Profundidade verde

Caminhava sem muita pressa pela rua. Atravessava uma rua ou outra, sempre a observar cada vitrine, roupas das últimas tendências não eram exatamente o que lhe interessavam. Parava por vezes longos minutos em frente de uma vitrine, lá dentro diversas roupas dependuradas em manequins que imitavam poses humanas monumentais para mostrar definitivamente o bom caimento de cada roupa num corpo ilusório, mais ao fundo as vendedores ávidas por mais uma venda naquele fim de ano sem muito movimento, resultado de crises sobre crises, esperavam ansiosamente por sua entrada, vestia-se bem, portava uma bolsa de marca, usava uns óculos com design aclamado, seria uma venda garantida. Porém, seu olhar não estava direcionado nem para os manequins, nem para as roupas, muito menos para as vendedoras. O seu olhar parava antes, antes de penetrar a mágica insustentável da loja, parava na própria vitrine que se tornava espelho em sua visão. Olhou concentradamente por longos minutos para seus próprios olhos verdes refletidos que se destacam sob certa iluminação daquele dia ensolarado. Sua forma se tornava vaga na vitrine com tanta luz, mas seus olhos não, eram certeiros e exatamente refletidos mostravam exatamente aquilo que estava procurando. Geralmente quando a visão de sua própria imagem numa forma de autoaprovação sorri-se, e ele não. Seu rosto alvo quadrado tornava-se mais sisudo, mais petrificado, parecia um monumento da Ilha de Páscoa, como a esperar pelo grande acontecimento.
Sua atenção somente se desviou a passagem de um homem que o olhava, o olhar do outro o atraia e de uma forma misteriosa, ele sabia que estava sendo observado e sempre retribuia insistentemente a observação. Da mesma forma que olhou-se por minutos diante da vitrine, vislumbrou todo o caminhar daquele homem que seguia em sua direção e certamente passaria por ele seguindo o curso natural do caminhar pelo centro da cidade. Não foi exatamente o que aconteceu. O homem parou ao seu lado e começou a olhar as roupas, as vendedoras vibraram com gritinhos surdos. Ele não voltou a olhar a vitrine continuou insistentemente a olhar para o homem até que o outro se volta para ele, aproxima-se de seu ouvido e diz qualquer palavra convidativa. Ambos sorriam de canto de boca e partiram juntos no caminhar natural das vidas. As vendedoras se dispersaram suspirando.
Naturalmente conversaram sobre tudo, ou seja, sobre coisa alguma. Se olharam e se desejaram nitidamente, corpos pulsantes e colidindo um para o outro. Mentes que se atrem por uma beleza única que só há no outro ser humano, uma beleza que suplementa a sua interminávelmente. Sua casa era um primor da arquitetura contemporânea, suas linhas retas, o concreto, o sábio uso do vidro. O amplo quarto era preenchido somente por uma cama com seus lençóis brancos, sua única desordem, era a desordem do dia: roupas salpicando o chão amadeirado. Os corpos se moviam numa entrega total, suspiravam e cediam ao desejo alheio enquanto seu próprio desejo era preenchido de uma nova forma muitas vezes não experimentada. O desejo só possui um fim, e com o seu fim, os corpos tornam-se novamente humanos, severamente humanos. Olharam-se e sorriram, como se a satisfação de si pudesse estar num único ato. O observador de vitrines não deixou de fazê-lo, observava silenciosamente o outro enquanto contava historietas para depois do sexo, quando questionava dava respostas vagas. A única coisa que lhe interessava era os olhos que misteriosamente eram vislumbrados, agora sem sorriso algum, estava novamente a contemplar sua própria imagem na profundidade azul do outro, sua busca não havia terrminado.
Levantaram para um banho. Num gesto de último carinho permiriam-se ensaboar-se, enxaguar-se e mais uma vez beijaram um ao outro. Não vestiram roupa alguma, seguiram direto para um outro cômodo que possuia um espelho que ocupava toda a parede, parecia a sala de ensaio de um ballet qualquer. O espelho ali serve para observar com detalhes impensáveis o movimento do corpo, é possivel estudar o detalhe de cada músculo, sua curvatura, sua grandiosidade ou flacidez. Ele sentou o outro no chão sobre um leve acolchoado que se olhou envergonhado para o espelho a sua frente. Ele permanecia sério, como a preparar um leve ritual, trouxe dois copos preenchidos com qualquer vapor em homenagem a Baco e entregou sem olhar o copo que tocava uma música glacial desconexa . Tomou um pequeno e tímido gole, suspirou fundo com o álcool rasgando sua garganta enquanto ele se sentava por trás do outro envolvendo-o com suas pernas, os dois agora poderiam se olhar o próprio reflexo. A seriedade pertubava o outro que muitas vezes desviava o olhar do espelho. Levemente o copo foi colocado no chão vitreo da sala, as mãos percorreram lentamente o corpo alheio, sua mão, agora severa, segurou o queixo do outro forçando-o olhar diretamente para o espelho. O silêncio da cena tornava o ritual macabro. Ele analisava cada detalhe do corpo de seu convidado, perscrutava pacientemente cada milímetro da alteridade. Minutos tensos que só se encerraram com sua voz um tanto rouca sentenciando: "Não é você!" De olhos arregalados o outro levantou-se apressadamente chutando sem querer o copo, o líquido naturalmente se espalhou formando uma poça desordenada, o gelo rolou enquanto começava seu processo de liquefação perante o leve calor que se fazia. Os dois se olharam, um de pé com os musculos retesados por tal insulto, o outro levemente deitado apoiando as mãos para trás. Nenhuma palavra foi dita, o outro simplesmente saiu em direção ao quarto para resgatar suas roupas e provavelmente sair o mais depressa possível. Ele permaneceu ali quase deitado, somente observando a si mesmo, seu único movimento foi pegar o gelo mais próximo e passar pelas curvas de seu corpo, aquele toque insano do gelo o fez voltar a infância. Viu a si mesmo nu deitado na cama, sua mãe se aproximou e o pegava no colo. Deveria ter cinco anos ou menos. Ela sempre o levava para a frente do espelho e ambos ficavam observando a si e ao outro, enquanto a mãe dispensava carinhos por sobre o corpo branco do filho, ele nunca sorria na frente do espelho enquanto a mãe gargalhava pelas brincadeiras carinhosas, ele sempre olhava para ela com tal profundidade que sem sombra de dúvida poderia até mesmo estar se observando no reflexo da profundidade verde de sua mãe.

A educação de quem?

FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1963

Frederico Moreau é uma personagem encantadora. Não, ele não é uma personagem. É mais. Morador da província, deseja e vai para Paris, e nessa primeira ida e vinda para esta cidade algo muda em sua existência, cidade esta que sim, verdadeiramente é encantadora, por ser a capital do país? Não. Por ser exclusivamente a capital do desejo: "Porque, na sua opinião, a arte, a ciência e o amor (essas três faces de Deus, como dizia Pellegrin) dependiam exclusivamente da Capital." (p. 95). Nesta viagem que acompanhamos juntamente com a descrição (in)verossímel de Gustave Flaubert percebemos como Fred estava sobredeterminado por um sentimento romântico, um sentimento que o faria amar a esposa de Arnoux: "um homem que mercadeja com torpezas políticas" (p. 54), simplesmente pelo gesto de amar. Toda a sua existência, acreditou ele, estaria concluída quando conhecesse e enamorasse esta mulher que significou a conjunção da perfeição, da beleza e da integridade. As peripécias da existência porém, mostraram o contrário. Ela tornou-se mais real? Não, somente mais humana, severamente mais humana. Da mesma forma que Frederico, que também tornou-se mais e mais humano, mas isso não se processava da mesma forma, ele estava em um processo:
Mas estava resolvido (e a todo custo) a mudar de existência, isto é, não perder o coração em paixões infrutíferas, e até hesitava em desempenhar-se da comissão de que Luísa o havia encarregado: comprar para ela, em casa de Jacques Arnoux, duas grandes estatuetas policromas representando pretos, como os que estavam na prefeitura de Troyes. Conhecia a marca do fabricante e não as queria de outro. Frederico tinha medo, se voltasse a casa deles [dos Arnoux], de tornar a cair nos seus antigos amores." (261, reparem que o grifo é do autor)
A necessidade de não vê-la mais criou em si um desejo de volta à província: "odiando o meio fictício onde tanto tinha sofrido, [Frederico] desejou a frescura do manto, o repouso da província, uma vida sonolenta passada à sombra do teto natal, com corações ingênuos." (427) E foi-se novamente pisar no chão menos fictício (?) que sua terra natal insistia em representar... Porém o fogo desse desejo, que move a muitos de nós, acaba nos levando de uma forma indefinida a diversos lugares ou situações. Sua volta a Paris é marcada por diversas mudanças em seu comportamentos, mudanças naturais que sempre vão se processando no intelecto e no sensível de cada um de nós, lições que aprendemos de ouvido ou na pele, lições que assinamos com a  nossa orelha ou com sangue mesmo. E eis uma lição no meio de tantas: "há homens que apenas têm por missão servirem de intermediários entre os outros: passam-se como pontes e segue-se adiante." (p. 248) E muitas pontes se fizeram entre Fred e seus objetivos que mudaram tanto e tantas vezes que não há necessidade de mapeá-los, seria mapear a própria lógica da existência. Porém, há uma reviravolta na história de todos, uma revolução, uma revolução qualquer que acontece a todos os momentos, sejam mais ou menos sangrentas, mais ou menos politizadas, mais ou menos circunstanciais, porém, Frederico estava tão dentro de si que não se lembrou de perceber os fatos que aconteciam fora de sua janela e se chegou a percebê-los fez de forma inconsciente: "Ah! lá estão liquidando algum burguês! - disse Frederico [junto a janela] com tranquilidade, porque há situações em que o homem menos cruel está tão desligado dos outros que é capaz de ver morrer o gênero humano sem um abalo do coração" (p. 292) Com a morte do gênero humano inteiro Frederico poderia, sim, ser exatamente aquilo que desejava, os outros e seus interesses de alguma forma não tão obscura atrapalhavam seu objetivo, sem eles, sem burgueses, numa outra e nova(-velha) situação política ele poderia ter tudo o que desejou. Não só ele, mas esse clima de anti-percepção do outro estava dominando a cidade do desejo, um guarda: "carregava a arma e atirava, sempre a falar com Frederico, tão sossegado no meio da revolta como um horticultor no seu jardim." (p. 294) Estavam todos recolhendo os seus tubérculos para o jantar, a ceia em que se farta de satisfação de si mesmo. Mas a terra não é boa, não tem nutrientes suficientes, precisa de revoluções para que novos modos possam ser cultivados. E da terra revirada novos insetos sempre surgem. Desculpem, não são insetos, vamos continuar explorando a primeira metáfora, são pontes, pontes que precisam ser cultivadas, algumas precisando de maior ou menor atenção nos reparos. Frederico inocente sempre cuidara de todas as pontes com a mesma atenção, na província não deveria haver muitas pontes, mas em Paris há pontes demasiadas e tratar de todas desgasta a própria existência, "Frederico teve vontade de lhe responder: "Não te inquietes! eu pagarei!" Mas a mulher podia mentir. A experiência já o havia ensinado. Limitou-se apenas a consolações." (p. 321) O pequeno ensinamento sobre as pontes tornou a sua vida mais interessante, seu romantismo, sua idealização foram minguando, as mulheres foram tornando-se mais vivas e também menos reais.
"[...] Rosanette não confessava todos os amantes, para que ele a estimasse mais; porque, no meio das confidências mais íntimas há sempre restrições, por falsa vergonha, delicadeza, piedade. Descobrem-se nos outros ou em nós precipícios ou lodos que impedem prosseguir; sentimos, aliás, que não seriamos compreendidos; é difícil exprimir com exatidão seja o que for eis porque as uniões completas são raras." (340-1)
A mentira estava a sua volta por falsa vergonha, delicadeza e piedade, as uniões completas além de raras eram invisíveis, cheias de mistérios, a fim de esconder muitas vezes somente o vazio de sua própria existência oca: "O coração das mulheres [e acrescento, do homem] é como certos moveizinhos de segredos, cheios de gavetas encaixadas umas nas outras; a gente incomoda-se, quebra as unhas, e no fundo apenas encontra alguma flor seca [quantos homens não tem flores tão secas em suas gavetas?], alguma poeira - ou então nada! E, afinal, receava vir a saber demais." (p. 399) Quanto mais sabia, mais se tornava vivo, mais tornava os outros vivos. Conhecer é humanizar o outro e a si mesmo, num lance paradoxal e ceticista. É uma espécie de colonização, onde muitos outros-iguais precisam por vezes até serem extintos para que a Metrópole do Desejo se estabeleça, as faces de Deus possam estar entre os homens, ou para que pontes sejam construídas ou destruídas. Há fatos mais traumáticos que outros, e há fatos traumáticos que não só resignificam a existência por-vir, mas resignificam a existência anterior, dando sentido e consistência a experiência já vivida, e a morte de seu filho, torna-se para ele o começo de todas as desgraças, como se nenhuma delas já houvesse se processado em sua vida, o que é impensável, visto que já estamos no fim do volume e que seu modo de vida já mudara muito da mesma e estranha forma que continuava o mesmo. Surge nele, como surge em muitos de nós, a vontade de conservar o trauma pela arte, queria eternizar a figura do filho que nascera morto, escolheu a pintura, poderia ter escolhido qualquer outro monumento que só tem por fim lembrar o que mais queremos esquecer. A lição monumental não estava numa pintura sob encomenda, estava em processo em seus atos e suas ideias: 
"Frequentou a sociedade, e teve ainda outros amores. Mas a recordação permanente do primeiro [o de Madame Arnoux] tornava-os insípidos; e, depois, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, perdera-se. As suas ambições de espírito tinham igualmente diminuído. Passaram anos; ia suportando a ociosidade da inteligência e a inércia do coração." (429)
A recordação permanente do primeiro amor, monumento que só existe para ser esquecido, fez com que o desejo, as ambições do espírito, diminuíssem. Diminuíssem por serem inalcançáveis? Não, por serem demais para qualquer espírito, sonha-se muito alto, romantiza-se todas as ações, quer-se que grandes narrativas, narrativas heróicas, possam ser lembradas, mas a lembrança monumental, lembre-se, nasceu para ser esquecida. É aquele fato mínimo, minúsculo, ínfimo que por vezes relembramos todos os dias, não em forma de monumento, mas de processo. O processo que se elabora pela lembrança dos atos menores torna possível que possamos sentar no fim da existência, e tomar um chá com Deus (nestes momentos serve mesmo um amigo, ou mesmo um inimigo) e assistir ao crepúsculo do mundo e ainda poder conversar para de forma estranha e desnecessária resumir a vida:
"E [Frederico e Deslauriers, não único, mas insistente amigo de infância,] resumiram a vida de ambos.Os dois tinham falhado: [Frederico] que sonhara o amor , [Deslauriers] que sonhara o poder . Qual fora a razão?
- Foi talvez por não termos seguido a linha reta, - disse Frederico.
- Para ti, talvez. Eu, pelo contrário, pequei por excesso de retidão, sem levar em conta mil coisas secundárias, que são superiores a tudo. Eu, por excesso de lógica, tu, por excesso de sentimento." (436)
Seguindo em linha reta ou não, preferindo o amor ou o poder, ou um misto de tudo, ambos puderam concluir mesmo de que forma vacilante que: 

"- Foi afinal o que nós tivemos de melhor - disse Frederico.
- Sim, talvez. Foi o que nós tivemos de melhor - disse Deslauriers." (437)
O que aconteceu com cada uma das personagens, algo que permanece oculto por diversas razões, foi exatamente o melhor, não poderiam julgar de outra forma, insistentemente é-se quem é, alguns não querem ver, outros quando se permitem vislumbrar tal fato sentem-se chocados com a mais óbvia engrenagem do mundo, a si mesmo. Frederico, entretanto, teve seu momento de lucidez, o que faz afirmar sem um "talvez" que sim, foi o que melhor teve: "O rapaz reconheceu então o que a si próprio ocultara, a desilusão dos sentidos." (383) Desilusão que para ele se expressa, já que lhe foi determinado por Flaubert o caminho do amor, da seguinte forma sentenciosa: "Não valia a pena sofrer tanto por amores. Se um faltava, havia mais!" (363). Fato infalível é que Frederico não escolheu um só caminho, um único caminho foi escolhido neste mundo flaubertiano para ser narrado, mas tantos caminhos foram expressados, por vezes não só na figura da além-personagem de Fred, mas na figura e nas pequenas ações de tantas outras personagens, como na exemplar política da memória de Rosanette, que vimos logo no começo. Por fim, o que é a Educação Sentimental? Poderíamos acreditar que seria uma educação para a perversidade, ledo engano, no máximo a morte da inocência. Alguns críticos de Flaubert mostram que A Educação Sentimental seria o grande retorno de Flaubert ao Realismo, porém o ceticismo expresso na obra é o sentimento que movia a época, da mesma forma que o sentimento romântico também movia a mesma época, e não duvido que mova ainda alguns com os olhos e ouvidos mais ou menos atentos. A vida só poderia degenerar neste ceticismo, da mesma forma que em Machado de Assis com Brás Cubas e todas as suas negativas ou mesmo Dom Casmurro e sua necessidade confessional de culpar alguém por sua inocente juventude. O romântico pede perdão por viver antes mesmo de se matar, o realista quer enfrentar a vida como se lutasse contra ela. Eis como surge a necessidade da Educação Sentimental que se processa metodologicamente por cada desgosto que acontece na existência. E nós, filhos destes pensamentos extremos, até mesmo opostos, se lermos o realismo e o romantismo pelo senso-comum, Como devemos proceder? A Educação Sentimental nos bate a porta todos os dias enquanto acreditamos inocentemente no amanhã. A virtude de termos posse das duas visões só nos poderia fazer melhores, nem nos deixando cair num ceticismo, nem nos deixando iludir pela inocência. Mais um engano, poucos querem abrir os olhos e os ouvidos e assumir o deslocamento suplementar que as duas posturas poderiam nos fornecer. É ser nem romântico, nem realista, ou mesmo contemporâneo, como se isso fosse um valor, é ser humano por inteiro. O convite é permanecer com um olho aberto e o outro fechado, um ouvido entupido pelo senso-comum e o outro aberto para assinarmos discursos mais interessantes. O trabalho ou é abrir um olho ou fechar o outro. É deixar-se educar os sentimentos sem degenerar em ceticismo ou matar a inocência e permitir que seu fantasma continue a nos assombrar. É uma ética não extremista, é uma ética de e com deslocamentos que só se realiza pelo entendimento da multiplicidade de nós mesmos e de uma forma de resistência a toda e qualquer oposição determinante e/ou enclausurada. O livro de Flaubert narra, portanto, a Educação Sentimental de Fred? Não. Então, a educação de quem? A educação de todos nós. A nossa identificação com Fred nas mais diversas situações só mostra mais e mais que a literatura trata do humano, do profundamente humano.

O julgamento de Capitu ou "ler com" e "ler para"




Ezra Pound em seu ABC of reading me ensinou duas lições preciosas: ler com e ler para. Ele me convidou a assumir essa tarefa como professor de Língua Portuguesa, ou como professor simplesmente. Ler com os alunos é uma atitude encantatória: cria-se um momento propício para a leitura e neste momento os alunos ao me verem lendo ficam curiosos, querem saber, querem entender, quem imitar aquele ato. Levo grossos volumes para a sala de aula, e aqueles mais audaciosos que me veem arrancar o livro da mão para lerem o título do livro e o nome do autor, nomes aos quais muitas vezes não conseguem nem pronunciar, ficam com os olhos arregalados e tentados a quererem mais, dias desses Pride and Prejudice de Jane Austen estava circulando pela sala. E a lição mais preciosa: ler para os alunos. Sempre que estou a ler faço questão de iniciar a aula com o trecho ensaístico de algum romance ou uma poesia chocante ou sensual, quero mostrar-lhes o gozo que há na leitura. E sempre discutimos... questões relacionadas à gramática? Não, questões relacionadas ao existir. A literatura tem um pacto com a vida e não com a gramática. Propus-me, então um desafio: ler Dom Casmurro de Machado de Assis com os meus alunos no 9º Ano. "Este livro é chato", "tem palavras difíceis", "você não vai conseguir" foram alguns dos muitos argumentos (diria preconceitos) que tive que ouvir. Entretanto, não dei ouvidos, só somos uma grande orelha quando o que temos que escutar realmente tem sentido. Procedi a leitura lentamente, lendo performaticamente para cada um deles e ouvindo-os ler, tropeçando em palavras fora de uso (ou que foram esquecidas pelo uso demasiado prático da língua), esquecendo vírgulas, acentos, enfrentando a vergonha de ler para os colegas ou de ler sem fluência, mas também vi leitores vorazes que queriam ler a descrição de Escobar para poder apreciar em sua imaginação a singular beleza da personagem, ou mesmo rapazes que secretamente se apaixonaram por Capitu, por seus olhos, por sua sagacidade, alunos que escondiam os livros dentro da mochila para terminar aquela parte em casa ou saber o que viria a acontecer, que se impacientaram esperando o tão necessário beijo entre um penteado e outro, ou esperam o momento da duvidosa traição. Foram meses de trabalho, os alunos leram o livro sob os meus olhos, os que faltavam queriam saber o que perderam, exigiam-me um relatório dos últimos acontecimentos. Os preconceitos? Não sei onde foram parar, as palavras difíceis foram vencidas com perguntas ou com o dicionário, a chatice do livro é própria de um casmurro a tornar vivas as suas memórias. Lido o livro, convidei os alunos para o mais óbvia de todas as atividades: julgar Capitu. Seria ela inocente ou culpada das acusações? Não me importa, julgar Capitu era uma expressão que tinha o sentido deslocado em minha cabeça, significava: como este livro marcou aqueles muitos momentos em que estivemos lendo juntos, quais significados foram explorados, o que eles absorveram para si da experiência do outro. Não tinha necessidade de revelar meus segredos, minhas segundas intenções para os alunos ao propor a atividade. Por duas semanas a sala se dividiu como em uma guerra: os acusadores e os defensores. Folheavam o livro, procurando aquele trecho que construiria sua argumentação para o grande dia. Fizeram pesquisas na internet. Esconderam um dos outros o que estavam construindo. Para finalmente realizar uma acusação totalmente baseada no texto com seus argumentos mais contundentes ou uma defesa emocional apelando para os sentimentos mais íntimos dos jurados. Jamais esquecerei, ou não quero esquecer: os trechos lidos pela acusação ou as perguntas certeiras da defesa. Desta feita, a emoção ganhou da razão e Capitu foi inocentada. Desta feita, o "você não vai conseguir" se desfez como um castelo sobre a areia. Consegui conquistar todos os para a leitura? Não! a multiplicidade dos gostos não pode ser satisfeita, mas dos muitos que consegui agradar certamente marquei sua história de leitura. Não, minto. Machado de Assis conseguiu marcar sua história de leitura, da mesma forma que marcou a minha com Memórias Póstumas de Brás Cubas