A Cabeça do Touro


I

Foi colocada nele uma marca sagrada e Ápis decretou: "Nascerá da Cabeça do Touro. Para que do Vigor não pense o contrário". Como animal manso recebeu o ferro de marcar em suas costas, não gritou, não murmurou, somente de seus olhos correu uma única lágrima que de tão discreta nem Ápis a percebeu. O criador assinalara a criatura e ele nasceu.

II

Entregou-lhe também um dom: adivinhar o palpitar do coração alheio. Não sabia o que fazer com aquilo. Não poderia se aproximar do outro e o outro já se abria em verdades. Poderia escolher como numa palheta de cores os sentimentos, conhecer sua existência, ouvir suas memórias, desvendar seus segredos, enfim, palpitava a outra vida em suas mãos.

III

Todas as vezes que encontrava um coração que palpitava acelerado, sua marca doía. Os homens sentiam medo e ele sentia dor. Sua vontade era oprimir os corações temerosos com suas mãos. Esmagando os corações medrosos, o mundo seria melhor. Esse era o ensinamento de Ápis. Seu dom fez sentido, sua marca não doeria.

IV

Esmagando corações temerosos com suas próprias mãos, iniciou uma transformação no mundo. Não haveria mais o medo e somente o Vigor prevaleceria sobre todas as pessoas. Cada coração esmagado era levado para Serapum e colocados um sobre os outros. Milhares de corações esmagados foram reunidos e formaram um muro, o Muro da Memória.

V

Ele sentou-se orgulhoso em frente ao Muro. Lá sua marca não doía. A memória do medo não lhe fazia mal, era o desvanecimento de tudo o que a dor representou. Satisfeito, caminhava pelo mundo, os homens o olhavam diretamente nos olhos e sabiam que ali estava a força que movia a nova vida. Seus chifres e olhos rubros não assustavam a ninguém, não havia necessidade.

VI

O significado das palavras temor e respeito se desvincularam. Não se relacionavam uma com a outra. Entretanto, outra guerra começou, escravos e senhores já não se entendiam. Todos queriam o poder, todos queriam o respeito. A memória do medo saiu do Muro e voltou ao coração dos homens. E ele novamente correu o mundo de volta a Serapum.

VII

Lá encontrou o touro negro pastando em frente ao Muro destruído. Agora, havia corações suficientes para construir um novo muro que certamente atingiria o firmamento. Ápis ordenou que acabasse com a guerra, sua marca doía... Onde estava o medo? Farejou cada coração em busca daquele sentimento. Sua missão recomeçara.

VIII

Do outro lado do mundo encontrou homens que não batalhavam pelo respeito, seu senhor era temido. Apesar da dor, permaneceu incógnito por longo tempo observando aqueles homens que viviam em paz. Enquanto descansava a beira de um lago, um rapaz o encontrou o qual teve medo diante de sua figura, porém, não sentiu sua marca. Ele olhou profundamente dentro dos olhos do rapaz e com seu coração nas mãos viu que além do medo havia ali um outro sentimento.

IX

Ele e o rapaz arderam de paixão e, finalmente, entendeu que sua missão não era esmagar corações, fazia aquilo por medo de Ápis e seu decreto. Outra lágrima correu de seus olhos, a qual prontamente foi secada pelo rapaz com suas vestes. Ele levantou e arrancou seus chifres com as mãos, o sangue banhou seu corpo e o insuflou de paixão e sua marca sumiu.

X

Lembrou-se da primeira lágrima que Ápis não percebeu e olhou para os homens. Não poderia ter nascido da Cabeça do Touro, somente daquele coração pelo qual se apaixonara. (Re)nascera daquele coração. Retornou ao muro e lá encontrou o criador. A criatura assinalara o criador com os chifres arrancados, da mesma maneira que fora assinalado. Ápis foi sacrificado e todos os homens, em luto, cortaram seus cabelos, poderiam, enfim, viver o medo.

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