a Paulo
Ele sempre teve um sonho: ser cego. Incomum, mas viável. Enxergar o mundo, ver a (des)vida era surpreendente, mas e o oposto, num maniqueísmo eficaz? Acreditava que seus sentidos, os outros, se aguçariam a tal maneira que poderia perceber um outro gosto da existência. O sonho se tornou realidade, por um acaso, como tudo é acidental, operava os olhos para poder ver melhor, uma operação simples e segura e nunca mais percebeu a luz. Os médicos lastimaram, ele se felicitou. Seu sorriso radiante ao sair do hospital era de um homem realizado.
Acostumar-se com o outro mundo, um pouco mais escuro, tenebroso e cheio de cheiros, sons e gostos não foi tão difícil, afinal, estava feliz, tinha o único sonho de sua existência realizado. No começo seus parentes e poucos amigos os acompanhavam a todo o momento, julgando-o dependente, mas não, não poder enxergar era a melhor liberdade que poderia viver. Dispensou todos, um por um. Sua rotina se alterou, as novas percepções faziam de tudo um gesto único, especial, inacreditável. A miríade de sensações o deixava extasiado, havia ali sempre um sorriso inviável em seu rosto. Ninguém o vira sorrir tanto, calado sorria, os amigos que o olhavam faziam caras e bocas de desaprovação. Não era assim que a felicidade deveria ser, ele deveria enxergar, conhecer alguém especial, subir em sua carreira profissional, finalmente quitar sua casa, trocar de carro, viajar, conhecer o Oriente e experimentar o cosmopolitismo de algumas cidades distantes. Mas não, ele sorria a mesa de um bar, ao tocar o copo gelado de cerveja, ao passar de um homem perfumado, ao esbarrar em alguém fedendo à cachaça.
Sua felicidade era perturbadora, seus amigos queriam ajustar isso. Celina ficou responsável por arranjar alguém para conhecê-lo, um advogado, um fisioterapeuta ou um médico. Pessoas que não tinham nomes, mas tinham profissões, altura, cor de pele, olhos e cabelos. Classificadas em dois gêneros: bonitos e pegáveis. Celina conhecia o gosto de seu amigo para homens... por isso mesmo ficou responsável por essa questão. Alcides o ajudava no trabalho, três vezes por semana ia a sua casa e lia os livros em voz alta, fazia anotações a seu pedido e o ajudava a digitar os textos para os alunos. Nos saraus Alcides havia sido elogiado por sua dicção, e deveria ajudar o amigo a passar no concurso para professor titular. Samanta levou-o a Paris no ano passado e já planejava uma visitinha rápida a Nova York, os sorrisos dele nas praças parisienses a desassossegavam, porque ele não poderia ver aquelas cidades envelhecidas, cheias de mistérios e histórias? E ele contava que neste ou naquele local um ou outro personagem de tal ou qual livro poderia ter pisado, sofrido sua própria narrativa, da mesma maneira que eles também sofriam com suas histórias e personagens de suas histórias.
“Alcides está bom por hoje, amanhã terminamos este capítulo... Pegue um vinho para nós, está na segunda prateleira da esquerda para a direita no armário sobre a pia.” Alcides estava com a voz cansada e bebeu um copo com água gelada. Ele se ajeitou no sofá, passava sua mão lentamente sobre o forro felpudo do assento. Levantou-se e tateou o outro sofá em busca do livro, quando Alcides chegou com as duas taças de vinho ele estava suavemente sentindo com a palma da mão a aspereza da folha do livro velho de capa dura vermelha. Os olhos de Alcides se encheram d’água. “Não entendo porquê choram, não deveriam ter pena de mim... A pena que sentem não é nada além do quanto cada um de vocês são infelizes. Videntes, mas cegos...” O telefone interrompera o solilóquio. Alcides pegou o gancho e a voz suave de Celina anunciava que iria jantar com eles, estava saindo do escritório e passaria no supermercado para comprar tudo o que fosse necessário e que ia levar um amigo, Marcelo, que tinha acabado de ser promovido e que queria celebrar.
Ele nunca se recusava a nenhum convite surpreendente, ria, abria um sorriso insustentável. Alcides e eles brindaram a maravilha de ser cego vidente e vidente cego. Sua gargalhada foi interrompida pelo despejar do vinho seco em sua garganta, enquanto seu amigo bebia amargamente de olhos bem abertos, mas caídos. “Ligue para Samanta, ela deve estar na cidade.”
Em menos de uma hora os amigos estavam reunidos. Samanta cozinhava inacreditavelmente, preparou tudo com a dedicação de sempre. Celina sentada ao lado dele elogiava Marcelo, descrevia sua beleza física, sua sagacidade e sua determinação em crescer na vida. Logo seria o presidente da empresa. O canapé de aspargo desmanchava em sua boca, o gruyére era o charme da receita. Sorria. “Presidente! Não dou dois anos...” Marcelo perguntava e perguntava sobre seus os gostos e suas predileções, e ele respondia carinhosamente, sem enfado. Celina estava radiante, será que havia conseguido cumprir com sua missão? Ele levantou-se rapidamente, roçando a ponta de seus dedos no guardanapo e ergueu sua mão: “Posso tocar no seu rosto?” Todos surpresos se entreolharam, era mais uma feliz esquisitice. Marcelo corou, mas declinou ao pedido. Samanta encaminhou-o para o sofá em que o futuro presidente da empresa estava sentado e os dois ficaram frente a frente.
Os seus dedos corriam suavemente pelo rosto de Marcelo, a pele era macia, o cheiro de um suave perfume amadeirado suplementava o toque, o nariz pontudo compunha harmonicamente com os olhos grandes, a delicadeza dos traços agora envolvidos pelas palmas das mãos trocavam calor. Os cabelos foram levemente desarrumados com o entrelaçar dos dedos por cada mecha levemente encaracolada. Todos se retiravam, um a um. Restando somente os dois. Marcelo falava ao seu ouvido, suavemente, a voz da conquista, dizia meias-verdades, sorria muito. As mãos continuavam o passeio, agora pelo corpo, cada pelo, cada curva, explorada e inexplorada pelas mãos inábeis dos videntes cegos. Marcelo o elogiava demasiadamente, fazia juras de amor, o conquistava com sua lábia. O gosto da pele o inebriava, era sentir o outro de uma outra maneira não pensada. Marcelo sorria porque via o sorriso estampado em seus lábios.
O tempo era diferente em sua percepção. O dia e a noite não bailavam pelo céu. Era dia noite o tempo todo. Quem o prendia ao espaço eram seus convivas, a amargurarem sua irrisória felicidade. “Você falou com Marcelo hoje?”, “Sim, ele disse que iria ficar em casa, estava cansado do trabalho”. Celina celebrou com um gritinho estridente. Foram para uma casa noturna. Gostava de sentir a música tamborilando em seu corpo e tamborilava com muita força, movendo cada sensibilidade possível.
Alcides já o esperavam quando chegaram. Guiado por Celina entraram e dançaram, celebraram o corpo com movimentos informes. Cada som entravava por sua pele e se distribuía desigualmente... “Não acredito!” Os olhos arregalados de Celina poderiam ser visto até por um cego. “O Marcelo está ali e está beijando outro cara!” E ele não demoveu um músculo, continuou dançando. Celina chocou-se com sua frieza, não se importou com o fato. Continuou a dançar. A música tinha gosto de alegria inebriada pela bebida, os corpos cheiravam a cigarros mentolados. Celina continuou dançando, mas cuidava cada passo de Marcelo, ele ainda não a vira. E o pseudo-namorado do amigo beijava não somente aquele primeiro, mas outros num bailar de não-afinidades, de (des)gostos. Sentiu a mão do amigo passar em seu rosto, era o pedido para que dançassem juntos e ela assentiu. Celebrou e ela meio-celebrou. “Ele não te fez juras de amor?”, é claro que tinha feito, mas a sentença dele quietou Celina: “Todos falam, mas não têm certeza das palavras... É muito difícil alguém manejar os significados com sinceridade, nem eu mesmo manejo muitas vezes com eficácia, apesar de trabalhar com elas”. Celina insistia ao perguntar se eles haviam brigado, não brigaram e não tinham motivo para, no interpretar do amigo.
Ao fim da noite, os amigos, cansados realizados, toparam com Marcelo na saída, os olhos arregalados podem ser visto por cegos, já o disse. Gaguejando Marcelo se aproximou dele, que imediatamente tocou o seu rosto suado e grudento. As faces se encontraram, e ele cheirou profundamente seu pescoço, o perfume já havia esvaído. Beijou timidamente as mãos e abriu um sorriso. Um sorriso amargo do gosto da pele. Continuava gaguejando, entretanto, ele colocou seu dedo indicador nos lábios finos de Marcelo, e fez um “chiu” levemente chiado. “Mas... mas...”, “Não há mas, só silêncio!”, “Estou te decepcionando...”, “Nenhum ser humano me decepciona, não se preocupe!” e sorria um sorriso amarelo no ver de Marcelo. O olhar de Celina fuzilava-o enquanto pegava seu amigo pela mão e o encaminhava para o carro. Sentados no carro, Celina insistia em dizer que não acreditava, enquanto as mãos de seu amigo sentiam o aveludado do tecido de seu vestido. Entretanto, ele sorriu mais uma vez e perguntou: “Sabe qual é o gosto do segredo?”
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