"Não sou sábio nem ignorante. Conheci alegrias. Isso não diz muita coisa: vivo, e a vida me dá um enorme prazer. Quanto à morte? Quando morrer (talvez daqui a pouco), conhecerei um prazer imenso. Não falo do antegosto da morte que é insípido e frequentemente desagradável. Sofrer é embrutecedor. Mas esta é a verdade notável da qual estou seguro: experimento um prazer sem limites em viver e terei uma satisfação sem limites em morrer. (Maurice Blanchot)
Ivan Ilitch morre na primeira página da obra de 1886 de Lev Tostói. Entretanto, a narrativa não morreu com ele, ela nasceu. As narrativas se escrevem sob o corpo morto. Seja esse o corpo da página em branco, seja esse corpo o de Ivan Ilitch, ou seja o nosso corpo quando escrevemos nossas memórias. A narrativa deve ter tido o mesmo pensamento que todos aqueles que trabalhavam com Ivan Ilitch: "Aí está, morreu; e eu não' - pensou ou sentiu cada um" (TOLSTOI, 2006, p. 9), esta é, geralmente, a primeira impressão quando alguém não muito próximo morre. Pode-se negar, numa fingida misericórdia cristã, mas os instintos humanos nos levam até esse momento, o humano que há em cada um faz com que pense inconscientemente na preservação da própria vida em primeiro lugar. Porém, a narrativa não tem esses escrúpulos cristãos sobre a morte, realmente pensou: ele morreu e eu não. E a partir desse pensamento, passou a refletir nesse interdito que a morte se tornou, por vários motivos que não merecem ser enumerados de tão pequenos e mesquinhos que são. Os amigos reunidos de Ivan Ilitch em torno da notícia de sua morte começaram a pensar no futuro, nas promoções que a morte de um juiz, como o personagem principal, poderiam causar. A narrativa, entretanto, não olhou para o futuro, olhou para o passado. "Quanto mais voltava para trás, mais vida havia". (TOLSTOI, 2006, p. 70). E a narrativa estava interessada na vida. E nos trouxe ao ouvido a história de Ivan Ilitch. Como chegou ao momento que chegou, o que teve que sofrer e fazer sofrer para poder ser quem era, ter o que tinha e pensar o que pensava. Ivan Ilitch como qualquer ser humano estava mais interessado no futuro do que no presente, construiu uma carreira, lutou por ela ao lado de uma mulher que não amava, visto que seu casamento foi um cômodo negócio. Mas o que Ivan Ilitch não esperava era ser surpreendido pelo presente. Sua doença, um tormento impossível de ser identificado, fez com que seus pensamentos se voltassem para o presente, o futuro deixou de existir, e o passado teve que ser repensado, repisado:
"Assim como os tormentos se tornam cada vez piores também toda a vida se tornava cada vez pior" - pensou ele. Havia um ponto luminoso alhures, atrás, no começo da vida, e depois tudo se tornava cada vez mais negro e cada vez mais rápido. "Na razão inversa dos quadrados da distância para a morte" - pensou Ivan Ilitch. (TOLSTOI, 2006, p. 70)
A presença do presente teve duas damas de compainha, no caso de Ivan Ilitch: a Memória e a Morte. Aquela sempre morta, esta sempre por morrer. A memória geralmente é convidada por aqueles que reconhecem a proximidade da morte, muitas vezes é uma "eterna" companheira daqueles que já alcançaram a velhice. Não era o caso de Ivan Ilitch, ele tinha outra companheira: a Morte. Por mais que todos ao seu redor negassem sua presença, ele sabia que ela estava ali, proporcionando-lhe um dos momentos mais lúcidos de sua vida. Por isso poderia dizer livremente que não morrer era uma "mentira por algum motivo aceita por todos" (TOLSTOI, 2006, p. 55). É uma esperança, uma ilusão que alimenta a todos, não por um motivo incerto: mas pelo simples motivo de que enfrentar a morte não faz parte da educação do homem, pelo contrário, ele é preparado todos os dias para sofrer com a morte e fugir dela, e desse sofrimento obter mais e mais repressões que o farão uma pequena miséria humana quando precisar enfrentar sua própria morte. Por outro lado, há alguns homens que não são assim, e no caso de Ivan Ilitch era Guerássim. Um homem simples, com um pensamento simples: "Todos nós vamos morrer. Por que não me esforçar um pouco?" (TOLSTOI, 2006, p. 56). São das cabeças dita menores, das cabeças falsamente simplórias que algumas importantes lições aparecem. Sempre me lembro das perguntas de Macabéia em A hora da estrela de Clarice Lispector ou mesmo dos monólogos interiores dos personagens de Vidas Secas de Graciliano Ramos, principalmente do filho mais novo, do filho mais velho e da cachorra Baleia. Todos ao redor de Ivan Ilitch acreditavam em uma mentira, Guerássim não, compreendia e solidariezavasse com o moribundo: todos nós vamos morrer. Exatamente por este fato Ivan Ilitich preferia a vitalidade, a força e a saúde de Guerássim e não dos outros personagens. A vitalidade daquele que se agarra a vida é uma afronta ao moribundo, aquele que já tem como companhia a Memória e a Morte:
[...] E, fato estranho, teve a impressão de sentir-se melhor enquanto Guerássim segurava-lhes os pés. A partir de então, Ivan Ilitch chavama às vezes Guerássim, fazendo-o segurar os seus pés sobre os ombros, e gostava de conversar com ele. Guerássem fazia isto com leveza, de bom grado, com simplicidade e uma bondade que deixava Ivan Ilitch comovido. A saúde, a força, a vitalidade de todas as demais pessoas ofendiam Ivan Ilitch; somente a força e a vitalidade de Guerássim não o entristecia, e sim acalmavam-no. (TOLSTOI, 2006, p. 55)
Guerássim é uma vitalidade acalmante. Um sopro de vida para aquele que tem a Morte como companhia, mas a morte é certa, já está lá, e fala com ele:
- Acabou! - disse alguém por cima dele. Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. "A morte acabou - disse a si mesmo. - Não existe mais. Aspirou o ar, deteve-se em meio suspiro, inteirou-se e morreu. (TOLSTOI, 2006, p. 76)
As últimas linhas da obra são o momento de maior lucidez de Ivan Ilitch. A Morte acabou, deixou de existir no momento que Ivan Ilitch também deixou de existir. É aí que a narrativa termina, novamente com os olhos no presente. É aí que as pessoas vão pensar no futuro. É aí que começa a minha dúvida: a morte da morte. Jacques Derrida nos ensina que a morte não pode ser um interdito, visto que é somente pela existência da morte que a vida possui algum sentido. "Convém pensar no porvir, ou seja, na vida. Ou seja, na morte" (DERRIDA, 1994, p. 154). É na diferença entre a vida e a morte que a vida ganha sentido, para tanto ele passa a utilizar uma expressão como uma palavra com esse sentido: a vida a morte. O que A morte de Ivan Ilitch provoca é a ruptura/efração desse pensamento, se a morte acaba, deixa de existir, a única coisa que poderia dar um significado para a vida, faz com que ela deixe de ter sentido. A vida volta para o estado original da dúvida. Por que vivemos? Para que vivemos? A não educação para a morte faz do ser humano um ser agarrado ilusóriamente a vida, por mais que ela seja um estado de dúvida não passível de resolução. A vida como dúvida, faz com que o homem pense e reflita os seus atos, faz com que aja de maneira completamente diferente do animal que procurou se diferenciar. Portanto, é a morte que faz com que a literatura seja, que a arte e a filosofia, cada uma com sua linguagem, continuem intermináveis. Resolver a significação da vida pela morte, a vida a morte, não nos conforta, e nem confortou Derrida: "Seria preciso sempre que mortais ainda vivos enterrassem vivos já mortos" (DERRIDA, 1994, p. 156). Para encerrar, ainda sem um ponto final, concluo que a manutenção da vida como dúvida pela morte da morte rompe com uma conformidade com a ilusão. Iludidos seguimos agarrados a vida, quando duvidamos da vida nos desgarramos daquilo que mantém o ser humano preso a certas ilusões conformistas. A ruptura que A morte de Ivan Ilitch causou nas minhas certezas sobre a vida é só o começo de um pensamento diferente sobre a vida, que não termina aqui e nem poderia. É um primeiro trauma/efração nas estruturas que pareciam sólidas. É a dúvida o que se segue, e é o que me coloca em movimento, caminhando novamente.
Referências
DERRIDA, Jacques. O Espectro de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional (trad. Anamaria Skinner). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
TOLSTOI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. (trad. Boris Schaiderman). São Paulo, Editora 34, 2006. (Coleção Leste)
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