O livro que não se fecha

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para Tânia e Felipe

"Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que possso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis." (Fernando Pessoa em Livro do Desassossego)

Certa vez Derrida ensinou-me que na literatura há livros que não se fecham por sua significação ser inesgotável. Portanto, fechar um livro é declarar sua morte, pois já significou tudo o que precisava. Há livros que são simplistas em sua significação e morrem junto com a leitura de sua última linha, porém, outros já perduram em significação e seguem abertos mesmo que guardados nas prateleiras e continuam a demover o leitor em suas futuras leituras e em sua vida-morte.

Quando meus olhos atingiram o ponto final do Livro do Desassossego simplesmente não o consegui fechar. Suas palavras eram maiores do que o próprio papel e permaneciam com suas pontas para fora da edição. Queriam sair correndo e sussurar tudo o que são e ficariam roucas pois nunca conseguiriam terminar de dizer o que significam. Não concebo dizer que o terminei de ler, só estou apto a dizer: ler-lo-ei até que meus olhos se fechem e o meu livro da morte seja finalmente escrito. Ele não voltará para a prateleira, como fiz com todos os outros, morará aberto na cabeceira da minha cama, como a proteger meus pensamento e guiá-los, assim como fazem os livros religiosos. Sua luz, mesmo que pálida, afastará todo e qualquer gênio simplório e seu espectro...

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O Livro do Desassossego é o livro perfeito. Por ser fragmentário e assincrônico, por Pessoa não ser seu autor, por Bernardo Soares não existir, por nunca ter sido publicado. Encontrado entre outras anotações foi reunido e assim apresentado de acordo com a vontade de seu organizador, mas mesmo se isso não tivesse acontecido, continuaria sendo o que é. "É-se" e ponto final, economizando quarenta sentenças de filosofia.

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Já derramei lágrimas sinceras em muitos livros, mas este é o livro que me toca profundamente, é o dedo em riste de Pessoa que perfura meu peito e atinge meu coração e desfaz todo o gelo que ali cresceu nos últimos anos, e desfaz tudo o que ali estava encrustado, é uma culpa que se fez menor, pois nunca um livro havia me provado que o que sinto era também humano.

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Poderia citar diversos trechos do Livro, mas faria exatamente como a Rainha que desejava um mapa de seu reino: o cartógrafo o fez repetidamente, cada vez maiores e com mais detalhes e sem sucesso. Somente um poderia dar conta de seu desejo: um que fosse exatamente do mesmo tamanho de seu reino e que mostraria com todos os detalhes cada uma das flores de todos os bosques.

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Hoje durmo mais tranquilo, conquistei um mundo inesgotável.

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