A última gota de inspiração

A narrativa abaixo trata-se de uma atividade realizada no ano de 2013 com meus alunos do 8º Ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Etalívio Pereira Martins: após a leitura de diversos contos propus aos alunos que escrevessem um, para tanto, elaboramos um quadro com todos os elementos da estrutura da narrativa que deveria ser preenchido para servir como guia para a escritura, desmistificando o fato de um escritor basear seu trabalho apenas na inspiração. Assim, o conto que se segue foi escrito por mim, mas todos os elementos foram escolhidos pela turma como um exemplo de como preencher o referido quadro.


"Sejam realistas, exijam o impossível!" Era a frase de maio que ficou guardada na minha cabeça. Era de maio, mas só a vi em junho, as boas notícias não chegavam tão fácilmente como as notícias deles, era muito simples manipular tudo e manter as pessoas dentro dos limites desejados quando todos os meios estavam sob seu controle. Mas eu não gostava de limites.
Havia me casado com Bruna porque era isso que fazíamos: nos associávamos para manter a aparência de pessoas normais para podermos seguir em frente e sermos mais confiáveis. Porém, Bruna era exatamente como eu, uma cabeça livre e libertos fazíamos o que queríamos. O tempo passou e eles não tiveram misericórdia dela. Não sei para qual país foi mandada, nunca mais a vi depois de anunciarem sua prisão e expulsão do país.
Minha ligação com a realidade, depois disso, eram Diego e Viviane. Ela logo caiu de amores por mim. Bruna deve ter mencionado milagres que somente eu era capaz de fazer. Diverti-me um pouco com ela, mas não era com ela que eu me divertia. Eram minhas palavras preto no branco que punham sorrisos na minha cara.
E foram minha palavras que os trouxe até mim, primeiro Viviane e seus interesses alheios a causa, depois Diego que de certa forma me inspirava. O desejo se ligava com a vontade de ser livre e ele me inspirava a liberdade. Era na casa deles que nos reuníamos uma vez por mês para podermos traçar novos planos e saber das notícias. Foi ali que vi a foto de maio e a frase do impossível, senti que era uma guia para minha vida. Seria a bengala a qual apoiaria minha existência.
Viviane, amante do perigo, me encontrava uma vez por semana, a guisa de me deixar informado de assuntos importantes para nossa causa, mas era óbvio que estava ali por mim e pelo o que eu poderia oferecer para ela. E eu só a deixava estar ao meu lado porque me sentia como ele, dono de um poder que eu desejava sobre mim.
A linha dura de Costa e Silva não me intimou, continuei realizando e escrevendo, informando aos desinformados, sentia-me naquela época um espécie de salvador que seria coroado mais cedo ou mais tarde. É uma marda, mas já fazem mais de vinte e seis anos que retornei ao Brasil e a coroa ainda não me foi entregue pelos Correios. 
Era sexta-feira na casa de Diego e Viviane. Alguns companheiros estavam reunidos, outros já não estavam entre nós, presos ou deportados, presentearam-nos com sua ausência e só lhe devolvíamos saudades, muitos outros já não apareciam por medo, temiam pelo mesmo destino. E eu? Eu já não tinha muito o que perder, minha prisão já havia sido anunciada, só precisava de mais um pouco de inspiração. Viviane, amante do perigo, gostava da ideia de ter um procurado pela polícia militar em sua residência. Diego olhava-me e era como se meu pulmão se enchesse de coragem, seus olhos transmitiam-me o poder de não ceder sem lutar.
Somente fui a mais aquela reunião porque sabia que iria encontrá-lo ali, a visão dele seria meu consolo em todos os anos que eu poderia passar na cadeia, seria o meu pão enquanto eu tivesse fome em qualquer rua de qualquer país desse mundo que aceitasse um revoltado político, um bastardo da nação brasileira. Sim, ele me inspirou. Quando pisei em solo brasileiro depois de todos os arrependimentos nacionais, foi ele quem eu primeiro procurei e foi o único que não achei... Destino incerto. Teria sido preso? Torturado? Morto em um calabouço escuro? Não sei, enquanto não se abrem os arquivos humilhantes, vou seguindo inspirado pela última imagem que tive dele.
A polícia bateu a porta, Diego a abriu acreditando ser mais um dos nossos, Viviane pegou em meu joelho marcando nosso próximo encontro. As vozes de comando invadiram corredores, quartos, salas. Possuíram livros, cadernos e jornais espalhados pelos cômodos, elas não perderam suas forças quando foram queimadas na praça defronte a casa de Diego. Eu não perdi minhas forças quando fui algemado, somente senti uma mão amiga sobre meu ombro. Diego foi a última coisa boa que vi depois daquele momento. O que se passou depois daquilo não interessa a ninguém. Penso que as vezes nem eu me lembro, pois só pensava nele, inspiração.
Ele sumiu, toda a nossa coragem também, o povo tomou o poder, por mais que eu fosse realista, o impossível não se realizou. Muitas vezes penso que hoje nós brincamos de satisfação democrática, que o tempo que passei fora foi somente uma estadia no paraíso das ideias. Acredito que me conformei com o mínimo de realidade possível. Acredito que acabei como Viviane, apaixonado pelo perigo. Acredito que acabei como os outros, guiado pelo medo. Temos o país que merecemos. Silêncio.

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