É muito diáfana a linha divisória entre a sanidade e o desequilíbrio mental.
(Manoel Philomeno de Miranda em Nas fronteiras da Loucura)
Acordou determinado. Sabia a demanda que deveria cumprir naquele dia. Pegou seu carro e seguiu o caminho da memória, faria duas homenagens, uma para o passado e outra para o futuro. Percorreu um caminho que não conhecia, somente lembrava-se. Foi guiado pelo desejo, não havia nada marcado no mapa, não havia um X nesta exploração, era necessário farejar o sentido da lembrança. Quinze anos separavam os dois acontecimentos. Depois de muito correr pela cidade, um cheiro tornou-se a bússola ... Finalmente, saíra da cidade e pegara a BR. Era aquele o caminho. A certeza era a certeza da memória.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os quilometros seguiram céleres e cada trecho diferente e inaturalmente era o mesmo. Suas lembranças iam reconstituindo a verdade, uma verdade deveras pessoal, única e instransferível. Diminuiu bruscamente a velocidade, era ali a entrada que procurava. O nome da fazenda havia mudado? Não sabia! Só sabia que a estrada de terra batida era aquela, não havia nenhuma marca indicativa, pelo menos não visível. Era o cheiro que o guiava. E seguiu por uma estrada toda revolvida por um trator que fazia do cascalho uma segurança mínima para seguir aquele caminho, uma segurança invisível... Sua mente estava num cerco de perguntas que só poderiam ser respondidas com a demanda cumprida. Uma porteira foi seu primeiro obstáculo, parou o carro e desceu, o barro da última chuva fez com que seu sapato se enchesse de lama e a cada passo um novo solado fazia dele cada vez mais alto. Havia muito tempo não se sentia aquilo, não se lembrava ao certo a última vez que pisara em uma fazenda. O próximo obstáculo seria uma ponte, envolta de bambus, tinha quase certeza. Mas não era sua visão que confirmava aquele fato, ouvia o assovio fantasmagórico dos espectros que habitavam o bambuzal. A ponte realmente estava lá, passou com o carro lentamente, entre o lamento do vento a curvarem cada bambu e o ranger das tábuas da ponte. O regaço estava cheio e caudaloso devido às últimas chuvas que tornavam aquela água mais barrenta do que de costume. Estava no caminho certo. O caminho se tornava cada vez mais real, a medida que suas lembranças ganhavam cada vez mais cores, cheiros e sons. Era um pássaro que o levava a infância, havia sido atacado por um, por estar invadindo o seu pequeno território e inocentemente ameaçando seus filhotes que estavam protegidos na grama. A garra sob sua asa havia rasgado seu braço. Tocou a cicatriz e sorriu. Ali estava a fazenda que tanto procurava.
A porteira estava aberta, a cerca estava toda destruida pelo tempo, a casa grande não era muito longe dali, seguiu e finalmente a encontrou. Na porta estava uma senhora que não se movia, ela o estava esperando. Não sorriu, não abriu os braços para um abraço, não olhou-o nos olhos. Simplesmente perguntou de sua avó. Explicou que já havia-se ido há alguns anos. Ela não esboçou decepção ou qualquer outra reação, a casa exalava o cheio de um bolo e o apito da chaleira era o enunciador de um mate que certamente estava pronto. Ele também não sorria ou expressava qualquer reação, estava envolto na transfiguração das lembranças. Sentou-se, experimentou o bolo, tomou o mate... Ela finalmente o olhou e questionou se ele estava pronto, ele sorriu um sorriso amarelo e disse que nunca há de se estar preparado para nada nesta existência E ela de mofa respondeu que preparado ou não ele deveria reaver o que eu havia deixado ali. Seguiram para o fundo, um cavalo estava selado e ele montou, não era cavaleiro suficientemente treinado mas lembrava-se ao menos de como não cair do animal. Ela deu as instruções que para ele pareceram a repetição interminável de velhos senis dos mesmos assuntos, sabia e não sabia o caminho, seria guiado pelo desejo, simplesmente.
O quintal de sua casa era um universo completo, repleto de historietas e imaginação. Crescer preso dentro dele não era uma opção, era muitas vezes uma necessidade do medo. Não ia a escola sozinho, havia sempre um olhar familiar a lhe observar, demorou muito até que pudesse saber o que era uma certa liberdade, a liberdade que experimentava naquele momento da sua visita, era montar o cavalo e seguir até ao abismo carnal da triste argila.
Os super-heróis que enchiam sua caixa de brinquedos tornavam-se dessa forma sua liberdade criadora na infância, não podia sair do quintal mas não estava preso, tinha os bonecos-de-ação de todos os tipos, gêneros, articulados ou imóveis. Eles se aventuravam muitas vezes em histórias mais que reais, dramas pessoais não vividos nas séries televisivas que apreciava com um gosto peculiar entre uma ópera ou outra que assistia pela madrugada, seus personagens discutiam a política de seus mundos, queriam provocar mudanças, eram, descobriu depois, heróis trágicos, pais das pátrias e dos povos, sofriam por todos porque este era o seu destino, todos aqueles heróis de plástico estavam predestinados a sofrer a pena pelo sofrimento alheio em diálogos um tanto complexos para a pequena narrativa do super-herói que mesmo salvando a humanidade inteira tinha tempo ao final de cada episódio para viver cenas domésticas de pura futilidade da indústria cultural. Um deles, provavelmente o Batman, estava com um problema com seus ministros, estava tramando um golpe de estado para poder tornar-se o único senhor soberano do local... nunca saberemos se aquele herói teria superado tal questão, sua avó havia interrompido um momento muito importante na sua pequena mitologia monológica pessoal. Uma amiga estava vindo buscá-los para conhecer sua fazenda, não longe da cidade. Sair de casa? "A senhora ligou para minha mãe?", era só o que se passava em sua cabeça. Não importava se tivesse ligado ou não, iriam de qualquer maneira. Ela também era uma mãe...
Um Fusca veio e seguiram pelas ruas, e não importava o carro, ele sempre sentava-se no banco de trás, de joelhos no banco a olhar para trás, não gostava de ver o caminho vindo até ele, gostava de vê-lo abandonando-o lentamente. Da rua para a estrada, da estrada para o estreito caminho de terra batida, salpicado de cascalho, uma porteira, uma ponte e mais uma porteira. O mato não era um local desconhecido, conhecia-o bem, sempre estava indo e voltando das fazendas dos tios-avós, mas aquela situação era completamente diferente, era um local desconhecido, sem todos os familiares ao redor, somente o atento e severo olhar de sua avó. Entraram na casa, a água já estava fervendo e a guampa pronta para o mate, era audácia pura para uma criança beber algo tão quente, nenhum outro primo ou prima o fazia. Sentia-se parte deles, pronto para discutir um golpe de estado em um mundo qualquer, mas preferia ouvir, foi ouvindo que aprendeu as pequenas e certeiras lições de sua avó, seu juízo sobre as coisas nunca forma estreitos, tinha a mente mais ampla que conheceu, fraquejava as vezes como qualquer ser humano, mas era íntegro a qualquer momento.
A palavra cachoeira ressoou entre muitos nomes de velhos conhecidos que ele nunca vira ou nunca iria ver. Seus olhos brilharam, a água é o único dono da natureza, ocupa qualquer espaço e de tanto ocupá-lo segue seu caminho sorrateiramente para seu destino, qualquer que fosse. Era um pequeno símbolo a ser absorvido e que certamente o absorveria. Foi levado até a queda d'água, era raso, diziam, e sua tromba d'água caia exatamente em cima de uma pedra, um presente de Deus, segundo a dona do local. Suas roupas simplesmente desgrudaram do corpo, não pensou muito e já estava dentro da água gelada, seguiu cuidadosamente até a cachoeira, tateando o desconhecido com os pés, areia, pedra, folhas secas, troncos. Sentia o beliscar de pequenos peixes em suas pernas de penugem clara que provavelmente os atraíam. Finalmente, a queda d'água, a pedra em que caia em cima era enorme, não muito mais elevada do que o nível da areia, levou sua mão até o seu fluxo que de tão forte faziam-nas cederem rapidamente. As explorações com os pés não pararam, a textura da pedra era algo novo, liso e escorregadio, algo que entrou para dentro do seu imaginário, uma sensação nova que ficou registrada na memória, como muitos dos acontecimentos daquele dia.
Seus pés agora queriam testar a força do líquido que caia e enchia aquele pequeno lugar de água não muito cristalina. Aos poucos foi sentindo a força da água juntamente com a textura da pedra, e sua combinação faziam-no vibrar. Entretanto, ao chegar ao ponto central da queda d'água os pés perceberam uma reentrância, a água caia dentro de um buraco na pedra, era sua leitura infantil da força da água, não se lembrava do provérbio popular. Seus olhos se arregalaram com o choque. Quão profundo deveria ser aquele buraco? Foi vagarosamente afundando seu pé direito naquele assombro, sua perna não alcançou um fundo... Deveria ser um buraco infinito. Olhou para trás, e sua avó e sua amiga já não estavam lá, havia se arriscado sozinho. Sorriu de pura liberdade, resolvendo testar mais uma vez a profundidade.
Estava com quase todo seu corpo dentro da água e seu peso agora era suportado por sua cabeça e forçava seus cabelos fazendo cócegas no couro cabeludo, assim poderia penetrar melhor naquele infinito. Não pode com a força da água, ela o afundou e escorregando na textura da pedra, não uma perna, mas as duas e depois o corpo todo entrou no buraco. A água barrenta o cegou, não havia ali um peixe sequer, um turbilhão de nadas passava em sua cabeça, não sabia o que era a morte ou qualquer coisa parecida, nunca esteve em um hospital ou mesmo lido livros versando sobre o assunto, os heróis não morrem e não matam, eram justos e faziam sofrer uma pena para dirimir as culpas, era assim que o Batman puniria seu traidor, se essa narrativa tivesse tido um fim. São visões de um inocente sonhador. De um pequeno sonhador que deixou a vida ali mesmo. Naquele buraco infinito seu corpo entrou e de lá nunca mais saiu, perdera naquele momento tudo o que o ligava a realidade, seu pesado corpo fora dragado pela água e seu fluxo, mas algo fora regurgitado de volta pela mesma força que o colocou lá dentro.
Sua avó não havia percebido a diferença entre seu espectro e seu corpo, ou se houvesse percebido nada havia comentado, ele estava lívido por todo o conhecimento adquirido pela morte prematura, pela primeira vez tinha um olho fechado e o outro aberto, ouvia as perguntas que os outros faziam e um olho respondia o que eles exatamente queriam ouvir, o outro pensava profundamente sobre aquele momento, nunca optando por uma resposta contudente, era a múltipla possibilidade de respostas que animavam seu espectro. Nunca ninguém sentiu falta de seu corpo, seu espectro fora tomado como a chegada da adolescência que muda radicalmente o pensamento de qualquer um, mas não era isso, havia adquirido toda uma consciência num único lance. Vivia metade no mundo dos mortos, metade no mundo dos vivos, poderia compartilhar das duas partes e das duas partes se nutriu. Os super-heróis de plásticos foram esquecidos, trocados por livros, devorados um atrás do outro, estava a procura de algo que ainda não havia encontrado, permanecia lendo e lembrando-se do seu corpo que ainda deveria estar caindo com a força da água para dentro do infinito.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.
O cavalo parou ao lado do lago formado pela cachoeira, desceu a cabeça e sorveu a água barrenta. O barulho do local era exatamente o mesmo de sua infância. Desceu do cavalo, desabotoou lentamente sua camisa, sua pele branca estava a mostra, desabotoou a calça e desceu o ziper suavemente, num único lance desceu a calça e a cueca, seus sapatos foram arrancados juntamente com as meias. Seu pé finalmente tocara o chão gelado. A luz local eclipsarasse por um momento, o cavalo saiu galopando assustado, a cachoeira parou por um instante de seguir o seu inevitável fluxo, o lago serenou-se. Seus pés agora ganhavam lentamente a água para não a pertubar. Seguiu até o local onde se encontrava a pedra, não tateava cuidadosamente o caminho com os pés , conhecia o caminho pelo desejo da memória. Afundou sua cabeça na água, o barro não permitia vislumbrar qualquer luz ou sombra. Sentiu a reentrância na pedra... não era infinita, era rasa por sinal, como era raso todo o lago, tateou com o corpo e finalmente achou seu corpo ainda ali, rugoso pelo longo tempo dentro da água. Finalmente sua demanda estava cumprida, sua homenagem ao passado e ao futuro só poderia ser prestada no presente. Após quinze anos, tornara-se novamente único.
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