Ora a linguagem encrática (aquela que se produz e se difunde sob a proteção do poder) é por estatuto uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o desporto, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, muitas vezes a mesmas palavras - o estereótipo é um facto político, a figura maior da ideologia. (Roland Bartes em O prazer do texto)A sociedade cria dentro de seu próprio corpo mecanismos geradores de bem estar, como forma de controle social, o qual quero chamar de máquinas da felicidade.A discussão do que vem a ser felicidade está em pauta em diversos países como bem mostra o Le monde diplomatique Brasil numa reportagem de Mariana Fonseca intitulada "Por um mundo mais feliz" na edição de janeiro de 2011. Segundo a repórter o Brasil está aprovando a inclusão de mais um direito à constituição brasileira: o da busca da felicidade. O Espírito Positivo que tanto influenciou as nascentes sociedades organizadas indo contra todo e qualquer racionalismo ou idealismo buscou nos dados concretos realizar uma certa felicidade calculada. Mas para além do conceito positivista, o qual não quero nem elogiar ou criticar, tem-se outros "positivismos" anteriores a própria noção de Comte, se ele buscava a ciência como modo de organização do pensamento, a religião buscou a divindade, a universidade a contenção e apropriação do conhecimento, não como um todo, mas com o academicismo petrificado, para ficar somente com estas três máquinas da felicidade. A ciência, a religião e a universidade são reguladores e controles sociais que geram dentro de si um ideal utópico de organização ao mesmo tempo que geram a sua própria autodestruição, é a tese que quero sustentar. A contenção da liberdade do discurso individual, seja pelo cálculo das probabilidades, dogmatismos ou organização severa do conhecimento, não gera felicidade somente um lento desgaste que aos poucos transforma-se em inconformismo com a própria organização.
O cinema e a literatura souberam criticar ironicamente essas máquinas geradoras de felicidade. Comentar ou analisar os filmes de Jean-Luc Godard é impróprio, para não dizer desnecessário, por sua alta carga significativa, que atingem não o intelecto mas diretamente o sensível, e uma única forma possivel de comentário para seus filmes é por meio de um recorte macabro que assassina a obra como um todo. Porém, permita-me o assassínio de Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution (1965). Alpha 60, um personagem-voz, é a máquina geradora da felicidade que por meio de seus cálculos intermináveis consegue promover o bem estar social de todos os habitantes dentro de Alphaville e todos os estrangeiros, caso de Lemmy Caution, precisam passar pelo Controle de Habitantes para poder permanecer, é preciso saber se o visitante pode representar um perigo ao não à organização. O recorte macabro que quero realizar está na cena em que Caution é interrogado por Alpha 60 no Controle de Habitantes a qual demonstra claramente que os que possuem a liberdade do discurso representam um perigo para a sociedade que já é feliz por falta de opção, ou por falta de significados arrancados dos dicionários ou das Bíblias. Alpha 60, então, propõe questões testes por medida de segurança para Caution, e dentre as diversas questões propõe "Sabe o que transforma a noite em luz?", a resposta de Caution é certeira "A poesia." A poesia não colabora de forma alguma para os cálculos intermináveis de Alpha 60 para o Bem Final, ou para o que estou chamando de máquina de felicidade, o que o faz concluir que Caution dissimula, o que o torna um perigo para Alphaville e faz com que personagem Von Braun permita-se sentir o amor, por exemplo. Da mesma forma a poesia, ou o livro em si, é uma ameaça em Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut onde os livros são queimados pelos bombeiros fazendo com que qualquer escrito seja impensável neste mundo ao ponto dos arquivos serem composto somente por números e fotografias. Ou, de uma forma menor, em Equilibrium (2002) de Kurt Wimmer, ao ter como controle social os Sacerdotes capazes de matar somente os alvos corretos em 360° a partir de cálculos com ângulos, também neste filme os livros, ou toda qualquer obra de arte, ou souvenir são proibidos. Os Sacerdotes que acabam sendo encantados pela magia da poesia, ou por qualquer tipo de sensibilidade, são brutalmente assassinados por seus companheiros em cenas altamente violentas. De qualquer forma, as máquinas de organização social visam o bem estar do seu cidadão pelo controle do seu sensível. Sem o sensível, sem infelicidade. A literatura nos três exemplos são máquinas geradoras de insatisfação visto que ao tornarem o homem sensível faz com que ele deseje entender não somente a felicidade, mas o que faz o homem infeliz, quais são suas misérias, infortúnios ou ilusões. Exemplo disso está no conto de Eça de Queiroz, Civilização, onde Jacinto cercado de todos os aparatos tecnológicos disponíveis no fim do século XIX ainda assim: "três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína." Jacinto decide passar algumas semanas em um outra propriedade e para tanto envia todos os aparatos tecnológicos mínimos para uma estadia confortável. Jacinto e o narrador chegam ao local aprazado, mas não os aparatos. E cear a comida dos caseiros, dormir em colchões desconfortáveis e apreciar as estrelas que as luzes da cidade impediam de ver faz de Jacinto um homem feliz com poucos livros: "daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o Dom Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!". Jacinto não deixou de ser o homem civilizado que era, mas compreendeu o poder que a máquina da felicidade tecnológica estava fazendo consigo mesmo.
A eliminação da sensibilidade em troca de bem estar não é um efeito da ficção científica desses filmes ou do conto de Eça de Queiroz, ele está debaixo dos nossos narizes, seja na forma de aculturação mundial do gosto ou mesmo nas pílulas antidepressivas tão recomendadas. Compra-se esta certa felicidade pela perda dos significados mais profundos e sensíveis, como por exemplo na eliminação da interrogativa "por quê" tanto no filme de Godard quanto na teoria positivista de Comte. A banalização das ideias pela cultura de massa deseja que todos sintam os mesmos sentimentos rasos (Melhor para as vendas? Não importa.). Porém, como disse, o lento processo de desgaste que as máquinas de felicidade produzem acabam por gerar o inconformismo que faz com que os Sacerdotes de Equilibrium chorem em qualquer sinfonias menor, ou faça a personagem Natasha Von Braun se perguntar o que é o amor e recitar um poema de Capitale du douleur de Paul Eluard, deliciosa mania citacional de Godard. O inconformismo gera resistência ao duro discurso calculado das máquinas de felicidade, e arte é a forma máxima dessa resistência por sua multiplicidade de significados e profundidade de sentidos.
Recusemos, portanto, a esta certa felicidade e aceitemos o fato de que somos humanos e que não somos completos sem cada um dos sentimentos que nos compõe, seja o desejo da felicidade ou a inquietação do sofrer. Banir o sofrimento, desejo profundo de cada máquina da felicidade, seja não acreditando no mal, no caso da religião, ou na procura desenfreada de uma verdade, no caso do academicismo petrificado, não é a solução de qualquer problema de ordem social, fazê-lo é desnaturar a essência de cada um, é interditar o sensível, como se ele fosse um inimigo do bem estar. Não é despedaçando o ser humano em sua milhonésia parte que se encontrará a felicidade é compondo-o com todas as suas partes, é entendendo cada um dos sentimentos e aceitando-os todos como naturais, do bem estar ao sofrimento que algo próximo de um profundo significado de felicidade possa vir a existir, algo próximo do que significa ser humano.
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