[revisado em agosto de 2013]
A maneira com que facilmente nos identificarmos com os problemas universais do ser humano é a demonstração do nosso comodismo perante a formação do pensamento nacional e das diferenças entre a produção literária entre as nações. Sermos Emmas Bovary em todos os lugares e condoermo-nos com as grandes tragédias tornou-se, muitas vezes, lugar-comum para alguns que acreditam absorver a obra literária em sua totalidade sem a reflexão necessária, mesmo para nós, brasileiros, incapazes de ler a literatura produzida no Brasil, por seu tropicalismo, simplesmente porque uma tradição estabelecida e importada resolveu que estes são os problemas a serem debatidos e representados universalmente. Mas quando uma verdade indesejável nos cospe na cara? Seriamos capazes de identificarmo-nos com Jeca Tatu e o problema de sua raça, o caboclo? Ou entenderíamos que ele seria a melhor representação cultural para a forma com que o brasileiro entende e produz a cultura. Ou seria melhor continuarmos a afirmar que Emma Bovary continua sendo nós? E negarmos o fato de que a tradição nos serve apenas de cabresto a limitar uma possibilidade de construção cultural orgânica sem ser endógena.
A maneira com que facilmente nos identificarmos com os problemas universais do ser humano é a demonstração do nosso comodismo perante a formação do pensamento nacional e das diferenças entre a produção literária entre as nações. Sermos Emmas Bovary em todos os lugares e condoermo-nos com as grandes tragédias tornou-se, muitas vezes, lugar-comum para alguns que acreditam absorver a obra literária em sua totalidade sem a reflexão necessária, mesmo para nós, brasileiros, incapazes de ler a literatura produzida no Brasil, por seu tropicalismo, simplesmente porque uma tradição estabelecida e importada resolveu que estes são os problemas a serem debatidos e representados universalmente. Mas quando uma verdade indesejável nos cospe na cara? Seriamos capazes de identificarmo-nos com Jeca Tatu e o problema de sua raça, o caboclo? Ou entenderíamos que ele seria a melhor representação cultural para a forma com que o brasileiro entende e produz a cultura. Ou seria melhor continuarmos a afirmar que Emma Bovary continua sendo nós? E negarmos o fato de que a tradição nos serve apenas de cabresto a limitar uma possibilidade de construção cultural orgânica sem ser endógena.
Passemos ao problema, o caboclo, tenha ele qualquer nome, e aqui representado na figura de Jeca Tatu do conto “Urupês” de Monteiro Lobato, é um devastador selvagem, apropria-se indevidamente da terra e a utiliza até a exaustão. Não conhece nenhuma técnica que o faria fixar-se no lugar em que escolheu (sobre)viver, é a priori um nômade supersticioso. Assim, "o caboclo é uma quantidade negativa", como conclui o narrador de "Urupês" ao descrever Jeca Tatu e seu modo de vida, seria, dessa forma, o oposto do ato civilizador e não teria com ele nenhuma relação.
O que seria esta sensação de civilização que falta no caboclo? O que o torna tão diferente de qualquer um de nós ou mesmo de Lobato? Aparentemente parece ser um rancor econômico da parte do narrador que ao ironizar minuciosamente as atitudes de Jeca Tatu esquece-se de olhar para dentro de si e de sua própria história. Só porque ele possui em livros e em conversas pontuais de café: a política ou a ciência ou por (re)conhecer alguns nomes de uma outra tradição, o que permite perpetrar, a partir daí, algumas relações, mesmo que desnecessárias, ele se torna o homem civilizado. É porque devasta de forma regrada e sua superstição tem caráter de religião, amparada na teologia, que o caboclo seria o mais baixo de todos os homens. É porque não tendo domínio da linguagem, "de pé ou sentado as ideias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa", que se mantém abaixo de todos os outros na escala da importância humana, a partir do ponto de vista logocêntrico de que a linguagem constrói essa escala. Porém, a pergunta ainda permanece e sem resposta: o quão diferente ele é do devastador selvagem? Deixou de ser humano?
Não quero negar que exista a civilização e suas benesses, eu vivo e sobrevivo ao apoiar meu fazer diário nela. A questão em jogo é quão longe de nós está Jeca Tatu e o quê o afastamento proposto pelo narrador no conto "Urupês" em seu foco narrativo evidencia com tanto desgosto.
Monteiro Lobato não errou ao descrever o caboclo ou ao colocar preconceitos raciais na boca de senhoras fazendeiras, ele era um homem de seu tempo e que exigia a modernização rápida e sem reflexão para finalmente colocar o Brasil entre as nações do século XX (é preciso ressaltar que o próximo passo dessa marcha foi a Semana de Arte Moderna de 1922, a qual ironicamente foi execrada por todos os modernizadores, inclusive Lobato) e Jeca Tatu era um atravanco nessa ordem civilizatória, assim como todas as outras minorias que de tão violentadas hibridizaram-se com a minoria mandante. O erro, entretanto, foi de nossa época ao tratar com tanta consideração um discurso datado, ideológico e necessário. Ao invés de olharmos para Monteiro e sua escrita como se estivéssemos olhando para o passado, acreditou-se que ele representava o pensamento corrente e que poderia ainda influenciar o pensamento atual, em que a conclusão mais sensata era: é melhor que as crianças não o leiam na escola. Ele pode sim influenciar, mas a partir de um olhar um pouco mais demorado e que deixa claro o quanto somos diferentes daquilo ou o quanto nos diferenciamos daquela época e, até mesmo, perceber aonde se chegou com aquela ideologia para, por fim, termos que nos afastar daquele caminho de destruição mais psicológica do que material.
"O caboclo não dá pela coisa" civilizatória por sua ignorância e, pela nossa ignorância, chegamos ao século XXI e ficamos com dívidas e dúvidas históricas com dezenas de minorias que só começaram a existir dentro de si depois de muito tempo de silenciamento imposto e autoimposto. Por lhe negarem a própria existência como sujeito, sua subjetivação tornou-se tardia, enquanto um sujeito se construía sobre os escombros de outros, da mesma forma que uma civilização que não deixa de ser uma forma de subjetivação dentro da perspectiva medíocre de culturas nacionais..
Exatamente, uma civilização só se constrói sobre os escombros de outra. E uma civilização só é melhor do que outra quando está no auge do seu “processo civilizatório” e de sua influência, fazendo com que seu passado se apague e somente permaneça na lembrança o seu período de ouro, ou seja, os documentos que não interessam são simplesmente arquivados na pasta secreta do ato arquiviolítico. Mais uma vez e em diferença, uma civilização só se constrói sobre os escombros de outra quando se pode aproveitar o que sobrou das cinzas dos alicerces de outras culturas e segue-se em frente, para não errar no mesmo amontoado de tijolos.
Finalmente, Jeca Tatu sou eu, na medida que sigo avançando de fazenda em fazenda devastando a terra sob minha superstições, simplesmente porque os civilizadores verdadeiros ainda não foram ouvidos e se o foram, somente os ecos de suas vozes chegaram-me aos ouvidos. "O caboclo é o sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas" da mesma forma quando começo a habitar a árvore viçosa dos grandes pensadores e sugar dela tudo e, ao mesmo tempo, não conseguir produzir nada de duradouro. É o ato favorito do colonizado, pois na falta de um passado, tendo em vista que o passado menor está anarquivado, acaba por gozar somente do pensamento novíssimo até o surgimento de um outro, como analisou Levi-Strauss em Tristes Trópicos.
"Só ele [o caboclo], no meio de tanta vida, não vive..." Só nós, no meio de tanta vida, não conseguimos viver porque ainda criamos uma ilusão que torna o humano cada vez mais insenvível ao negar sua própria possibilidade de existência ao almejar uma felicidade que só não é duradoura por ser incompleta ao negar seu oposto e suplemento, portanto, o homem só não é feliz porque nunca soube ser infeliz.
O cabloco não está distante de nós, na verdade, ele nos representa, é preferível ser essa “quantidade negativa”, tantas vezes representada na literatura dita moderna, do que continuarmos a nos estabelecer pelos parâmetros e problemas logocêntricos. Jeca Tatu sou eu, se Lobato não teve a audácia de Flaubert, digo eu: Jeca Tatu sou eu!
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