para Felipe, pela sugestão da atividade com meus alunos
Na condição de professor de Língua Portuguesa na escola pública, firmei um compromisso comigo mesmo: o de incentivar por todo e qualquer meio a leitura e a fruição do texto, não somente mas principalmente do texto literário. E no começo deste ano a Escola solicitou aos professores de todas as disciplinas que realizassem uma avaliação diagnóstica com os alunos para percebermos quais as dificuldades e as proficiências dos alunos. Realizei nas primeiras semanas de aula a seguinte proposta de atividade: a leitura e a discussão do ensaio Em defesa do Romance de Mário Vargas Llosa e a apreciação do filme Fahrenheit 451 de François Truffaut. A aproximação dos dois, não só serviu como atividade diagnóstica para os alunos, como suscitou algumas reflexões sobre a questão da leitura na escola e uma pedagogia da leitura.
O ensaio de Llosa, publicado na Revista Piauí 37, além de defender o próprio romance e seus escritores, dentre eles Cervantes, Shakespeare, Dante, Tolstoi, Proust, Flaubert, Borges, Orwell, trata de diversas questões para poder chegar a seu objetivo: como o romance modifica e age no ser humano. A defesa do romance ou da literatura e de sua função humanizadora é baseada na função estética relacionada com a percepção do fato humano expresso pela arte e de como essa percepção pode fazer o sujeito refletir qualquer problemática humana via a atividade artística, no caso, a escrita. A literatura tem entre suas diversas funções essa possibilidade, representa por meio de sua diegese questões humanas por meio da individualização de uma situação que envolve alguns personagens no seu espaço e no tempo, porém essa situação individualizadora se torna universal à medida que o leitor se utiliza da literatura para si, para compreensão do que é o valor humano e do que há de humano expresso na história narrada. Um exemplo: que melhor obra para entendermos a estrutura das relações amorosas poderiamos ter do que em Mulheres Apaixonadas de D.H. Lawrence? Suas quatro personagens centrais ao se relacionar fazem-nos entender as diversas maneiras que a paixão pode acontecer e qual a relação do amor com o ódio, isto é só um exemplo de leitura, uma generalização, um recorte de uma obra tão plural. O sentimento das quatro personagens podem estar muito afastado do leitor, não responder as suas expectativas, mas promove no leitor uma reflexão sobre a maneira como elas constroem e desconstroem o amor, e isto modifica, amplia ou faz com que o leitor duvide de sua concepção de amor ou relacionamento.
O que Llosa defende é que sem essa atividade artística literária haveria uma animalização do sujeito, visto que o que o torna diferente da natureza é essa possibilidade de individualização e universalização simultânea pela arte: "[...] uma sociedade sem romances [...] está condenada a se barbarizar no plano espiritual e a pôr em risco a própria liberdade". Imaginar uma sociedade sem romances não é algo tão miraculoso, tão afastado de nós. O romance, ou diminuindo o nível de exigência e generalizando o gênero pela palavra leitura, é muitas vezes inexistente para uma parcela considerável da sociedade. Para se verificar esta situação é somente se questionar: quantos livros leu este ano? (Não que haja a necessidade de uma quota mínima de leitura anual, pois o importante é a qualidade dessa leitura). Ou quantos desses escritores citados por Llosa já teve sob seus olhos? Se o problema da leitura estivesse somente restrito a leitura literária ou da alta literatura teríamos que reconsiderar a problemática, porém, essa falta de leitura se estende por todos os campos, da leitura técnica a qual cada um deveria realizar em sua respectiva área ou mesmo a leitura da masscult, best-sellers e livros afins. Llosa também defende a alta cultura, seus valores e sua ideologia, entretanto, o problema da leitura é maior, principalmente quando considero meus alunos, envolve a questão do hábito de leitura na sociedade e suas consequências.
O filme de Truffaut suplementou, dentro do recorte que selecionei, o ensaio de Llosa, e pude para além disso, mostrar aos meus alunos algumas situações que nós vivemos por não sermos leitores. Quero citar dois exemplos que chocaram os alunos pela maneira que pus uma lente de aumento naquelas situações: ver a grama crescer e falar com a tv. Os bombeiros que trabalham em Fahrenheit 451 queimam os livros por fazerem mal a sociedade lobotomizada pela falta de cultura e prendem qualquer pessoa que se atreva a possuir ou ler os livros. Em uma cena, logo no começo do filme, o chefe dos bombeiros pergunta para Montag, personagem principal, o que ele faria se o proibissem de cortar a grama, a resposta da personagem expressa a submissão acrítica do sujeito que não conhece outra possibilidade que a leitura, por exemplo, poderia oferecer: "veria crescer!" Ver crescer a grama torna-se a representação do ato de todos os habitantes daquela sociedade sem livros, se submetem a qualquer mando e desmando superior visto que não conhecem outra possibilidade de existência e realmente acreditam que o que o seu superior pensa é o certo para todos, acredita-se que esse superior pensa no bem-estar geral e na justiça para todos, entretanto, não é o que acontece. Em uma outra cena a esposa de Montag conversa com a televisão respondendo perguntas evasivas acreditando participar do programa televisivo. A cena, além de mostrar o engodo que a tv representa na vida das pessoas, demonstra como aquelas personagens que se se submetem ao comando superior acreditam serem indivíduos únicos, mas que não passam de massa facilmente manobrável. Perguntei aos meus alunos se eles já tinham falado com a tv e, obviamente, eles disseram que não, porém provei o contrário: eles falam com a tv ao discutir o que se passa nela quando não estão em frente do aparelho televisor, ao comprar os produtos que ela vende, ao acreditar e propagar cegamente as opiniões que ela dispõe ao telespectador... Falamos com a tv o tempo todo, esse meio de comunicação tornou-se aquele superior que nos obriga a ver a grama crescer e ser feliz dessa forma por não conhecermos outras possibilidades. O recorte que fiz no ensaio de Llosa trata exatamente desta questão: a liberdade que a literatura nos devolve por uma insatisfação com o status quo social:
"A boa literatura, enquanto aplaca momentaneamente a insatisfação humana, incrementa-a e, fazendo que se desenvolva uma sensibilidade inconformista em relação a vida, torna os seres humanos mais aptos para a infelicidade. Viver insatisfeito, em luta contra a existência, significa empenhar-se [...]. Isso é provavelmente verdadeiro: mas também é verdadeiro que, sem a revolta contra a mediocridade e a sordidez da vida, nós, seres humanos, ainda viveríamos em condições primitivas, a história teria acabado, não teria nascido o individuo, a ciência e a tecnologia não existiria, porque tudo isso nasceu de atos de insubmissão contra uma vida percebida como insuficiente e intolerável".
Entendo, valorizo e aprecio a ideologia inserida na alta literatura, entretanto, quando trabalho a questão da literatura em sala de aula preciso ampliar meu horizonte de expectativas, por isso quero acreditar numa pedagogia da leitura, um processo em que se insere a leitura no contexto do aluno e pontualmente incrementa-se o nível de exigência para, enfim, alcançar-se, em primeiro lugar, um gosto pela leitura, e depois, o entendimento do valor ideológico inserido nela. A disciplina de Língua Portuguesa oferece esse leque de possibilidades, visto que é naquele momento que ganho meu aluno, momento em que a jovial curiosidade dos alunos aliada com uma tática de encantamento que a leitura de textos instigantes, mesmo que mais simples, pode oferecer . O problema da leitura em sala de aula, na visão dos alunos, é a questão da obrigatoriedade da leitura e da apreciação de textos que não despertam seu interesse. Não é possível exigir deles a leitura de Ulysses de James Joyce sendo que a estrutura do romance não está em sua cabeça e nela não faz sentido algum, como se essa fosse a única exigência para se iniciar na obra desse escritor. A minha pedagogia da leitura diz que é preciso começar com textos mais simples para assegurar o interesse e a necessidade de narrativas mais complexas, de desafios maiores e, acima de qualquer coisa, é preciso seguir a lição poundiana: ler com e para os alunos. O que se tem exigido dos alunos é ler um livro qualquer em um tempo x. Os alunos levam o livro para casa, não sabem nada sobre o livro (um possível encantamento inicial, muitas vezes é esquecido) e não tem vontade de lê-lo. O tempo x expira e quase ninguém leu a obra. Faço questão de "perder" uma hora semanal para sentar com meus alunos e ler com eles as obras que selecionei. E é ouvindo a sua leitura ou mesmo lendo para eles que construo todo um encantamento com relação a leitura e o que aquela obra tem a significar. Mas, as obras escolhidas são maçantes e difíceis... se assim o fosse não me exigiriam a hora da leitura. O que é maçante na leitura é a forma com que acontece seu processo, se mediamos a leitura, e este é meu papel como professor nesse compromisso, ganho o aluno e para além disso: ele se torna autônomo em pouco tempo, quer ter aquele mesmo prazer de ler de forma independente do meu olhar, quer ganhar a sua própria liberdade e não mais aceitar que é preciso ver a grama crescer ou responder perguntas evasivas da televisão.
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