(des)esperar


Desesperou. Já havia revirado todas as gavetas do quarto do tio. Uma por uma. Cuecas, meias e pequenos objetos foram jogados para cima e caíram sem destino, espalhados formavam um mosaico de uma pequena angústia. Procurava e se perguntava onde poderia estar... Resolveu olhar os bolsos das calças, paletós e não achou absolutamente nada do seu interessante, somente dinheiro, telefones anotados em pequenas folhas de papel e outros segredos que os homens guardam em seus armários. Passou para o maleiro, dezenas de caixas e objetos inúteis. Bufou enquanto tirava cada uma das caixas as quais destampava e virava sem dó, alguns dos objetos frágeis quebravam-se facilmente em contato com o chão, dando um ar mais agressivo ao mosaico angustiante. Destampou uma por uma até encontrar uma pequena caixa metálica, trancada por um cadeado miúdo. Torceu o cadeado, era deveras resistente, certamente estaria ali seu objeto de desejo. Chacoalhou-a ouviu secos ruídos metálicos se chocando. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. A chave provavelmente estaria no chaveiro do dono da caixa, pensou enquanto descia os dois lances da escadaria que separava os quartos da parte comum da casa. Não havia razão para seu tio levar o molho de chaves para pescar, seu pai o acompanhava e ele como dono da casa abriria e fecharia cada uma de suas portas. Na mesinha de centro ao lado do controle remoto estava o molho e as chaves da porta de seu escritório, da casa do amante, do armário da academia e algumas outras chaves que perderam sua função ao enfrentar o tempo e as intempéries da existência. Entretanto, por mais que o tempo enegrecesse as chaves sem função aparente, foi exatamente uma delas, a menor de todas que abriu a caixa metálica. Precisou utilizar as duas mãos para erguer a tampa como a criar um momento de suspense. Sorriu enquanto seus olhos fremiam. Retirou com cuidado o frágil tesouro: uma pequena pistola .38. Abriu e rodou o tambor do mesmo modo que seu tio fazia quando queria se exibir. Preencheu lentamente cada espaço vazio com uma bala, agia a maneira de um ritual. Um ritual que encerraria de uma vez por todas com seu desespero.

Esperou. Com a arma carregada sentou-se no centro do tapete persa branco que dava para a porta principal da casa. Estava a espreita de sua vítima. Olhou o relógio pendurado em cima da porta. Era exatamente três horas da tarde. Não tardaria a chegar, podia até ouvir os ruídos que ele geralmente produzia. Pensou em quantas desilusões teve que enfrentar, quantas vezes desistiu de se formar, quantas vezes bebeu e arrependeu -se por não lembrar o que falou, quem beijou, o que dançou, quantas vezes teve que ouvir calado impropérios de seus familiares que só sabiam julgá-lo por cada passo, cada levantar de dedos, cada tossir, cada sorriso. O ruído ainda não era suficiente. A espera já estava deixando-o irritado. Sua mão tremia, já sentia que ele estava se aproximando. Lembrou-se de cada amor que teve ou que achou que teve, cada nome, cada rosto, cada sorriso, cada frase estúpida que teve que ouvir, cada submissão que teve que suportar por carência para não se ver sozinho novamente. Eram seus passos, seu trotar tamborilava em sua mente, era uma tortura. Sentiu-se uma bruxa na Inquisição, seus pés e mãos atados numa cadeira ornamentada, seu inquisidor abria o mecanismo que dispensaria em sua testa uma gota d'água a cada poucos segundos, no começo sentiria-se molhar, mas em poucos minutos a queda de cada gota pareceria uma martelada em sua cabeça. Mas ele não confessaria nada, suas memórias para si já eram recalcitrante o suficiente. Eram elas que precisavam ser caladas.

(Des)esperou. A vítima estava ali. Presente naquele mesmo tapete persa, sentado. Já falava alto, gesticulava para si mesmo, a arma balançava de um lado para o outro, os olhos seguiam cada movimento com medo. A espera valeu a pena, tudo para matar aquele que causava o desespero e calar aquelas vozes da memória. Apontou a arma para sua cabeça, destravou e sentiu o frio do gatilho. Ainda pode ouvir um último lampejo: o quanto se dedicara aos outros e esquecera de si mesmo. O estampido da bala brilhou. Nenhuma memória era ouvida naquele momento, seu corpo caiu e o buraco em sua cabeça jorrava sangue, matéria da memória que manchava o tapete. Finalmente, sua vítima não existia mais, seus memórias não o perturbariam mais. Seu tio nem se importaria com a bagunça do quarto, os objetos quebrados, os segredos revelados. O sobrinho estava morto, (des)esperou muito tempo, e finalmente ele estava morto e toda a memória estava silenciada.

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