O curta Eu não quero voltar sozinho (2010) (link) de Daniel Ribeiro é de uma delicadeza comparável a do livro póstumo de Edward Morgan Forster, Maurice (1971, mas escrito entre 1913-14) . A naturalidade com que um homem pode amar outro presente no livro é explorada delicada e diferentemente pelo curta-metragem de Ribeiro. Maurice apaixona-se naturalmente por Clive, apesar dele ter de assumir seus compromissos sociais como nobre, e depois este amor será finalmente vivido e explorado por Scudder com seus encontros e desencontros naturais a qualquer espécie de amor, e do amor de pessoas de diferentes classes sociais. Leonardo apaixona-se naturalmente por Gabriel da mesma maneira. Pórem, o curta não deve nada ao livro, visto que explora outras questões estéticas que envolvem a relação homoafetiva. Leonardo não pertence a uma classe social diferente de Gabriel, os jovens possuem um outro entrave: a deficiência visual de Leonardo. Por ser cego, sua percepção do mundo é diferenciada, baseada na voz e no toque. E é exatamente a voz de Gabriel que lhe desperta a atenção na sala de aula, onde ocorre grande parte das cenas, é o toque de Leonardo ao tentar ensinar o colega de classe a ler o braille em sua casa, o outro grande cenário do curta, que aproxima os dois olhares, as duas percepções diferentes do mundo.
Tanto o curta quanto o livro nos mostram uma única questão: a naturalidade com que os iguais em gênero podem se amar. A questão era tabu no início do século XX, Forster nunca publicou seu livro em vida, da mesma maneira que Andre Gidé vai demorar anos e procurar a aprovação dos amigos para publicar Córidon, inigualável defesa via um diálogo socrático da naturalidade do amor homoafetivo:
[...] Compreenda-me: a homossexualidade, tanto como a heterossexualidade, comporta todos os graus, todos os matizes: do platonismo à salacidade, da abnegação ao sadismo, da saúde jovial à tristeza acabrunhada, da simples expansão a todos os refinamentos do vício. A inversão é apenas um anexo. Ademais, existem todos os estados intermediários entre a homossexualidade exclusiva e a heterossexualidade exclusiva. Mas, de ordinário, trata-se apenas de opor ao amor normal um amor reputado contra a natureza - e, para mais comodidade, coloca-se toda a alegria, toda a paixão nobre ou trágica, toda a beleza do gesto e do espírito de um lado; do outro, não sei que refúgio enlameado do amor... (GIDE, Andre. Córidon (trad. Hamilcar de Garcia). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 29)
Qual a diferença entre o início do século XX e o início do nosso século? O entendimento da diferença. Da diferença que existe entre gêneros, as raças, as condições sociais, intelectuais e religiosas. Entretanto, entendimento não significa aceitação. As minorias forçaram a sua voz durante todo o pós-guerra e o que foi silenciado agora é audível, novos e diferentes discursos constroem a história da humanidade. A presença da mulher, do negro, do homossexual, do migrante é entendida, mas o sexismo, o racismo, a homofobia e a xenofobia não acabaram. São entendidos, ouvidos, mas não são aceitos. A falta de entendimento não permitiu a publicação dos livros de Foster e Gidé, mas é o entendimento que permitiu a reprodução imediata do curta de Ribeiro. O diferente ganhou voz, mas ainda não é tocado. É a virtude de Leonardo, cego, somente percebe a voz e o toque, toque que realiza não somente em Gabriel, mas em todos os objetos que estão a sua volta, delicada e sensivelmente. Toque que deve-se aprender, deve-se aceitar.
O que não é natural é a maneira como os discursos das minorias foram inseridos nas discussões. Eles foram enfiados ouvido adentro naqueles que se queriam surdos para a diferença, sendo que a virtude é ser cego, sensível à voz e ao toque. Violentamente as mulheres ganharam seu espaço, mas não o respeito, a diferença entre homens e mulheres ainda existem; os negros entraram na discussão escolar e na história do Brasil, mas a dívida histórica continua; o homossexual ganhou um novo significado, por muitas vezes chistoso, veja-se as novelas televisivas brasieliras. Entretanto, depois de anos discursivos violentos temos em nossas mãos, disponível ao toque, este curta, onde a delicadeza e a leveza do tratamento do tema faz com que seja possível que se desmanche entre nossos dedos se não for apreciado com o cuidado que merece.
A naturalidade que estou defendendo não é a naturalização das relações das minorias. Pelo contrário, é na diferença, no embate da diferença que novos e produtivos significados surgem, a aceitação não é processo fácil, nem mesmo o entendimento ainda foi processado de maneira completa. Se um dia a minoria for naturalizada, teremos um novo problema: o fim da diferença. Sendo que o processo que se iniciou no pós-guerra (e anteriormente, é claro que esta discussão não aconteceu somente neste momento, mas se tornou algo relevante ali, pelo menos para esta elaboração) do embate das diferenças não tem por fim a naturalização dos significados, e sim que os significados permaneçam múltiplos. Uma sociedade que tende a simplificar os significados só fazem riscá-los dos dicionários, sendo que o necessário é suplementar mais e mais, que seja preciso uma página inteira para explicar uma única entrada de uma palavra no dicionário, mas que exista entendimento e aceitação da diferença.
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