulos, entregou-se àquele amor incondicional que somente os jovens poderiam viver. Lembrou-se da única certeza que abandonara nos últimos capítulos: o noivo que se atrevesse a casar-se com a senhorita Hermann ou era muito corajoso ou muito medroso. Realmente não sabia se seu defunto marido havia pedido sua mão em casamento ou se ela por inteira teria sido oferecida num bazar qualquer de alcoviteiras. Riu-se, mais uma vez, o jovem casal já se despedaçava em desesperanças com a paixão que morria no último capítulo. Uma frase mordaz dita pela mulher ao amado encerrava a obra, pensou que poderia ter repetido o mesmo dito ao seu próprio marido se ele houvesse retornado da guerra... Mas não teve a oportunidade, ele não tinha a presença de seu pai que vencera tantas guerras, principalmente aquela guerra que levou sua mãe ao suicídio. Tinha certeza que a carta endereçada ao pai ainda palpitava em alguma caixa escondida no cofre atrás do retrato da mãe que ainda hipnotizava-a. "Seus netos estão a caminho, e não ficam para o jantar" dizia enquanto abria as cortinas mais uma vez, "Não será hoje que celebraremos a morte, quem sabe na semana que vêm? Ou mesmo daqui a cinco anos?"

A morte da morte

"Não sou sábio nem ignorante. Conheci alegrias. Isso não diz muita coisa: vivo, e a vida me dá um enorme prazer. Quanto à morte? Quando morrer (talvez daqui a pouco), conhecerei um prazer imenso. Não falo do antegosto da morte que é insípido e frequentemente desagradável. Sofrer é embrutecedor. Mas esta é a verdade notável da qual estou seguro: experimento um prazer sem limites em viver e terei uma satisfação sem limites em morrer. (Maurice Blanchot)


Ivan Ilitch morre na primeira página da obra de 1886 de Lev Tostói. Entretanto, a narrativa não morreu com ele, ela nasceu. As narrativas se escrevem sob o corpo morto. Seja esse o corpo da página em branco, seja esse corpo o de Ivan Ilitch, ou seja o nosso corpo quando escrevemos nossas memórias. A narrativa deve ter tido o mesmo pensamento que todos aqueles que trabalhavam com Ivan Ilitch: "Aí está, morreu; e eu não' - pensou ou sentiu cada um" (TOLSTOI, 2006, p. 9), esta é, geralmente, a primeira impressão quando alguém não muito próximo morre. Pode-se negar, numa fingida misericórdia cristã, mas os instintos humanos nos levam até esse momento, o humano que há em cada um faz com que pense inconscientemente na preservação da própria vida em primeiro lugar. Porém, a narrativa não tem esses escrúpulos cristãos sobre a morte, realmente pensou: ele morreu e eu não. E a partir desse pensamento, passou a refletir nesse interdito que a morte se tornou, por vários motivos que não merecem ser enumerados de tão pequenos e mesquinhos que são. Os amigos reunidos de Ivan Ilitch em torno da notícia de sua morte começaram a pensar no futuro, nas promoções que a morte de um juiz, como o personagem principal, poderiam causar. A narrativa, entretanto,  não olhou para o futuro, olhou para o passado. "Quanto mais voltava para trás, mais vida havia". (TOLSTOI, 2006,  p. 70). E a narrativa estava interessada na vida. E nos trouxe ao ouvido a história de Ivan Ilitch. Como chegou ao momento que chegou, o que teve que sofrer e fazer sofrer para poder ser quem era, ter o que tinha e pensar o que pensava. Ivan Ilitch como qualquer ser humano estava mais interessado no futuro do que no presente, construiu uma carreira, lutou por ela ao lado de uma mulher que não amava, visto que seu casamento foi um cômodo negócio. Mas o que Ivan Ilitch não esperava era ser surpreendido pelo presente. Sua doença, um tormento impossível de ser identificado, fez com que seus pensamentos se voltassem para o presente, o futuro deixou de existir, e o passado teve que ser repensado, repisado:
"Assim como os tormentos se tornam cada vez piores também toda a vida se tornava cada vez pior" - pensou ele. Havia um ponto luminoso alhures, atrás, no começo da vida, e depois tudo se tornava cada vez mais negro e cada vez mais rápido. "Na razão inversa dos quadrados da distância para a morte" - pensou Ivan Ilitch. (TOLSTOI, 2006, p. 70)
A presença do presente teve duas damas de compainha, no caso de Ivan Ilitch: a Memória e a Morte. Aquela sempre morta, esta sempre por morrer. A memória geralmente é convidada por aqueles que reconhecem a proximidade da morte, muitas vezes é uma "eterna" companheira daqueles que já alcançaram a velhice. Não era o caso de Ivan Ilitch, ele tinha outra companheira: a Morte. Por mais que todos ao seu redor negassem sua presença, ele sabia que ela estava ali, proporcionando-lhe um dos momentos mais lúcidos de sua vida. Por isso poderia dizer livremente que não morrer era uma "mentira por algum motivo aceita por todos" (TOLSTOI, 2006, p. 55). É uma esperança, uma ilusão que alimenta a todos, não por um motivo incerto: mas pelo simples motivo de que enfrentar a morte não faz parte da educação do homem, pelo contrário, ele é preparado todos os dias para sofrer com a morte e fugir dela, e desse sofrimento obter mais e mais repressões que o farão uma pequena miséria humana quando precisar enfrentar sua própria morte. Por outro lado, há alguns homens que não são assim, e no caso de Ivan Ilitch era Guerássim. Um homem simples, com um pensamento simples: "Todos nós vamos morrer. Por que não me esforçar um pouco?" (TOLSTOI, 2006, p. 56). São das cabeças dita menores, das cabeças falsamente simplórias que algumas importantes lições aparecem. Sempre me lembro das perguntas de Macabéia em A hora da estrela de Clarice Lispector ou mesmo dos monólogos interiores dos personagens de Vidas Secas de Graciliano Ramos, principalmente do filho mais novo, do filho mais velho e da cachorra Baleia. Todos ao redor de Ivan Ilitch acreditavam em uma mentira, Guerássim não, compreendia e solidariezavasse com o moribundo: todos nós vamos morrer. Exatamente por este fato Ivan Ilitich preferia a vitalidade, a força e a saúde de Guerássim e não dos outros personagens. A vitalidade daquele que se agarra a vida é uma afronta ao moribundo, aquele que já tem como companhia a Memória e a Morte:
[...] E, fato estranho, teve a impressão de sentir-se melhor enquanto Guerássim segurava-lhes os pés. A partir de então, Ivan Ilitch chavama às vezes Guerássim, fazendo-o segurar os seus pés sobre os ombros, e gostava de conversar com ele. Guerássem fazia isto com leveza, de bom grado, com simplicidade e uma bondade que deixava Ivan Ilitch comovido. A saúde, a força, a vitalidade de todas as demais pessoas ofendiam Ivan Ilitch; somente a força e a vitalidade de Guerássim não o entristecia, e sim acalmavam-no. (TOLSTOI, 2006, p. 55)
Guerássim é uma vitalidade acalmante. Um sopro de vida para aquele que tem a Morte como companhia, mas a morte é certa, já está lá, e fala com ele:
- Acabou! - disse alguém por cima dele. Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. "A morte acabou - disse a si mesmo. - Não existe mais. Aspirou o ar, deteve-se em meio suspiro, inteirou-se e morreu. (TOLSTOI, 2006, p. 76)
As últimas linhas da obra são o momento de maior lucidez de Ivan Ilitch. A Morte acabou, deixou de existir no momento que Ivan Ilitch também deixou de existir. É aí que a narrativa termina, novamente com os olhos no presente. É aí que as pessoas vão pensar no futuro. É aí que começa a minha dúvida: a morte da morte. Jacques Derrida nos ensina que a morte não pode ser um interdito, visto que é somente pela existência da morte que a vida possui algum sentido. "Convém pensar no porvir, ou seja, na vida. Ou seja, na morte" (DERRIDA, 1994, p. 154). É na diferença entre a vida e a morte que a vida ganha sentido, para tanto ele passa a utilizar uma expressão como uma palavra com esse sentido: a vida a morte. O que A morte de Ivan Ilitch provoca é a ruptura/efração desse pensamento, se a morte acaba, deixa de existir, a única coisa que poderia dar um significado para a vida, faz com que ela deixe de ter sentido. A vida volta para o estado original da dúvida. Por que vivemos? Para que vivemos? A não educação para a morte faz do ser humano um ser agarrado ilusóriamente a vida, por mais que ela seja um estado de dúvida não passível de resolução. A vida como dúvida, faz com que o homem pense e reflita os seus atos, faz com que aja de maneira completamente diferente do animal que procurou se diferenciar. Portanto, é a morte que faz com que a literatura seja, que a arte e a filosofia, cada uma com sua linguagem, continuem intermináveis. Resolver a significação da vida pela morte, a vida a morte, não nos conforta, e nem confortou Derrida: "Seria preciso sempre que mortais ainda vivos enterrassem vivos já mortos" (DERRIDA, 1994, p. 156). Para encerrar, ainda sem um ponto final, concluo que a manutenção da vida como dúvida pela morte da morte rompe com uma conformidade com a ilusão. Iludidos seguimos agarrados a vida, quando duvidamos da vida nos desgarramos daquilo que mantém o ser humano preso a certas ilusões conformistas. A ruptura que A morte de Ivan Ilitch causou nas minhas certezas sobre a vida é só o começo de um pensamento diferente sobre a vida, que não termina aqui e nem poderia. É um primeiro trauma/efração nas estruturas que pareciam sólidas. É a dúvida o que se segue, e é o que me coloca em movimento, caminhando novamente.

Referências

DERRIDA, Jacques. O Espectro de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional (trad. Anamaria Skinner). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
TOLSTOI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. (trad. Boris Schaiderman). São Paulo, Editora 34, 2006. (Coleção Leste)